O Homem Que Dava Dinheiro



O Homem Que Dava Dinheiro


Essa é a história do homem que dava dinheiro para os pobres. Ele enxergava pouco, fato que o levava a ter maços e maços de notas de um real. Fazia questão de dar a quantia exata. Mas como não enxergava direito, contava as notas uma a uma.

- Quatro, cinco, seis, sete. Pronto, eis a quantia que você pediu.

O pobre anuía, pegava as notas e partia.

O homem que dava dinheiro tamborilava o anular e o médio no joelho, pronto para ajudar o próximo.

Ele nascera multiforme, embora fosse idêntico em sua fonte, tal qual a verdade imutável. Por isso dava dinheiro. Para mudar outras verdades. Ou para fortificá-las. Para ele tanto fazia. Desde muito cedo começou a semear, sabendo que o resultado esperado nem sempre é o que se espera.

Passou a vida ganhando presentes que vinham de outros tempos, de tempos em tempos. Talvez por isso resolveu doar sua fortuna, homeopaticamente.

Essa é a história do homem que dava dinheiro e que não raro andava ao lado de um flautista. Cada vez que o pobre chegava ele pegava em sua mão, respirava fundo e mandava o flautista executar um modo. Sempre um mixolídio, cuja sonoridade, ainda que arquitetada há 3.000 anos, lembra em muito a melodia dos repentistas e dos cantores de cordel.

- Alguém já fez isso antes de ti – dissera-lhe uma vez um pobre, com sorriso maldoso.

O homem encolhia os ombros e contava o dinheiro.

- Só percebemos a meta olhando o ponto de partida – respondeu, entregando a soma.

Essa é a história do homem que dava dinheiro e que nasceu muito antes que a unidade fosse repensada. Em dias de frio os pobres ficam indecisos e sentem vontade de falar.

- Fale a sua desgraça – repetia o homem aos pedintes que se enfileiravam – mas antes deixe que o flautista execute um modo.

- Uma escala menor, faz favor – pediu a senhora de meia idade, justificando – estou cansada. Preciso de 15, para pagar o gás.

- Menor...que seja – suspira o homem, contando 15 cédulas de um real – não quer falar? Qual a sua desgraça?

- Joguei fora o período útil. Não sei por onde andam meus filhos...

Ele ouvia no silêncio não  perturbado pela escala menor. Tirou do bolso um punhado de ervas e deu a mulher.

- Pra que isso?

- Todas as noites faça o chá e pense nos seus filhos. É uma forma de tê-los de volta.

- Como será? E se estiverem mortos?

- Os mortos não morrem. E ajudam quando são ajudados.

Essa é a história do homem que dava dinheiro, e que na época da estiagem trazia junto de si, além do flautista, um cachorro velho de pêlo dourado. Muito antes de doar sua fortuna ele trafegou pelos dois rios de onde vieram todas as idéias. Amealhou riquezas fazendo o que os outros queriam e passou a distribuí-la quando descobriu que poderia fazer o que quisesse.

Durante dez anos ele e o flautista ficavam na escadaria da Ladeira Porto Geral, das duas às cinco da tarde. Houve tempo em que o cachorro lhes fez companhia. Os pobres para lá acorriam.  

Dado outono, outro homem apareceu.

- Vejo que o sr.  distribui dinheiro pelas redondezas. O flautista é seu filho, certo? Se parece muito. Vejo também que toda tarde, perto das 5, o sr. se retira às pressas.

- Somente quando não está nublado – retruca o homem - Nesse horário, o sol incidente me causa certa angústia. Não sei como lidar, assim, prefiro partir. Pode reparar que no verão, em dias nublados, saio sempre por volta das sete e trinta. De quanto precisas?

- De vinte e oito e cinqüenta. Senão cortam a luz.

- Que seja...não carece justificar. Todos sabem que não dou mais do que trinta – falou o homem, contando as notas mecanicamente.

- Sei também que não és cego – disse-lhe baixinho o outro homem – por que finges?

Baixinho o homem que dava dinheiro respondeu:

- Poucos se aproximariam se estivesse por demais engalanado, distribuindo dinheiro e tudo mais. Minha suposta fraqueza deixa-nos de igual para igual, ao passo que mantém certa distância.

- Seu filho já tem 18 anos?

- Completa no mês que vem.

- Então amanhã, venha sozinho. Sabe quem eu sou, não é?

O homem que dava dinheiro para os pobres pensou um momento antes de sussurrar:

- Você é aquele que me levará para o outro lado.

- Mais ou menos...digamos que eu esteja entre você e Ele.
De qualquer forma, estou lhe dando a chance de mudar o seu destino.

- Não há nada que mudar. Direi para o meu filho ficar em casa. Ele não me viu chegar no mundo, não é necessário que me veja sair. Estarei aqui amanhã no mesmo horário.

No dia seguinte, a Ladeira estava às moscas. O homem que dava dinheiro para os pobres não aparecera, e por conseguinte os pobres se dispersaram.

Perto das cinco um caminhão desgovernado atingiu em cheio o local onde o homem que dava dinheiro costumava ficar. Ninguém se feriu.
O outro homem permanecera o tempo todo a certa distância, tudo observando. Tão logo o sol se pôs um menino descalço apareceu, lhe entregando um bilhete. Estava escrito:

“Achei melhor agradecer. Dizem que um coração agradecido fala com Deus”.


Autor: Bernard Gontier


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