Historiando o financiamento da educação pública brasileira



No período colonial, o financiamento da educação era literalmente zero, com uma gestão alienada, em que os atores eram degredados, feitores, militares e missionários que ensinavam aos índios nativos e negros adventícios, dentro de um currículo de dominação cultural, onde os saberes eram hierarquizados. Enquanto os espanhóis fundavam escolas, colégios e universidades em suas colônias americanas do Caribe, do Atlântico e do Pacífico, os reis portugueses decidiram fazer no Brasil uma educação sem escola e sem despesas. Desse modo, a educação primária nunca foi privilegiada no Brasil e desde a época dos educadores jesuítas, estes davam ênfase ao ensino secundário embora tenham espalhado escolas de primeiras letras em regiões distantes. Em 1808 com a vinda da família real, houve um impulso grande ao ensino superior e às belas artes, ainda que significassem, na verdade, não mais que cursos pontuais dentro da carreira militar as faculdades de engenharia, medicina e outras fundadas na Bahia e no Rio de Janeiro.

Com a proclamação da independência, esperava-se que a influência da Europa, que universalizava o ensino primário, viesse a trazer benefícios preenchendo as deficiências causadas pela expulsão dos jesuítas motivada pelas dívidas da Coroa e pela apreensão de seus inúmeros bens pelo governo. Essa expulsão representou uma tragédia para as populações indígenas ou das regiões suburbanas que estudavam em mais de duzentas escolas de primeiras letras de missões ou de filiais das escolas primárias e secundárias. Acentou-se a exclusão, elitizando-se ainda mais a clientela já que os negros continuavam sem acesso à escola e a prioridade era o atendimento às crianças portuguesas.

A Constituinte de 1823 discutiu de forma predominante a criação de uma universidade, embora não tenha isso se concretizado. Já a Constituição de 1824 colocava a educação primária como gratuita a todos os cidadãos, todavia o Ato Adicional de 1834 passaria às Assembléias provinciais a competência para promover e legislar sobre o ensino público elementar.

A educação no período compreendido entre 1834 e 1891 caracteriza-se pelo aspecto da gratuidade e da universalização nas escolas estatais e católicas, financiada pelos impostos de vendas e consignações. Embora a maioria das escolas primárias fossem unidades isoladas ou pequenos estabelecimentos de classes reunidas, sem um aparato gerencial complexo, já se praticava uma administração burocrática, datando daí a reprovação como forma de seleção.

A descentralização dos serviços públicos, em sociedades complexas, é uma tendência histórica saudável, já que aproxima a clientela da autoridade responsável. O problema é que sem recursos financeiros, humanos e materiais, as Províncias tinham sido gravadas com um encargo a que não puderam responder na medida das necessidades, resultando que cada Estado só conseguiu fundar e manter um colégio secundário, durante o fim do Império até 1930.

Sobre o alheamento do governo brasileiro quanto à sorte do ensino primário, intelectuais como Gonçalves Dias, Rui Barbosa e Manoel Bonfim fizeram denúncias apesar dessa omissão continuar na República e atravessar a revolução de trinta. Tinha-se no Brasil uma política restrita ao financiamento da educação que era prioritariamente voltada para a classe social abastada e aos homens, sem favorecer as mulheres e as classes populares. Em 1932, os Pioneiros da Educação Nova, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Almeida Júnior e outros fizeram um movimento denominado o "Manifesto dos Pioneiros" onde declaravam dever do Estado tornar a educação obrigatória, pública e gratuita, leiga e ampla, criticando o sistema dualístico (uma escola para os ricos e outra para os pobres), reivindicando uma escola básica, única, o que acirrou os debates ideológicos sobre a educação até a ditadurade Getúlio Vargas.

A partir de 1931, há uma explosão educacional com uma grande oferta de escolas públicas estaduais e municipais. A Constituição de 1934 estabelece a obrigatoriedade e gratuidade do ensino primário, surge a Educação Infantil e o Ensino Supletivo, campanhas de alfabetização de adultos e a criação do Sistema de Educação Profissional Patronal-ServiçoNacional de Aprendizagem Industrial-SENAI, e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial-SENAC. Cria-se o Salário Educação para o financiamento da educação com arrecadação compulsória na folha de contribuição dos empregados. Há um afrouxamento da centralização curricular. Data desse período o Sistema Nacional de Educação Federal e o aumento dos investimentos da União na educação. Os Estados ampliam a oferta de vagas nas escolas primárias e secundárias. Também nos municípios há a assunção da educação infantil e a alfabetização de adultos. Na Constituição de 1934, a educação é vista como obrigatória e gratuita, porém, sem avançar na questão do financiamento enquanto que a CF de 1937 garantia o ensino em instituições públicas, público e gratuito, mediante uma contribuição "módica e mensal".

Após o Estado Novo, em 1946, é regulamentado o ensino primário sob a influência do movimento renovador e dos princípios estabelecidos pelo Manifesto dos Pioneiros de 1932. O presidente Dutra envia ao Congresso Nacional um projeto sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, dentro dos princípios da liberdade e nos ideais de solidariedade humana. O projeto em 1961tornar–se-á a Lei 4.024, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDBEN.

Instala-se pelo Golpe de 64, o regime político de ditadura militar, com cinco generais presidentes. O AI5 dirige a educação, cassando professores, afastando-os ou aposentando-os, daí a "evasão de cérebros" para o exterior. As verbas para a educação são reduzidas a níveis incompatíveis com o crescimento populacional. O corte nas verbas para a educação pública e gratuita, o arrocho salarial dos docentes e do pessoal administrativo das escolas, desestimulam o processo educacional. Para contrabalançar a redução da oferta de vagas na rede pública, os governos militares estimulam a proliferação das escolas privadas. Assim foram reduzidas as responsabilidades do Estado com a educação, previstas na CF. O Estado reforma a Lei 4.024/61 através da Lei 5.540/68, atrelando o sistema educacional ao modelo de desenvolvimento econômico dependente, imposto pela política econômica norte-americana e, para tanto, recebe assistência técnica e financeira, a partir de 1964, através dos acordos entre o Ministério da Educação e Cultura-MEC e o United States Agency for International Development- USAID, para realizar a reforma que se assentou em três pilares: educação e desenvolvimento, educação e segurança e educação e comunidade, (COSTA, 1999).

Dentro do contexto histórico da época, o governo promulga a Lei 5.692/71 fixando diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus. A lei destaca dois pontos fundamentais: a obrigatoriedade escolar e a profissionalização do ensino médio. É considerado o primeiro grau como o Ensino Fundamental, tendo a duração de oito anos e obrigatório para as crianças dos sete aos quatorze anos.

Agoniza o regime militar. O Brasil caminha para a redemocratização. Cai a censura e a sociedade civil debate problemas nacionais como a inflação, crises políticas e impeachment- cassação de umpresidente eleito. Com o esgotamento do modelo econômico vigente até então, a doutrina econômica neoliberal expande-se e influencia na descentralização das políticas públicas. Coincidindo com a redemocratização, o Brasil tornou-se um país altamente descentralizado. Este fato trouxe uma série de mudanças intra-governamentais e no poder relativo dos governos e das sociedades locais, dando ensejo a um intenso movimento de lideranças socialistas. Esses movimentos sociais dos anos 80 tinham como característica cinco elementos constitutivos em seu ideário: autonomia, adoção de democracia direta, sentimento anti-capitalista, relações de poder e processo decisório horizontalizados além do sentimento constitucionalista. Esses cinco elementos fizeram um empate permanente com o aparelho do Estado.

No bojo do processo de redemocratização do país, houve a implementação da descentralização dos serviços e a aproximação dos grupos de interesse organizados. Esse processo de descentralização consiste numa estratégia de gestão e execução de políticas de forma a privilegiar a proximidade entre executores e o público-alvo. Nesse sentido, a otimização de recursos significa criar condições para uma maior eficiência. Em conseqüência, maior agilidade e transparência na prestação de serviços públicos pelo Estado, ainda, maior envolvimento direto do poder local na captação das demandas, no controle de gastos e na inspeção do cumprimento das metas estabelecidas e, a um só tempo, o acompanhamento dessas ações pelo setor público (SOUZA, 2004).

O processo de descentralização como política pública é uma tendência universal desde o esgotamento do "Welfare State" e da ascenção do neoliberalismo segundo o qual, a ineficácia do Estado é o resultado do aprofundamento da sua intervenção na sociedade. O "Welfare State"- Estado de Bem Estar Social, representa a intervenção de um novo Estado Keynesiano- desenvolvimentista, a partir do final da Segunda Grande Guerra Mundial- 1945, quando o panorama internacional passou a ser marcado por uma significativa ampliação do Estado na economia. É também nesse período que os regimes social-democratas se apresentam como suposta alternativa ao capitalismo selvagem e aos projetos socialista e comunista. Nesse contexto, o sistema capitalista incorpora idéias de planificação socialista e principia um quadro de recuperação e de estabilização. O Estado de Bem Estar, Welfare State, irá desenvolver políticas sociais que visam à estabilidade no emprego, políticas de rendas com ganhos de produtividade e de previdência social, incluindo seguro-desemprego, bem como direito à educação, subsídio no transporte etc. O slogan de H. Ford- "nossos operários devem ser também nossos clientes", caracteriza a estratégia econômica desta segunda fase do fordismo que busca viabilizar a combinação de produção em grande escala com consumo de massa. O surgimento, desenvolvimento e crise do fordismo e do Estado de Bem Estar Social ou Previdenciário dentro de uma dialética em cujo pacto se situa a possibilidade de sustentação do padrão de acumulação capitalista, envolve o financiamento, pelo fundo público, de capital privado e, ao mesmo tempo, de forma crescente da reprodução da força de trabalho, aumentando de forma generalizada a assistência à população, não por caridade, mas como direito, mediante as políticas sociais de saúde, educação, emprego etc. (SOUZA, 1995).

É importante destacar que a crise dos anos 70/90 não é uma crise fortuita e meramente conjuntural, mas uma manifestação específica de uma crise estrutural. O que entrou em crise nos anos 70 constituiu-se em mecanismo de solução da crise dos anos 30: as políticas estatais, mediante o fundo público, financiando o padrão de acumulação capitalista nos últimos cinqüenta anos. A crise não é, portanto, como a explica a ideologia neoliberal, resultado da demasiada interferência do Estado, da garantia de ganhos de produtividade e da estabilidade dos trabalhadores e das despesas sociais. Ao contrário, a crise é um elemento constituinte, estrutural, do movimento cíclico da acumulação capitalista, assumindo formas específicas que variam de intensidade no tempo e no espaço. Todavia, como defensores da minimização da ação do Estado, os neoliberais creditam ao mercado a capacidade da regulação do capital e do trabalho, considerando as políticas públicas de ação social, como saúde, educação e assistência social, as principais responsáveis pela crise. Ao tomarem para si a responsabilidade pelos programas sociais, os governos geram mais receitas, suprindo-as com o aumento da carga tributária e encargos sociais.

Esses fatores, tais como a minimização da ação do estado, a redução das garantias sociais, a descentralização sem o devido repasse de recursos e as privatizações, contribuíram para a criação de movimentos sociais contra a doutrina neoliberal. A redução do papel do Estado, imposta pelas políticas de privatização e descentralização, reflete-se nas ações desses grupos e vai repercutir no estabelecimento do caráter descentralizador e participativo da CF de 1988.Como decorrência, a legislação que normatiza a educação, traz a obrigatoriedade da oferta do ensino fundamental para todos, a universalização do ensino fundamental e a erradicação do analfabetismo. Não podemos deixar de mencionar aqui a influência dos organismos internacionais na assunção desses objetivos. Evidencia-se o aprofundamento da intervenção desses organismos nas políticas educacionais de países situados à margem das economias centrais, em particular na América Latina. Neste continente, as políticas educacionais vão ocorrer sob forte impacto de diagnósticos, relatórios e receitas, formulados no âmbito de órgãos multilaterais de financiamento.

No bojo dos estudos e propostas elaborados por esses organismos, evidencia-se a defesa da descentralização como forma de desburocratização do Estado e de abertura a novas formas de gestão da esfera pública; da autonomia gerencial para as unidades escolares e, ainda, da busca de incrementos nos índices de produtividade dos sistemas públicos. A Conferência de Jontien impulsionou os nove países, entre eles o Brasil, com a maior taxa de analfabetismo do mundo, a desencadear ações com o objetivo de satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem e da promoção da eqüidade, passando por mudanças no modelo de gestão da educação e culminando na definição de competências e responsabilidades das instâncias de governo em relação à gestão e financiamento da educação básica. Assim, o Brasil assumiu a responsabilidade de assegurar à sua população o direito à educação- compromisso reafirmado e ampliado na CF/88. Dados esses fatos, no final da década de 80 foi grande o incentivo à participação dos municípios em programas de parcerias, multiplicando-se os convênios entre os estados e municípios com vistas ao transporte de alunos, à merenda escolar, às construções escolares, datando desse período a municipalização do ensino pré-escolar.

A LDB e a Lei do Fundef (hoje FUNDEB, com a abrangência da Lei sobre o Ensino Médio e Educação Infantil) impulsionaram a descentralização do ensino, trazendo uma grande modificação na educação do país, definindo o município como ente federativo autônomo na questão da formulação e da gestão da política educacional- Sistema Municipal do Ensino. Essas medidas de ordem legal definiram também o regime de colaboração e parceria entre a União, os Estados e Municípios. Todavia, sendo o Brasil um país de grande desigualdade, com municípios ainda sem auto-suficiência, a municipalização encontrou sérios entraves pela falta de recursos financeiros.

Apesar de constar em uma Constituição recente, a idéia de municipalização da educação não é uma idéia nova no Brasil, data da época de Anísio Teixeira associada à doutrina política e social da CF de 1946 e que não se consolidou: "Há cem anos os educadores repetem-se entre nós. Esvaímo-nos em palavras..."(ANÍSIO TEIXEIRA, apud ABICALIL – 2001: 206).

REFERÊNCIAS Bibliográficas:

MONLEVADE, João. Educação Pública no Brasil: contos e descontos. Ceilândia-DF: IdéiaEditora, 2ª edição, 2001.

SOUZA, Celina. Governos e sociedades locais em contextos de desigualdades e dedescentralização. Ciên. saúde coletiva,vol. 7, nº3, 2001.

SOUZA, Nali de Jesus de. Desenvolvimento econômico. 2ªed. São Paulo. Atlas. 1995.


Autor: lucia czer


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