O pintor



159 - O PINTOR

De Romano Dazzi

 

O leste foi clareando lentamente. Apenas uma linha, de início, um traço quase invisível;  depois uma faixa cada vez mais ampla, que foi ficando vagamente esverdeada, descascando aquele azul escuro, quase preto,  com o qual alguém tinha pintado o céu na noite anterior.

 

- “Que desperdício!” pensou o João ao sair de casa e admirar, como fazia todas as manhãs, os tantos matizes que iam se formando. – “que enorme desperdício de tinta,  nesse tamanho de céu; e  para repintar tudo daqui a poucas horas...

 

Ele sabia exatamente o que dizia, porque era um pintor.

 

Não um desses pintores refinados e famintos, que compõem obras sobre qualquer superfície, em papéis, tecidos, plásticos, em portas de madeira e nas pedras  das calçadas.

 

João era apenas um pintor de paredes, eficiente e capaz, caprichoso e determinado.

 

Claro que gostaria de pintar naturezas mortas, modelos nus, pontes e torres, montanhas nevadas e campinas amarelas, ondas de tempestade e barcos adormecidos.

 

Mas morreria de fome, antes de conseguir vender um único quadro.

 

E pior,  depois de sua morte, os críticos diriam:

- “Que formas, que cores, que inspiração!  um pintor maravilhoso, este; pena  ter morrido tão cedo....com tanto ainda para realizar!...E morrem sempre por  causa desta doença estranha de todos os bons artistas: a fome!; a necessidade boba de comer!.....”

 

Não. Não seria vítima de sua própria ambição. 

 

Determinado a sobreviver, pintaria paredes, com o espírito de um cruzado, com a força de um missionário, .

Paredes, porque elas lhe permitiam sobreviver, ainda que modestamente.

Quadros, definitivamente não.

 

Nisto ele pensava, enquanto amarrava precariamente as escadas na capota do carro dando de vez em quando uma olhadinha no leste, já amarelado, alaranjado, avermelhado, até  o sol aparecer, triunfante e poderoso, numa forte explosão de luz.   

 

- “Sorte que os pintores dormem até tarde” – pensava ele    “se fossem obrigados a ver este espetáculo todos os dias, parariam de pintar, envergonhados com o pouco que um artista consegue fazer...

 

Cumprindo sua rotina, enfiou latas e brochas, réguas e rolos, lixas e estopas no porta malas. No banco traseiro ia  uma tabuleta caprichada, anunciando os seus serviços,  baratos e de qualidade,

 

Ela a colocava num lugar estratégico, ao lado do carro estacionado nalguma rua tranqüila. 

 

Meteu o pé na estrada, para chegar antes que o movimento engrossasse e para estacionar e algum ponto melhor. .

 

Não tinha nenhum trabalho em vista, mas aprendera que as pessoas,  vendo o equipamento e a tabuleta, lembravam que precisariam pintar algum cômodo e vinham perguntar....negociar.....e acabavam quase sempre fechando algum pequeno serviço.

 

Já começava a esquentar, o sol batia nos seus olhos , tornando difícil dirigir.

Tão difícil que ele teve que sair para o acostamento e parar para retomar o fôlego.

 

- “Estou ficando velho” – murmurou de si para si  – “Vou fazer trinta e dois em setembro! “  Pareceu-lhe ouvir um murmúrio de desaprovação. E uma voz suave de pessoa idosa, comentou: - espere juntar  mais uns cinqüenta, antes de começar a falar....”

“ Ehm?! Quem falou? O que foi?  O que está acontecendo? -  perguntou assustadíssimo, sem obter resposta; -“sorte minha” -  pensou - ”que o carro estava parado; se estivesse andando, teria  provocado um acidente!” -

 

Ainda conferiu o celular, mas não havia registro de chamadas.    

 

Nem bem refeito, sentiu que algo estava funcionando muito mal. Começou a levitar, sentiu seu corpo atravessar a capota do carro, apesar da escada amarrada, como se fosse uma folha de papel e foi subindo, lentamente, suavemente...

 

Pensou que o café com leite devia estar estragado; ou o pãozinho; ou então, este mal-estar viria do cheiro da gasolina?  

Enfim, sem entender nada, estava subindo, como um balão de São João. Olhou para baixo – e aí começou realmente a sentir-se mal.

Estava tão alto, que passava perto de compactos blocos de nuvens. “Vai chover”  murmurou, desmaiando 

Foi a última coisa que disse; encomendou a alma a Deus e fechou os olhos.

 

Talvez agir assim, deixar-se levar não resistir,  não seja a solução mais sensata, mas é a mais simples; ele fazia assim quando não conseguia acompanhar a aula de matemática: fechava os olhos e trancava os pensamentos, de forma a não escutar mais nada. Depois, mais tarde, em seu quarto, fazia um rewind e um replay mentais; e assim  lembrava de todas as explicações e encaixava todos os exercícios.

 

Mas naquele primeiro momento, era essencial desligar.

Não demorou muito, este estado de graça. Aterrissou sobre uma almofada ou um tapete muito macio.

Abriu os olhos e viu que estava no Paraíso. 

Como sabia que estava no Paraíso? Mas que pergunta!

É claro que se sabe, quando se chega  no Paraíso!  Todos sabem!

Tudo é exatamente igual ao que sempre imaginamos; não há, na realidade uma grande variedade de  cores; todas as coisas, os objetos, as paredes, as portas, são impecavelmente brancas; e os corredores, os uniformes do pessoal de serviço, os elevadores.(que só têm seta para baixo).

Enfim, é uma monotonia só – especialmente para um pintor.

Havia poucas pessoas (ele achava que encontraria multidões, mas pelo visto a humanidade era mais safada do que ele  imaginava)  e todas deslizavam em silêncio. Tudo lembrava uma catedral – ou um convento de clausura..

João ficou aguardando que algo acontecesse.

    

 

Uma voz suave entrou em seus ouvidos.

Ele não tinha trazido fones e não havia alto-falantes.

Mas a voz chegava clara, com um volume absolutamente perfeito.

A voz falou:

-“ Bom dia, João. Fez boa viagem? Sabe onde está e por que está aqui?

“Não. Não sei de nada; não sei onde estou, nem o que faço aqui.; tentou responder João. - Imagino, mas, não tenho certeza.. não tenho mais certeza de nada.....

As respostas não lhe saíam da boca, mas diretamente da cabeça.  

-“ Acalme-se, João; respire fundo!...”. 

Eu estou calmo, não vê que estou calmo, não? Eu só quero saber o que diabo (não – pensou – diabo não é coisa daqui. Nem existe aqui...) enfim, o que é que está acontecendo... Eu morri?  Avisaram minha mulher? Não digam nada à minha filhinha, pelo menos por enquanto, por favor!....

- “Não, João. Você não morreu, não. Foi chamado aqui provisoriamente, só para uma consulta. Mandaremos você de volta rapidinho.....O assunto não leva nem dois minutos, garanto...”

João suspirou, aliviado.

“De que se trata?”

“ Bem. Temos recebido diversas reclamações  sobre o uso do branco nos ambientes e equipamentos aqui em cima. As pessoas estão cansadas e querem mudar de cor. E Deus concordou com uma mudança, desde que não seja radical demais.”

“E vocês se dirigiram justamente a mim? Digo, a um pobre diabo, um pintor de paredes, sem passado e sem futuro...”.

“ Mas é exatamente isso que temos aqui. Não temos passado nem futuro.  Apenas o aqui, o agora, o nunca; o instante intangível....... Bem. Vejo que não interessa. Olha: procuramos o conselho, a orientação de vários pintores,

Conversamos inicialmente com os da casa;  sabe, os que desenvolveram assuntos sacros, que pintaram anjos, madonas, santos; que decoraram capelas, igrejas e catedrais ...... Nomes conhecidos, ilustres, autoridades no assunto..... Mas os resultados foram desalentadores. Nesta imensidão, qualquer cor é excessiva, assustadora e impositiva.  Imagine pintarmos tudo de amarelo, como queria o Sandro...

“Sandro? E quem é? “

“Como,  quem é!” o Botticelli!”

“Ah, aquele Sandro! Agora entendi...”

“Ou tudo de azul e rosa, como aconselhou outro nome de boa fama,  o Bonarroti...

“Bona o quê? Está zombando de mim?”

“Não, não, João; talvez você não se lembre; é o Michelangelo...”

“Ah, bom... Este eu conheço.... Sim... E o que ele queria?”

“Listas azuis e rosa. Por todo lado. Você faz uma idéia?”

 

- Então, vocês decidiram perguntar a um joão ninguém, não é? A um pobre coitado, que não entende nada, que não sabe nada....

- Pare João, sabemos muito bem a quem estamos pedindo conselho.

  E não garantimos aceitá-lo, qualquer que ele seja. 

  Mas você é um “naif” um ingênuo, um puro.

  Não carrega teorias,  nem cursou escolas.

  Pinta o que sente -  não o que vê; pinta com  a alma, não com os olhos.

  Mesmo  que só pinte paredes feias e cheias de buracos, de casas velhas e   

  mal feitas.

  É disto que gostamos, aqui no Céu: de coisas feitas, sim,  com as mãos; mas

  ditadas pela alma, pelo coração, pela paixão.

  Este, por sinal, é o melhor dom que os homens receberam: a paixão.

  E é com ela que você está trabalhando, há tempo, como vimos, em nossas 

  observações.

- Está brincando, não é? Está fazendo pouco de mim!  Está se divertindo às minhas custas!

- Não, João, não. Aqui no Céu os assuntos da alma são sérios. Pare de ser criança.  Dê-nos uma sugestão....

- João tranqüilizou-se. Uma imensa paz, como nunca tinha conhecido, desceu sobre ele.   Refletiu, andou um pouco de um lado para o outro, mediu com o olhar os corredores, os imensos janelões que davam para o infinito, estudou as sombras, pensou e escreveu sua opinião, em um longo pedaço de papel, que deixou preso em uma porta. ....

Dizia mais ou menos o seguinte::

Já que vocês não tem problemas com o custo das tintas, e principalmente das lixas,  nem com o preço absurdo da mão de obra, sugiro que pintem as coisas todas do Paraíso com cores que mudem aos poucos, de hora em hora, principalmente ao amanhecer do azul marinho ao vermelho vivo;  e ao entardecer, do amarelo ao vermelho, e deste ao verde claro, e depois escuro, até alcançar novamente o azul.; que mudem  entre o cinza branco do inverno e o verde novo da primavera; e deste, para o ouro do verão; e depois para o amarelo quente e saudoso  do outono....

Enfim, eu traria para cá, para o Céu, todas as infinitas cores que estamos vendo lá embaixo.

Mas, acima de tudo, é preciso que vocês façam um milagre: que abram uma larga estrada entre aquilo que as pessoas vêem com seus olhos, e a maneira pela qual o sentirão dentro de suas almas. Pois este caminho tortuoso está cheio de pedras e quase ninguém passa mais por ele.

......

 

Estava de volta. .

 

O carro na beirada da estrada, o guarda rodoviário desconfiado na defensiva, o sol já mais alto. Pediu desculpa e deu a partida. Voltou à rotina, dando um  suspiro de alívio.

 

Duas semanas mais tarde, enquanto apreciava o lindo pôr de sol do telhado de sua casa, afagou um papel que estava no bolso. Era um cartão de visita simples e baratinho.

Dizia apenas  :   

João – Pintor – Conselheiro de tintas do Paraíso.

 


Autor: Romano Dazzi


Artigos Relacionados


Como Ganhar Almas

ReflexÃo Dos Macacos

Avis Rara

A Sina De Ser Mulher

E-ducação

About Me

Mensagem De Natal