Segredos da Noite



1

No calor da tarde, o ônibus corre.

À janela, Jair olha o que vai ficando para trás. Cercados. Aqui e ali uma rês pastando. A casinha afastada, com o terreiro limpinho. Um ou outro trabalhador puxando a terra para depois fazer o plantio. Um pássaro voando de uma árvore à outra. O céu azul, de nuvens passeando devagarzinho...Cenas que lhe enternecem o coração, o faz sentir a paz boa do interior, do alto sertão que o ônibus corta, vencendo-a. Ah, se pudesse viver por aqui, longe da cidade grande, cheia de violência, desajustes sociais, a luta inglória para se manter vivo, não se entregar!

Ao seu lado, vai à mocinha morena, cochilando, entregue ao mormaço do interior da condução. Os demais passageiros também se mostram sonolentos, calados. À frente, o motorista gordo, negro limita-se apenas à sua função de dirigir. Responsável, entrega-se ao trabalho.

Jair permanece com a atenção ao que se perde para trás. E lembra-se da Ângela, a namorada a quem veio visitar e conhecer os seus pais.

- Jair por que você não fica aqui em casa?

Ele não aceitou o convite, temeroso dos falatórios, tão comuns em cidades do interior e, se justificou:

-Ângela melhor eu ficar na pensão de D. Josefa. Assim, se evitam as conversinhas, fofocas. Sou apenas o "cara" da capital que chegou para conhecer os pais da moça...

Pausa e, sorrindo:

- A quem estou amando!

- Ah, Jair...

A mão sobre a sua e os repentinos passos duros na sala conjugada, como se anunciassem que alguém chegava e a mão da moça libertando-a da sua, voltando ao colo da dona.

- Bom tarde, seu Jair.

- Boa tarde, seu Juca.

O velho então o fitando:

- Volta quando pra capital?

- Amanhã, seu Juca.

- Cedo. Por que não demora mais um pouco?

- É o trabalho...

Então a voz da mulher magra também adentrando na sala, se fez ouvir:

- Juca, o moço tem seus compromissos.

- Bem sei disso, Santana. Bom...

Afastou-se, entrando no corredor de quartos nas laterais e na sala seguinte, onde daí ganhou o terreno atrás.

- Garanto como o Juca foi olhar como tá de água o barreiro.

- É mãe, o pai se preocupa muito com a seca.

- E é pra se preocupar, filha.

Ela então os deixou outra vez sozinhos:

- Vou dá o recado do compadre Donias ao Juca. Me alembrei agora.

Em seguida, fazendo o mesmo percurso do marido ao se ausentar, foi encontrá-lo à margem do barreiro, analisando o volume d'água.

- Tá gostando daqui, Jair?

A voz suave, na indagação e ele:

- Estou. É pena eu não poder me demorar mais uns dias.

Silêncio entre ambos. Através da porta aberta, um carro-de-boiscruzava a rua larga, com o homem magro gritando com os animais:

- Bora Pintado!

A vara furando o lombo do boi, que nervoso, vacilava a caminhada sobre a areia acinzentada da rua. A zoada ritmada do canto das rodas se afastando... Um cão latindo distante. E a paz de novo abraçando as residências conjugadas, de porta e janelas, sem moradores às janelas ou na calçada. À noite chegando, enquanto ele e Ângela mantinham-se calados, apenas aconchegados pelo silêncio, que dizia tudo, definindo-os.

O ônibus estaciona. A companheira de viagem então desperta:

- Vou estirar um pouco as pernas.

Ergue-se sorrindo, exibindo as covinhas, sacudindo a cabeleira negra, longa para trás.

Jair analisa-a discretamente. Bonita moça. Por que também não vai estirar as pernas, exercitando-se? Sente-se mole, sem ânimo e permanece sentado, acompanhando com os olhos o corpo esguio, feminino da parceira de viagem movendo-se na calçado do restaurante, exercitando-se.

Logo ela retorna, com os passageiros que também deixaram o ônibus, para lanchar ou apenas se exercitar, e o coletivo retorna a viagem, já então a noite chega, com as luzes acesas dos postes espaçados à entrada da vila. Jair cerra os olhos, buscando relaxar, repousar. A jovem fitando-o, sorri, com malícia, enigmática.

O rapaz cochila ao embalo sacolejado do transporte.

2

Desperta, como se alertado por algo... O rosto de traços corretos. Os olhos que brilham na semi-escuridão do ambiente da condução. O sorriso de covinhas. Os lábios que se entreabrem e... Os caninos que devagarzinho vêm e mordem-lhe o pescoço, sugando-lhe o sangue, como numa carícia... A sonolência. O abandono dos sentidos. Adormece.

3

Desperta. Ao seu lado, a cadeira está vazia. Onde está a morena graciosa, parceira de viagem? Provavelmente desceu numa dessas paradas do ônibus.

Adormecera sim, daí não ter percebido a saída da moreninha. Sente o lado esquerdo de o pescoço doer e a repentina lembrança do rosto. Os olhos brilhando. O sorriso. Os lábios entreabertos, com os caninos salientes... Terá sonhado?

- Bem provável.

Diz, em voz baixinha, justificando-se. A noite tem seus segredos, que nos iludem.

- É tive um pesadelo.

Ergue a mão e fricciona a pele do pescoço, que queima.

4

Manhã. Ao fazer a barba, defronte do espelho sobre a pia, no banheiro, descobre as marcas diminutas, paralelas na pele esquerda do pescoço, já arroxeadas, e fica pensativo. O que quer dizer essas marcas? E aqueles caninos... Não, está imaginando coisas. Como sempre, imaginoso, foge à realidade. Justifica-se.E, ao escovar os dentes, então vê os caninos maiores, semelhantes aos caninos daquela noite da viagem, ao despertar.

Perplexo, então entende. Compreendendo-se.


Autor: Paulo Valença


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