A notícia que nos move ou sobre a bola da vez



O acidente do avião da Air France, é a bola da vez dos veículos de informação. É a noticia que nos move a curiosidade sobre a desgraça dos outros. Da internet aos jornais escritos, passando pela TV e pelas conversas de várias rodas de amigos o tema recorrente é a queda do avião, suas possíveis causas e o horror pelo qual devem ter passado todos os que estavam a bordo. Mas, insisto, essa é a bola da vez esperando a tacada da próxima catástrofe a encher as páginas dos noticiários e os círculos de conversa.

A partir desse comentário inicial, você que está começando esta leitura pode pensar que sou insensível à dor e à perda de mais de duzentas pessoas nesse acidente aéreo. Mas não se trata disso. Sou apenas realista e um dos que desejam chamar a atenção para outros fatos que nos rodeiam. Já falei disso por ocasião do desastre no aeroporto de São Paulo, um tempo atrás, e há poucos dias, ao comentar algumas tragédias que se impuseram aos noticiários sobre a crise econômica. Como o tema é recorrente, volto a ele: a bola da vez.

É evidente que se trata de um lamentável acidente e que não desejamos isso nem aos nossos inimigos. Mas tanto o imaginário popular como os veículos de comunicação esperam, ansiosos, pelo próximo desastre, pela próxima catástrofe, pelo próximo grande acidente ou impasse internacional que substituirá a este... Não adianta se estarrecer, somos assim mesmo. Podemos até dizer que detestamos o mal, que nos causa asco as malandragens políticas, que nos causa pesar as dores de outros – e, é claro, não queremos nada disso para nós. Entretanto e na verdade, feito formigas atraídas pelo mel, somos atraídos pelas catástrofes, acidentes e dores dos outros.

Falo isso não só por mim, mas porque essa é uma constatação que podemos fazer em qualquer esquina ou rua em que ocorra um acidente: fervilha de curiosos, com expressão consternada, deliciando-se com o episódio. Todos querem ver e saber o que está acontecendo. O combustível que nos move é a curiosidade Todos permanecem no local, circulando em busca de detalhes. E, apostando nisso, os veículos de comunicação se aproveitam: noticiam e vendem noticias.

Isso que digo agora, já era afirmado por Nietzsche no final do século XIX. Em seu livro "O crepúsculo dos ídolos" o pensador alemão assim comenta a avidez humana em festejar o sofrimento alheio: "É verdade que repugna à delicadeza, mais ainda, a hipocrisia de animais domesticados (quero dizer os homens modernos, quero dizer nós) representar-se com todo o rigor até que ponto a crueldade era alegria festiva na humanidade primitiva e entrava comoingrediente em quase todos os seus prazeres; [...]. Indiquei já de maneira circunspecta a espiritualização e a 'deificação' da crueldade que não cessa de crescer e atravessa toda a história da cultura superior". E, poderíamos acrescentar, a cultura humana se delicia com a dor alheia. É o que continua afirmando o mesmo genial pensador alemão noutro parágrafo: "ver sofrer; faz bem; fazer sofrer melhor ainda: ai está um duro princípio, mas um principio fundamental antigo, poderoso, humano, demasiadamente humano".

O que é esse princípio "demasiadamente humano"? A crueldade e a sede de ver o sofrimento alheio.

O que isso tudo quer dizer?

Primeiro: somos ávidos por notícias e preferimos as catastróficas;

Segundo: ver a desgraça alheia nos dá prazer

Terceiro: os veículos de comunicação, que sabem disso, se esbaldam em nos dar essas notícias;

Quarto: tanto nós como os veículos da comunicação estamos atentos, procurando outras desgraças para, esquecer esta e nos dedicar àquela;

Quinto: não adianta me chamar de insensível ou dizer que o que falo não é verdade. Caso o que digo não fosse verdade os veículos de comunicação não se deteriam tanto nesses temas. E nós não nos deteríamos em comentar os problemas do outro lado do mundo e olharíamos para as desgraças que ocorrem do nosso lado.

Esse é o nosso problema e, podemos dizer, um dos principais problemas ou a grande questão que move a humanidade: olhar não para o que nos circunda, mas para o que foge ao nosso alcance. E, mais uma vez, isso move os interesses dos veículos de comunicação. E a bola da vez permanece na boca da caçapa, esperando a tacada final. E com isso nos distanciamos do nosso derredor.

Diante de tudo que sabemos sobre os desastres do mundo, poderíamos nos perguntar o que é que sabemos a respeito da sociedade que nos circunda? Quantos morrem no trânsito por negligência das autoridades? Quantos morrem por imprudência dos motoristas? Só que isso não nos chama a atenção, pois embora seja uma catástrofe maior do que a do avião, ela está ao nosso lado. Da mesma forma que não nos chama a atenção os problemas ambientais que nos circundam ou as crianças de nossas ruas. O número dos que morrem nas filas de hospitais ultrapassa o total dos que estavam naquele avião, mas não chama nossa atenção pois está ao nosso lado e a mídia não lhes dá atenção pois acontece todos os dias.

A mídia está interessada em noticia que envolve aqueles que são considerados grandes personalidades, ou nos grandes acidentes. E os grandes se valem da mídia para se evidenciarem, dando razão a George Berkeley quando afirmava que "ser é ser percebido", pois se não estão na mídia não são. Também por isso a atenção dos veículos de informação se voltam para os dramas das pessoas do povo apenas quando isso beira a catástrofe. E nós permanecemos esperando a notícia que nos move. Enquanto não chega uma nova catástrofe vamos nos divertindo com a bola da vez.

Neri de Paula Carneiro – Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador.

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Autor: NERI P. CARNEIRO


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