O doutor Samuele
O DOUTOR SAMUELE
De. Romano Dazzi
A tarde caía preguiçosa, depois de um dia de intenso calor.
O céu estava límpido e apenas alguns fiapos de nuvens ,navegavam lentos no horizonte, abraçando o sol que se punha.
Tarde de muita paz e tranqüilidade.
Centenas de andorinhas em rápidos vôos, cumprimentavam a chegada da noite, perseguindo-se umas às outras, alegres e barulhentas como crianças ao sair da escola.
Chegava ao fim o dia 27 de agosto, um dia fatídico, pelo que viria a acontecer depois – e o ano era 1939.
Samuele – o doutor Samuele, como todos o chamavam, com respeito e carinho - saía para o seu curto e lento passeio diário, respondendo a todos os cumprimentos que recebia pelo caminho.
Ele era uma figura única – bem conhecida na cidadezinha em que morávamos.
Era dono de uma pequena firma de telefones.
Quando vendia um aparelho, mandava junto os cabos para ligá-lo da casa até o poste; mas naquele tempo só se podia falar com uma centena de aparelhos, já instalados, todos nos arredores. Serie impossível falar com a Capital, ou com outro povoado próximo.
Era assim; o progresso chegava lentamente, bem mais lentamente que a História.
Devo dizer que naquele tempo ainda não existiam os grandes grupos, os Telecoms, os conglomerados de hoje.
Os telefones eram quase mudos, isto é, estavam apenas aprendendo a falar e por isso falavam pouco e mal.
Precisava-se ter o ouvido bem atento e treinado, e na maior parte das vezes mais se adivinhava do que se escutava.
Em compensação, não davam recados gravados, não tinham relógio embutido, não sabiam nada sobre o tempo, não faziam operações aritméticas e principalmente, esqueciam imediatamente o que se dizia ou se escutava neles; que grande vantagem !
Também tocavam pouco, naquela época na aldeia.
Era mais rápido e fácil, para mim, pegar na bicicleta e ir avisar o papai que o macarrão estaria na mesa em 8 minutos, e voltar a toque de caixa.
Tocavam pouco, os telefones, eu dizia; mas quando tocavam, era com uma campainha áspera , impertinente, que transmitia uma sensação de angústia e de urgência, e a gente sabia que um telefonema significava coisas graves.
O doutor Samuele, então, seguiu seu passeio até a pracinha Garibaldi (sempre há uma praça Garibaldi em qualquer cidade da Itália) e começou lentamente a voltar.
Era um homem, atarracado, baixo, quase gordo, vestido com uma elegância sóbria, uma distinção inata, que inspirava respeito e confiança (ou serei eu, agora, depois de tanto tempo, que o imagino assim?)
De qualquer forma, o doutor Samuele cruzou comigo, sorriu – um sorriso triste, pensativo, que nunca esqueci – e parou para conversar comigo.
Eu era apenas um garoto tímido e gordinho, avesso a conversar com quem quer que fosse, mas ele me cativou, tocou nas cordas certas da minha alma.
Perguntou que escola freqüentava, como ia na escola, quem era o meu professor – um só naquele tempo, dava conta de 30 moleques – e continuou conversando, mostrando interesse e carinho, como se o tempo tivesse parado.
Em poucos traços, contou quem era, o que fazia, como havia casado e enviuvado e como estava sozinho no mundo, tentando, dentro de suas limitações, torna-lo um pouco melhor.
Como se não estivesse dizendo nada de especial, foi falando e explicando coisas simples; hoje sei que ele instilou em meu espírito algumas das melhores idéias que já ouvi.
Era um homem só, mas participava do mundo.
Era um homem triste, mas unia-se às esperanças de todos os que conhecia e tentava acompanhá-los.
Falou-me da sociedade, da política, da guerra – e eu, dentro de meus poucos anos de vida, percebi, entendi e senti, muito do que ele sabia.
Outras pessoas diziam que não haveria guerra; e que, mesmo que houvesse, a Itália não participaria – e ganharia fortunas vendendo produtos e armas.
Ele foi sério, curto, incisivo: - “Infelizmente, a Itália não poderá ficar na neutralidade. Já ouço o troar dos canhões” – sentenciou – “a guerra está às nossas portas; logo, logo, vai invadir nossas casas, confundir nossa vida, incendiar nosso mundo. Haverá fogo, e cinzas e lágrimas.... Todos teremos que sacrificar uma parte de nós; alguns, a própria vida.
Mas lembre-se, tudo faz parte de um grande plano.
Deus vai repor tudo no lugar, depois que os bárbaros se forem mais uma vez. E a humanidade terá aprendido uma lição....”
As andorinhas tinham voltado aos ninhos – ou tinham adormecido pelo caminho – a lua surgia majestosa, com uma claridade estonteante; o mundo, cansado, começava a girar mais lento até quase parar.
Já estávamos na frente da casa dele. De repente, ouvimos o telefone tocar. Aquele som agudo e irritante, como se fosse um corvo zangado.
O doutor Samuele calou-se por uns instantes.
Depois, calmamente, sem demonstrar nenhuma emoção, disse: -“minha hora chegou; adeus, garoto; foi bom conversar com você”.
Estendeu-me uma moeda e pediu-me desculpas por ter-me incomodado – a mim, um garotinho desajeitado, que de nada sabia.
Mas tanto ele quanto eu sabíamos que havia nisso tudo uma grande lição de vida; mesmo que eu ainda não a entendesse direito.
Entrando em casa para atender o chamado, cumprimentou-me da porta, com aquele seu sorriso triste. Foi a última vez que o vi.
Como um grande professor, em menos de uma hora, entre o pôr-do-sol e a escuridão, havia-me mostrado a bonita face de sua sabedoria, de sua humanidade. A grandeza de caráter é simples e modesta. Ela nos cativa, nos conquista e nos arrebata.
No dia seguinte, alguns brutamontes de camisa preta – que eu nunca poderia chamar de homens – levaram o doutor Samuele.
Alguns anos depois, quando estávamos fazendo as somas das nossas incontáveis perdas daquele conturbado período, fiquei sabendo que ele tinha morrido em um campo de concentração. Esforço-me ainda hoje para acreditar que ele não tenha sofrido muito.
E a moeda – a moeda que continua comigo – era uma “colombina”; valia 5 liras e ostentava no verso uma pomba, com um ramo de oliveira na boca.
Autor: Romano Dazzi
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