De luau em luau



O pendor de Luca Matéria por pesquisas de campo lhe apareceu, quando ainda pastorava iaques no vale do Brahma putra. Gostava de observar os costumes locais, especialmente aqueles mais remotos, como as uniões conjugais coletivas, que se realizavam em solidariedade com a natureza, nas festas da semeadura.Já àquela altura fazia anotações, as quais repassava a um etnólogo romeno acampado no Himalaia.

Ninguém nunca perguntou como LM foi parar naquelas bandas. A sua vocação de andarilho excêntrico explicava tudo.

Mais velho e mais rodado, ele se encontra, desde o último verão, numa ilha ameaçada pelo mar, integrante de um arquipélago indefeso.

Agora, ele garante que aportou ali atraído pela notícia da quebra de um velho tabu, o tabu de não comer papagaios.

Mestre Luca sempre soube que naquelas ilhas abunda uma ave totem, uma espécie de papagaio, onde a tradição alojou um ancestral mítico, denominado Buhrr.

Conta o mito que Buhrr, durante a erupção primordial conjunta dos quatro vulcões da ilha, convocou todos os papagaios e ordenou que batessem as asas ininterruptamente, até o completo resfriamento das lavas.

Credenciados por tal façanha, e protegidos pelo escrúpulo, os papagaios nunca foram molestados, sendo inútil acrescentar que jamais visitaram as panelas dos nativos.

Debruçado sobre o tema, as lucubrações de LM bifurcaram-se. A matança dos totens tanto podia indicar a revitalização do mito, quanto os seus estertores. Tudo dependia de como os ilhéus encaravam as ameaças ambientais. Se no imaginário popular o perigo das ondas se equiparasse ao das erupções primordiais,a presença de Buhrr impunha-se concretamente.

Sob tal crença,a manducação dos totens, vale dizer, de Buhrr, representaria um ato de profunda intimidade mística, muito encontradiça em comunhões teofágicas.

Por outro lado, se morreram as esperanças, o abate dos papagaios, então, sinalizaria a permissividade orgiástica dos fins de tempo, provocada pela intuição do ocaso.

Desenhado o impasse, arregaçou as mangas e saiu ao encontro da verdade.

Visitou vilas, praias, povoados, aglomerações de feira. Frequentou luaus, provou comidas (inclusive um ensopado de papagaio), degustou bebidas, ouviu, indagou, anotou, e até participou de danças comunitárias, levado de roldão pela esfuziante alegria dos ilhéus.

A essa altura, já relegara a segundo plano o destino de Buhrr. Fascinava-o o espetáculo da paralisia emocional das massas, em face da crescente devastação ambiental.

Filantropo incorrigível,resolveu permanecer na ilha até que pudesse inocular na alma coletiva o germe consentâneo da inquietação. Programou palestras, organizou um jornalzinho, subiu em carros de som,mas em pouco tempo desistiu.

Desistiu, aliás, não é bem o termo. Mestre Luca não desiste nunca.

O caso foi que, não tendo despertado o interesse de ninguém, salvo o de um vereador cassado, viu-se compelido a retificar o método da pesquisa.

Viajou. Matriculou-se num mosteiro Zen, onde pretende organizar um roteiro de doutrinação específica. O vereador prontificou-se a distribuir, de luau em luau, as cartilhas, que seguirão via Sedex.


Autor: Osorio de Vasconcellos


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