A capela de Santa Maria



 

 

 

A CAPELA DE SANTA MARIA

De Romano Dazzi

 

A pequena capela de Santa Maria estava escura e silenciosa.

 

Poucas pessoas passavam por lá, mesmo durante o dia, e à noite, então, ninguém se arriscaria a atravessar o mato,  o terreno acidentado, as sebes espinhosas de avelãs, só para encurtar de meia légua o caminho de casa...além do perigo de ser perseguido por algum fantasma......pois todos sabiam que  fantasmas eram uma peculiaridade do local.

 

Apenas uma coruja e uma família de  pardais tinham os ninhos sob as telhas e pareciam ter combinado os horários para vigiar a integridade da Capela.

 

A história dela era bem antiga: durante um longo período de seca, uma camponesa  devota ia rezar pedindo água, todos os dias, na confluência do caminho com uma valeta rasa, diante de uma pequena imagem de Nossa Senhora.

 

Fez isso por mais de dois meses e  finalmente, um dia,  apareceu um fiozinho de água; nos dias seguintes, o riozinho foi encorpando  um pouco e a cada dia o volume de água aumentava.

Era água fresca, limpa, pura; surgia calmamente entre a areia e dançava ao descer o suave declive,   parecendo alegre, quase viva, quase cantando.

Em dias de sol, as pedras brilhavam  no fundo do riacho, expondo todas as variações de amarelo, ocre e  principalmente cinza – um cinza esverdeado,  típico das dolomitas.    

Quando alcançou aquele volume modesto, mas constante, próprio  das fontes de montanha,  a corrente se estabilizou e continuou correndo pelos anos afora, sem parar nunca mais, no inverno ou no verão.

Foi um milagre. Sem dúvida, um milagre.

A comunidade reconheceu-o e todos concordaram com um agradecimento indispensável.

A Capela foi construída  como se fosse uma pequena ponte sobre o riacho; o frescor que emanava da água corrente e a sua própria posição  amenizavam, nos verões abafados, o calor dos poucos camponeses que passavam por lá e aplacavam sua sede..

 

.......................

 

Naquela noite, como em todas as noites, o sacristão chegou da vila, para acender as velas votivas.

Fazia isso metodicamente, desde que um casal de namorados, obstados pelas famílias,  perdido na mata durante um temporal, havia sido encontrado sem vida, a poucos metros da capela.

Nunca se soube se os infelizes namorados haviam decidido  pôr um fim à vida juntos, como ditavam os padrões românticos da época, ou se haviam morrido por uma mera fatalidade.

As pessoas acabaram imaginando que eles tinham procurado inutilmente um abrigo  e por fim deixaram-se cair, exaustos, esgotados, sem perceber que a salvação estava tão perto. É tão fácil morrer de frio, morrer de amor, morrer de descaso.....

 

Ninguém tinha culpa, mas a comunidade ficou abalada e  todos se sentiram um  pouco responsáveis.

Por esta razão, todas as noites o sacristão acendia as velas na capelinha; filtrando através das janelas coloridas, a fraca, trêmula luminosidade podia ser vista talvez a uma légua de distância; assim ninguém mais morreria por não ter encontrado o abrigo.

Na manhã seguinte, o sacristão levaria de lá os restos de cera, substituindo-os pelas  velas novas, que acenderia à noite.

 

Mas aquela era uma noite especial; as  velas começaram a arder calmamente, no silêncio da noite , conseguindo apenas arranhar timidamente as trevas,  com sua fraca e trêmula luz.

Quando ficaram sozinhas, poucos instantes depois,  começaram uma conversa apenas sussurrada, como se não ousassem interromper o recolhimento do silêncio.

 

A primeira dizia: - Destino muito amargo, este, de arder uma noite inteira, para ninguém, sem razão e sem finalidade – e ainda, morrer ao amanhecer  Uma inutilidade total. Mas nada podemos fazer, a não ser esperar pela manhã....é a vontade de Deus.

 

- Não, não, - respondia a segunda – tenho certeza que existe uma razão, um objetivo secreto; só que nós ainda  não conseguimos descobri-lo; mas ele existe.  Devemos continuar a  procura-lo.

 

A terceira interveio – Acho também que deve  ter uma finalidade; mas é proibido ir procurá-la; os Deuses, todos sabem, são ciumentos dos seus segredos e punem com crueldade os  curiosos, que tentam intervir no que não lhes diz respeito.

 

-Por que, não podemos? – retrucava a segunda. – É assunto meu, que me diz respeito, sim,  e quero ter o  direito  de procurar,  pesquisar,  para dar  uma razão à minha existência.

 

- Eu também estive pensando nisso – disse finalmente a quarta vela - na inutilidade de ficar acesa por uma noite inteira, sem razão, e me apagar ao amanhecer. – Melhor seria se eu queimasse de uma vez só, em uma chama brilhante, que seria vista por todos,  por um único segundo que seja, deixando  nos olhos de todos  o reflexo inesquecível dessa explosão de luz. E acabaria  aí mesmo, sem retorno, sem demoras.

 

Não – retornou a primeira – vou procurar ficar acesa mais tempo, mais tempo, por todo o tempo do mundo, por todo o tempo que me for dado, porque amo demais sentir-me viva, sentir-me útil.

Amo saber que de um canto escuro desta floresta  poderá surgir, daqui a uma hora, ou um ano, ou uma vida, alguém que se salvará pela minha luz.

E quando eu acabar, o Sacristão colocará em meu lugar outra vela, e mais outra, e mais outra; e o nosso destino estará perpetuado.

Não será este, talvez, o fim oculto que estamos procurando?

 

Neste momento, duas sombras destacaram-se na penumbra da capela.

Avançaram um pouco, pararam, como se estivessem incertas e temerosas.

Eram, com certeza, dois fantasmas.

Mas não assustariam ninguém.

Não eram esqueletos brancos, balançando os ossos, ou caveiras rangendo os dentes e rindo obscenamente.

Eram apenas figuras indistintas, quase diáfanas, capazes de deslizar suavemente sob um raio de luar, de dançar estendendo-se pelas paredes,  de se alongar preguiçosamente pelo chão.

Lentas e silenciosas,  deixavam no ar uma estranha sensação de conforto, de paz,  junto com uma ligeira fragrância de jasmim.

Era aquele antigo casal de namorados.

- Você tem razão – disse uma das sombras –  numa noite de tempestade, há muito tempo, ficamos perdidos e percebemos que estávamos sós.

Uma palavra terrível, mortal: estar só significa não encontrar  um abrigo, uma esperança, uma luz.

Apenas uma luz, e estaríamos salvos; com certeza havia pessoas nos arredores; mas cada um estava procurando se proteger, fechado em sua casa, incapaz de oferecer uma ajuda.

Foi  o egoísmo das pessoas que nos deixou morrer.

 

As sombras se dispersaram, o silêncio voltou a reinar.

O amanhecer já se aproximava, os primeiros tênues vestígios de luz rasgavam com imenso cuidado o ligeiro véu da noite.

Os pardais começavam a piar, uma leve brisa mexeu as folhas da parreira.

Quando o sol irrompeu pela janela do leste, encontrou, como toda manhã, apenas o que sobrara das quatro velas.

Quatro montinhos de cera, que não tinham mais nenhuma história para contar.   

 

 

 

 


Autor: Romano Dazzi


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