Espaços de Luta e Disputas em Torno da Autonomia Escrava em Fins do Século XIX



Introdução

Faço sciente que possuindo uma escrava de nome Joanna, crioula, com idade de vinte annos, e que por direito me pertencendo a metade da dita escrava, e na face de Deus e da Lei, a faço liberta da forma seguinte. Será somente obrigada a servir-me enquanto minha vida, podendo suas produções ficarem livres na ordem da mesma escrava.[1]

Este é o trecho da carta de liberdade que José Coelho da silva passou a Joanna. Não há explicitações para o motivo de sua libertação. Mas tempos depois de ter alforriado metade da escrava, José a deixa com esperanças: após sua morte, Joanna ficaria livre. Em 1880, na então Província de Alagoas, Joanna, de condição social indefinida, entrou na justiça contra seu atual senhor, Jozaphat Pereira Baracho. Em 1868 a cativa recebeu de José Coelho da Silva a sua liberdade condicional formal, com carta de liberdade, assinatura do senhor e reconhecimento em tabelião. Sua filha, Sebastiana, foi alforriada na mesma data, mas não consta na carta se foi também somente a metade. Seis anos depois, em setembro de 1874, a metade cativa de Joanna foi vendida a Manoel Luiz Coelho por 400$000 com a alegação de um motivo: problemas financeiros. A tal promessa de uma vida em liberdade foi-lhe arrancada, e a partir daí começa seu histórico de insubordinação.

Quando vendida a Manoel, Joanna recusou-se a trabalhar. Julgava-se livre e não reconhecia neste novo dono de sua metade nenhuma autoridade. Com uma ação judicial, pretendia provar que era livre. Não constam informações sobre seu primeiro senhor, só se sabe que Joanna conseguiu por dois anos consecutivos controlar todas as suas atividades e o tempo gasto nelas. Esta escolha rendeu-lhe novas idas a justiça por conta de um terceiro senhor. Em 1878, em uma última troca de senhor, Joanna (melhor, a metade dela) passou então a pertencer a Jozaphat Pereira Baracho, personagem central nesta pendenga judicial. Este Jozaphat comprou a escrava que cada vez mais se caracterizava como um problema para quem a possuísse.

Pela segunda vez Joanna procura a justiça. A queixa da escrava é relativa ao constante cativeiro a que fora submetida por este Jozaphat. Durante os dois anos em que serviu a Jozaphat, a suplicante alega tê-lo feito sob "constante e rigoroso cativeiro", não podendo, assim, usufruir de sua "banda" forra. Pede que seu senhor abra mão de seus serviços por dois anos, já que, segundo sua interpretação, a parte forra contribuiu com dois anos "extra" de trabalho. No desenrolar das argumentações, os representantes de Jozaphat explicam o motivo da manutenção do cativeiro integral. Como já disse anteriormente, Joanna viveu autonomamente por dois anos enquanto a justiça decidia se pertencia ou não a Manoel. Este período, de acordo com os advogados de seu terceiro senhor, fora cobrado com dois anos de trabalhos ininterruptos.

A exigência de Joanna causou-me estranhamento, assim como a situação em que a mesma se encontrava. Primeiro pela dificuldade de entender como se pode alforriar a metade de um indivíduo, e depois por não haver novamente um pedido de liberdade total, mas o de uma pausa nos trabalhos por tempo determinado por julgar já tê-los cumprido em tempo indevido. Um estranhamento advindo justamente de contrastes com tantos outros casos.

A partir de Joanna...

A historiografia mais recente sobre escravidão tem buscado discutir as dimensões da cidadania no universo escravista lançando novas questões sobre temáticas bastante recorrentes: fugas e reivindicações formais por liberdade têm sido analisadas em conjugação com noções de direito e justiça, sem perder do horizonte as contradições da escravidão que, vagarosamente, vão se tornando debate entre os próprios homens da Corte Imperial. Sob esta perspectiva, pensar os problemas enfrentados pelos homens da justiça com o aumento do tráfico interprovincial permite tentar entender em que medida as necessidades individuais teriam contribuído para a forja do conjunto de leis que surgiram ao longo do século XIX. Desde a regulamentação de punições até a definição das atribuições do status de cidadão, todas as discussões se deram imersas em uma sociedade escravista e permeada por tensões oriundas da complexidade da hierarquização social.

No intento de adentrar nestas questões, a autora Silvia Lara indica de que forma as contradições coexistiram, mesmo que não pacificamente, legitimando a escravidão em todo território brasileiro. A "coisificação" do escravo tinha como instrumento leis forjadas de maneira a permitir que homens e mulheres pudessem ser adquiridos como mercadorias, e trabalhassem "como escravos, sob o domínio de terceiros"[2]. Neste sentido, a autora reconstrói o argumento utilizado no oitocentos, demonstrando a forma pela qual o trabalho é desqualificado política e socialmente, e junto, o trabalhador escravo. "Ficções da lei" possibilitaram esta desqualificação, sobretudo por prevalecer a idéia da inexistência de direitos para os escravos. Questionando este ponto, Lara indica possibilidades de olhar a relação senhor – escravo, nas esferas pública e privada, como uma conjugação de valores de ambas as partes, na qual os sujeitos envolvidos respeitaram direitos e deveres mútuos. Dentro deste debate proposto pela autora, cabe o questionamento de quais seriam as possibilidades das práticas cotidianas serem incorporadas ao aparato legal[3]. Sendo assim, mesmo considerando as leis como ficções do direito, podemos pensar em como se dá a construção destes aparatos legais e em que medida podemos sugerir a participação, mesmo que involuntária, das mais diversas camadas sociais neste processo.

É interessante pensar em como Edward P. Thompson aponta a atuação popular na reivindicação de seus direitos, nos possibilitando uma análise que indica a forja das leis acontecendo a partir de confrontos cotidianos entre interesses diversos, sendo a lei um mecanismo tanto de manutenção da ordem, quanto de formalização institucional de direitos, muitas vezes já consolidados anteriormente pelas práticas sociais. Homens e mulheres, das mais diversas camadas sociais interagem sabendo as regras tácitas que permeiam o convívio social pacífico. Em uma sociedade escravista, ferir estas regras, seja senhor ou escravo, implicava violência, tão característica das reivindicações deste momento histórico[4]. Podemos apontar a falta de objetividade na definição legal das atribuições do escravo como ponto de conflito nesta sociedade, tendo nas lutas travadas em torno desta questão uma série de demandas individuais que questionam a autoridade senhorial e a própria validade da redução do sujeito à escravidão.

Mozart Linhares da Silva aponta questões relativas às ambigüidades presentes em uma sociedade escravista e sublinha justamente a dificuldade de formulação de um código de condutas legais para reger a população. Em seus apontamentos sobre os antecedentes do Código Criminal Brasileiro de 1830, indica a falta de estrutura do pensamento jurídico por conta da mescla entre direito e moral. No entanto, aponta em que medida este novo código preservava as garantias individuais, de propriedade e o abrandamento de penas[5]. O autor atenta para as "simetrias e assimetrias entre o espírito do legislador, no que se refere à Escola Clássica de Direito Penal, e a especificidade social brasileira naqueles tempos"[6]. O fato de ser um conjunto de regras forjado em uma sociedade escravista é bastante enfatizado pelo autor, e em sua análise demonstra como foi complicado este debate no início do oitocentos. A interpretação da aplicação das penas indicadas no Código Criminal de 1830 nos sugere a percepção dos parlamentares da complexa formação populacional brasileira e ainda o nível de hierarquização social. É importante, neste sentido, tentar identificar qual seria o nível de submissão dos escravos às vontades senhoriais em um ambiente urbano, no qual a ação do estado seria mais eficaz na manutenção da ordem social, pois, neste universo, mesmo os senhores poderiam ter suas ações cerceadas pela justiça.

Sidney Chalhoub, ao discutir a formação da "cidade negra" no Rio de Janeiro, sua relação com as mudanças na Corte entre 1830 e 1870 e a incompatibilidade entre escravidão e cidade, relaciona-a ao engendramento de uma teia de significados e de práticas sociais que politiza o cotidiano num sentido específico, isto é, no sentido de transformação de eventos aparentemente corriqueiros no cotidiano das relações sociais na escravidão em acontecimento políticos que fazem desmoronar os pilares da instituição[7]. A cidade, cada vez mais propiciava uma vida incógnita e com grandes chances da manutenção da autonomia.

Jozaphat responde às acusações que lhe são feitas pelo curador de Joanna:

Joanna, Illmo Snro Dor Juiz de Orphãos, sim é verdade, uma banda livre, e por essa parte que possui tem feito tanta novidade, tem feito tanto movimento, que em lugar de gozal-o para com calma applicar o tempo pertencente em adquirir o pecúlio necessário para se por livre dos grilhões da escravidão que ainda prende-lhe uma banda, somente tem gasto esse mesmo tempo em agitar questões, para assim por se em ampla liberdade, embora seja prejudicado o direito de propriedade.

Joanna, passando a pertencer a Manoel Luiz Coelho, como diz em sua petição, logo agitou contra ele um pleito, em Maceió, onde então residiam senhor e escrava, procurando julgar-se livre, e assim esteve por espaço de dous annos, enquanto durou dito pleito, sem nenhum serviço prestar aquele seu senhor; e assim continuariam as couzas, se por sentença do juiz competente, naquela cidade, documento junto, não fosse ella obrigada prestar os serviços que de direito deve prestal-os com relação a parte escrava, e logo entregue por mandado daquelle juiz a seu dito senhor, sendo para isso preciso capturar Joanna.[8]

Não há indicações sobre o que teria acontecendo com o primeiro senhor de Joanna, mas o fato é que em sua carta de alforria, ele a deixa totalmente livre por ocasião de sua morte. Estaria vivo ainda o tal José Coelho da Silva? O que teria levado Joanna a fugir, não aceitando mais prestar serviços? Instabilidade e insegurança marcaram profundamente a trajetória dos cativos ao longo da História. Joanna, aqui transformada em personagem que pode ilustrar grande parte do universo escravista, foi movida por uma idéia de justiça pautada em sua experiência pessoal, e luta por seus direitos, de maneira a poder ter maior controle sobre sua vida. Ao longo dos anos em que a escravidão no Brasil fora legitimada, encontros e reconfigurações de idéias movimentaram as lutas em torno da liberdade.

Joanna foi vendida, mas continuou morando na mesma província, ao contrário de tantos outros em semelhante situação. Muitos foram mandados para longe com o tráfico interprovincial e grande parte passou pela capital do Império, reconfigurando o espaço urbano e a forma de perceber a liberdade, tanto de senhores quanto de escravos. O comportamento dos escravos, perceptível na leitura de cartas de alforria, anúncios de fuga e até em ações movidas contra seus senhores, pode dar sugestões de como a liberdade fora interpretada. No caso específico citado acima, há uma tentativa de barganha entre os interesses do senhor e da escrava. Do ponto de vista da cativa, houve, ao longo de doze anos, perda substancial de sua autonomia[9]. Haverá aqui, uma tentativa de delimitar as fronteiras que permeiam a autonomia, com base nas experiências e lógicas situacionais dos escravos no cativeiro. Neste sentido, mesmo o olhar senhorial revelaria, os costumes e práticas quotidianas dos escravos. Uma ação de liberdade pode dar a ver como um posicionamento político poderia ser definido baseado nas interpretações das leis por parte dos juízes, e ainda revelar senhores e escravos em atrito constante, cada um reivindicando seus direitos de acordo com suas próprias noções de justiça.

Ora, estando Joanna, como dissemos, em completa liberdade, sem nenhum serviço prestar a seu senhor, voltando esta ao poder deste, suppomos que de direito devia ella prestar igual tempo de serviços que assim esteve auzente; e foi por isso que o senhor della convencionando vendel-a nos entregou a uzufruir o tempo relativo ao que ella já havia gozado com detrimento do direito de propriedade, para depois ser respeitado o tempo que a ela deve pertencer e que nunca houve a intenção de o tolher.[10]

A transação não estava ainda validada, pois jozaphat não recebera ainda o recibo pela compra. Ao que parece, Joanna estaria passando por um período de teste antes da formalização da compra. Neste ínterim, entrou na justiça e de acordo com Jozaphat, pessoa que detém a sua posse – mas não a propriedade, a partir da sentença poderá "gozar do tempo relativo ao tempo de serviço que d'ora em diante nos for prestando ou à aquelle seu senhor". Este terceiro comprador pode devolver a escrava a seu antigo senhor por insatisfação, alegando, inclusive, que a cativa é insubordinada[11].

Um dos pontos de tensão social foram justamente as interpretações dadas aos termos "posse" e "propriedade" em pendengas judiciais. Voltando rapidamente ao caso de Joanna, vemos que seu questionamento foi possibilitado por conta de uma indefinição em sua condição social. Metade escrava? Metade forra? Como dividir o seu tempo de trabalho? Quais os direitos de um indivíduo nesta situação? Questões muito sutis balizaram este debate no oitocentos. Keila Grinberg nos faz adentrar esta discussão a partir da trajetória de Antonio Rebouças, debatendo, em determinada altura do texto, os desdobramentos interpretativos da "quase posse" ou "semiposse"[12]. Alforriar caracterizaria entregar a posse do cativo a ele mesmo. Na possibilidade de contestação da manutenção da condição servil por parte do escravo, este deveria provar a autenticidade de sua liberdade:

" Nos casos de demandas pela liberdade, quem é o 'senhor da coisa'? O senhor do escravo – sendo o escravo a 'coisa' – ou o escravo, sendo a 'coisa' a liberdade? O texto permite ambas interpretações, e, como 'o possuidor é desonerado de mostrar o título', acaba que nem o senhor tem que provar a sua propriedade, nem o cativo pode ser obrigado a mostrar a carta de alforria, ainda mais porque, nesses casos, supostamente deve prevalecer o privilégio à causa liberdade"[13].

Estratégias argumentativas foram utilizadas pelos juristas a fim de confirmar seus pontos de vista. Sobre o debate em torno da liberdade condicional, a preocupação foi em relação à posse da liberdade. Saber se o escravo alcançaria o status de livre assim que obtivesse a alforria condicional, ou se ficaria submetido à prestação de serviços instigou as possibilidades argumentativas nas cortes, que tinham como ferramentas a declaração dos direitos do Homem, o código civil na França, e as constituições nos casos brasileiro e português. A disseminação do pensamento constante nestes códigos teria marcado a mudança na linguagem judicial sobre a propriedade, fazendo com que o discurso legitimador passasse a girar em torno dos direitos naturais, e não mais dos privilégios de certos grupos. A idéia da propriedade absoluta fora bastante disseminada na corte. Não havia uma legislação específica para a quase-posse, desta forma as divergências foram bastante acirradas[14]. Conclui a autora que no contexto de fins do XIX a idéia do direito de liberdade era tão legítimo quanto o de propriedade, mesmo que não regulamentado por leis[15]. Desta forma podemos levar as decisões judiciais para o campo do cotidiano, das forças sociais, mescladas aos interesses pessoais, que orientados por interpretações subjetivas da justiça, forçava o movimento no sentido da regulamentação das condutas sociais e formalização legal das conquistas de direitos.

O desfecho da pendenga judicial de Joanna se deu não sem idas e vindas argumentativas. Aparentemente o Juiz decidiu em seu favor, mas não sem a discordância do senhor Jozaphat Per. Baracho. Sobre a sentença, ele diz:

Pelo que exposto fica, suppomos ser menos regular a apresentação de Joanna, de querer gozar douz annos de ampla liberdade; porquanto, atendendo-se a verdade, somente desta data em diante é que cabe a ela ir gozar do tempo relativo ao tempo de serviço que d'ora em diante nos for prestando ou à aquelle seu senhor.

Assim, pois, V. Sª deferindo como for de justiça a petição de Joanna, não se olvidara que o direito de propriedade também tem sua importância, e que deve ser acautelado o prejuízo que possa vir de semelhante pretenção, pelo desde já [16]protestamos em nome do senhor da peticionaria, visto que ele se acha ausente, e estar ella em nossa companhia, quer pela fuga, quer por qualquer outra circunstancia que possa sugerir ou prejudicar o direito de propriedade que se tem sobre a parte escrava de Joanna que não poderá andar longe de quem acautelle um tal direito, já pela desídia que lhe predomina, já por outros vícios que ella tem, que não tendo quem os refreie, de máo pressagio lhe será uma tal pretenção.

Alagoas, 27 de fevereiro de 1880.Jozaphat Per. Baracho.

A possibilidade da fuga de Joanna inquieta Jozaphat. Concorda que a escrava tenha direito a usufruir de sua "banda forra", mas não nos termos dela. Joanna queria dois anos de liberdade integral, pois sua "banda" livre teria trabalhado dois anos ao lado de sua "banda" escrava, adiantando, assim, dois anos de trabalho da parte cativa. Parece-lhe justo o pedido. O Senhor, com medo do afastamento de Joanna da autoridade que a mantém cativa sugere que ela comece a exercer seu direito à liberdade parcial a partir da data da sentença do Juiz. Nada em meias palavras: Jozaphat fala abertamente sobre seus anseios. Pouco se pode ouvir da parte de Joanna.

Joanna não foi uma exceção, como muitos outros, reivindicou a liberdade e este movimento, que apesar de não ser consciente e coletivo, pôde ser sentido pela sociedade, fazendo estremecer as bases da escravidão. Mintz e Price falam em "princípios inconscientes", referentes às "orientações cognitivas, atitudes [e] expectativas comuns às diversas comunidades de que provinha a maioria dos escravizados". Estes princípios ordenariam este encadeamento de idéias individuais que davam sentido ao que fora entendido por autonomia, tornando certas escolhas mais atraentes ou mais significativas do que outras opções possíveis. A fuga na Corte pode ser vista como um destes princípios: apesar de optarem pela fuga, os escravos não necessariamente tiveram as mesmas motivações. Pessoas diferentes, situadas numa mesma sociedade, poderiam fazer uma mesma coisa, tendo em mente significados muito diferentes e atingindo resultados diferentes ao praticarem atos similares. Os significados sociais gerais, muitas vezes revelariam aos sujeitos históricos os "lugares" onde os conflitos presentes numa determinada sociedade se revestiriam de um caráter político mais decisivo [17].

Slenes, apontando trabalhos feitos há, no máximo, trinta anos, dá ênfase à construção da escravidão por múltiplos agentes sociais.Fundamental para este tipo de abordagem seria dar atenção às revoltas individuais, que esclareceriam a fonte comunitária da resistência e elucidariam a política senhorial de domínio. Os trabalhos, em sua avaliação, estariam preocupados em resgatar aspectos da cultura e da experiência dos cativos, em desvendar suas relações com os senhores e refletir sobre o impacto de embates e negociações quotidianas na produção ou transformação do escravismo[18].

É neste sentido que podemos lançar luz sobre trajetórias como a de Joanna. Adotando uma perspectiva centrada na "consciência de si" dos escravos, pode-se tirar os cativos de um grupo homogêneo e sem forma, inserindo-os na historiografia como indivíduos agentes de sua própria história e integrantes de uma rede de relacionamentos, que possui normas e significados e estão sendo forjadas em um Rio de Janeiro urbano e escravista. O caráter violento da escravidão pode, então, ser entendido como tentativa de ampliação de um espaço de manobra que, muitas vezes, fora reduzido quase à nulidade. As concessões e doações não poderiam ser dissociadas de conquistas, que na maioria das vezes têm caráter violento. No entanto, trabalhar com questões do cotidiano escravo pode gerar conclusões demasiadamente generalizantes, por conta da superficialidade e unilateralidade do discurso produzido, ao qual temos acesso por intermédio das fontes. Admitir a agência de todos os grupos sociais permite uma leitura crítica dessas fontes, tornando as ações cotidianas cheias de significado e relevância política[19].

Girando em torno da questão da autonomia escrava, alguns autores têm buscado especificar a diferença entre "autonomia" e "liberdade". Desta maneira, pontos como hierarquia social, violência, crioulização e família escrava, entram em pauta e se tornam o eixo do debate, cada qual servindo de ponto de apoio à argumentação dos autores. Duas tendências são identificadas na historiografia sobre o assunto, uma que associa a "liberdade" a pequenas conquistas que tenderiam a alargar a autonomia do escravo, sendo-lhe atribuída sentidos múltiplos, e outra que percebe neste movimento reivindicatório a busca pela liberdade formal como principio geral e objetivo principal[20]. Podemos inserir uma outra possibilidade: a busca pela liberdade (formal ou não), identificada em diversos movimentos de fuga e violência, pode ter sido o catalisador de debates e indicativo da necessidade de formulação de uma legislação civil para o Império. E, possivelmente, podemos interpretar as leis emancipacionistas como medidas de contenção ao movimento de libertação escrava e de manutenção da ordem escravista mesmo que (e somente hoje sabemos disto) por pouco tempo ainda[21].

As Fugas

Os anúncios de jornal, a contar das descrições feitas do escravo fugido que tem as mais inóspitas características reveladas pelo autor do anúncio, indicam na fala de quem anuncia uma idéia de superioridade por parte dos senhores em relação aos cativos, e ainda de uma falta de capacidade de compreensão do mundo por parte dos escravos:

Fugirão do abaixo assignado dous escravos, sendo 1 no dia 9 de setembro de anno corrente com os signaes seguintes: por nome Alexandrino, crioulo, idade 30 annos, pouco mais ou menos, baixo, reforçado de corpo, cor fula, pés pequenos, pernas um pouco grossas, rosto redondo, barba serrada, com alguns sinaes de chicote no corpo, intitula-se liberto com exigências de prestar serviços em qualquer casa, um pouco pernóstico, tem o dedo do pé grande virado para dentro. O outro, de nome [Sotidonio] foi escravo da fazenda do Illmo Sr. Dr. Candido de Azevedo Coutinho, fugio no dia 24 de novembro do mesmo anno, com os signaes seguintes: crioulo, idade 40 annos, mais ou menos, baixo, cor fula, franzino de corpo, pés também pequenos, cabellos falhados, rosto comprido, com signal de fogo no braço direito e mãos curtas; quem os aprehender e levar a casa do annunciante, em sua residência palmital de Araruama, terá por cada um 50$ de alviçaras, e protesta-se com todo rigor da lei contra quem os mesmos der couto.

Isaías Jose de Mendonça.

Alexandrino é caracterizado por Isaías Jose de Mendonça como pernóstico, o outro, franzino. De acordo com um dicionário da Língua Portuguesa[22] do início do século XIX, o verbete tem a seguinte acepção:

PERNÓSTICO, adj. famil. O que falla muito no que não lhe importa, e com a satisfação de entendido no que diz, e de avisado. Ferr. Cioso, 1. 5 "nunca vi velha tão pernóstica." Corrupção de prognostico, talvez por papel volante, que prediz as temperaturas do anno, e outras futuridades.

Alexandrino, segundo a definição contemporânea dada por seu senhor, fala do que não lhe interessa, e pior, sem saber sobre o assunto; fala precipitadamente. Sotidônio é franzino, pouco resistente, falho. Mas não é exclusividade destes as adjetivações tão pejorativas. De maneira inovadora, Gilberto Freyre, com seu "O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX",[23] propõe um novo método de pesquisa: a anunciologia e a partir dos anúncios de jornal, pretende um estudo antropológico. Em seu prefácio, feito para uma segunda edição do livro, escreve que Joaquim Nabuco teria exagerado ao considerar o uso deste material relevante de maneira a revelar a "ordem social mais afastada da civilização moderna", uma ordem patriarcal brasileira. No entanto, considera os anúncios importantes para um estudo lingüístico, sobretudo, do ponto de vista do desenvolvimento de uma língua literária a que não faltasse oralidade. Freyre dá voz aos senhores, que de fala popular, enriqueceriam o vocabulário e as formas que a língua tem assumido. Considera o fato de que as crueldades, perceptíveis nas descrições dos escravos fugidos, associadas à procura de uma "abstrata" liberdade, tenham fomentado muitas das fugas, e paralelamente, aponta a benignidade dos senhores nos anúncios de venda e aluguel [24].

É perceptível a diferença da natureza dos dois tipos de anúncios. Venda e fuga têm objetivos completamente opostos e, logicamente, serão redigidos de forma específica. Se há bondade ou não por parte dos senhores, não é relevante, mas sim o propósito e idéias por detrás da fonte. As fontes devem ser compreendidas dentro de significados próprios ao passado que pertencem, e evidenciadas dentro de um quadro teórico que, ao longo dos anos, recebeu vários conceitos diferenciados. Como o objeto a ser estudado aqui é um processo, as categorias criadas estão de acordo com conceitos desconhecidos aos homens que constituem este objeto [25].

O fim do tráfico levanta uma série de questionamentos sobre qual será o destino do Brasil. Com a continuidade da escravidão, o clima de instabilidade está presente nos âmbitos social, político e econômico. A intensificação do tráfico interno interfere e desestrutura a vida do escravo, inserindo elementos que forjam e reestruturam normas, ações e valores. O que significa ser um negro livre em uma sociedade escravista? Escravos têm sua opinião e os Senhores também. Como senhores de escravos se posicionavam diante desta idéia? Em meio a tantos outros, serão discutidas as exposições sobre o tema por Joaquim Nabuco, José de Alencar e Tavares Bastos.

Segundo Maria Emilia Prado, ao longo dos primeiros cinqüenta anos que sucederam à independência do Brasil, o pensamento político brasileiro teria sido marcado pelo ecletismo: versão francesa do liberalismo conservador inglês que se ajustava, perfeitamente, à realidade de um império que se pretendia estruturar segundo o modelo político liberal, mas que estava assente numa base social, política e econômica que não guardava vínculos com o modelo liberal. Os intelectuais teriam a preocupação em apresentar projetos e propostas destinadas a possibilitar a construção de um país com instituições políticas liberais. Em um país cuja atividade econômica tinha como base o trabalho escravo, a questão da liberdade individual não seria pauta central nos debates[26].

Homens como o romancista José de Alencar, segundo a autora, não faziam qualquer restrição ao exercício da liberdade, a não ser quando esta dificultava os interesses da comunidade. Afirma ainda que, de maneira geral, os intelectuais do Império do Brasil eram partidários do liberalismo constitucional. Poucos eram os que empreendiam a defesa da monarquia absoluta. Por outro lado, a questão da liberdade individual não era, de modo algum, consensual entre os liberais do império. Ao contrário, a estruturação do Estado e a engenharia política seriam os temas centrais sobre os quais refletiam. Governo centralizador ou governo descentralizado, maior intervenção do Estado ou autonomia provincial, unidade nacional ou poder local e/ou regional eram as questões que constituíam o núcleo do debate. Em relação à questão das liberdades individuais conservadores e liberais não teriam manifestado quaisquer discursos em defesa do fim da escravatura, uma vez que isso afetaria os interesses dos proprietários e, por extensão, os interesses do império, uma vez que este tinha nos proprietários de terras e escravos a base da sua sustentação política [27].

As idéias de liberdade e de autonomia provincial seriam partilhadas por muitos políticos e pensadores durante o império. Prado pede atenção, ainda, ao fato de que no Brasil do século XIX, as atividades políticas e intelectuais caminhavam lado a lado, já que os intelectuais atuaram ativamente ocupando cargos na burocracia do Estado. De modo geral, é possível afirmar que os Estados Unidos da América eram fonte de inspiração para homens como Tavares Bastos (1937), fervorosos defensores da autonomia provincial. A obra de Tavares Bastos tornou-se emblemática da crítica à centralização e da defesa da autonomia provincial, devido à polemica promovida entre A Província, de sua autoria e o Ensaio sobre o Direito Administrativo e os Estudos sobre Administração das Províncias, escritos pelo visconde do Uruguai.

À defesa da autonomia provincial agregava Tavares Bastos a da não interferência do Estado na economia. Melhor dizendo, caberia ao Estado apenas estimular a agricultura, mas de resto, era necessário que as iniciativas individuais se pudessem expressar. A autora ressalta também, que Tavares Bastos condenava a escravatura, na medida em que ela impedia a implantação da ordem liberal no Brasil e solicitava a intervenção do Estado para apressar o fim da mesma, pois sabia que nas condições sociais do império era imprescindível que o Estado empreendesse as mudanças[28].

Textos de intelectuais da época que, visivelmente se preocupavam com a questão e emitiram opinião sobre o assunto, podem ajudar a dimensionar o universo escravista.Tavares Bastos, em um de seus cadernos de notas guardados no acervo de manuscritos da Biblioteca nacional, demonstra preocupar-se de forma bem direta com o tráfico interprovincial:

Tráfico interno: Donde vem os escravos que se vendem no sul? Desenvolve-se ou não um extenso tráfico de negros por esse interior do paiz? Não estamos a ver os mesmos resultados da escravidão que os Estados Unidos?[29]

O mesmo Tavares coleciona recortes sobre o tema e se comunica com diversos políticos sobre a questão; denuncia delegados que vendem passaportes de escravos aos negociantes "para a practica do crime de reduzir as pessoas livre à escravidão". Para Bastos, os escravos de províncias do Norte estão sendo batizados no Rio e trazidos ilegalmente de maneira a burlar a emancipação com fundos governamentais que se alastra por essas bandas. O crioulo Custódio pode ter sido trazido desta forma: 11 anos de idade, nascido na Bahia, tem a permissão do Chefe de polícia Jose Pereira da silva Moraes para, acompanhado por João Antônio Rapozo, procurador de Antônio Ferreira de Oliveira Gomes (finalmente) proprietário do escravo, viajar para o Rio de Janeiro. O passaporte, com validade de um mês, foi carimbado pela polícia da Corte dia 29/12/1860 [30].

João P. Dias Vieira, ministro de estrangeiros, em carta ao Barão de Penedo, tem sua opinião acerca de tal negócio:

As exprobações amontoadas nos officios dos ministros inglezes do Foreign officecontra a exportação de escravos do Norte para o sul do império procedem talvez de algum falso [imposto].

[...]Apezar das taxas elevadas decretadas por algumas províncias para evitar a sahida dos escravos, a necessidade de vendel-os e o alto preço que por elles oferecião e davão os compradores do sul zombarão da medida e creio que se pode muito bem avaliar em 16 mil ou mais ou menos o número que principalmente das províncias do Maranhão, sergipe, Bahia e Ceará tendo vindo para aqui [Rio de Janeiro] e para os mercados de Minas e São Paulo à contar de 1851 para cá – ultimamente tem escasseado muito este tráfego; era feito, como deves saber, parte directamente por conta dos lavradores e parte pela das pessoas que ião buscar para lucrar a diferença do preço de compra na província e a da venda no mercado do Rio[...]

[...] os escarcéos pela immoralidade das vendas em leilão, pelos maus tratos nos transportes dos escravos que vêm do Norte para o Sul, são levantados pela maior parte de propósito por aqueles que querem ganhar praça de philantropos. [...][31]

Há que se dar relevância às perguntas feitas pelo ministro de estrangeiros: como o tráfico interprovincial se desenvolve e como os escravos vindos das províncias do Norte chegaram às províncias do sul? Com o constante rareamento de braços escravos, os lavradores sucumbiriam novamente ao "trafico prohibido"?Célia Maria Marinho de Azevedo aponta para uma grande propaganda abolicionista em fins da década de 1860 e início de 1870. Uma estratégia de conciliação estaria sendo ensaiada com o reconhecimento oficial de que a extinção da escravidão seria questão de forma e oportunidade, havendo a necessidade de incluir a emancipação entre as reformas pretendidas pelos radicais do Partido Liberal e a decretação da Lei do Ventre Livre[32]. Na mesma carta, o ministro diz que os lavradores tratarão melhor os escravos que restam, aumentando seu período de vida. Em relação às províncias do sul, profetiza:

há-de se chegar também a sua vez de passarem pela mesma crize porque passou o Maranhão e outras províncias do Norte e por que tem mais recursos do que estas hão de se sahir de difficuldade do mesmo modo, isto é, recorrendo a principio aos braços livres do paiz, dividindo os trabalhos de lavoura, etc.

Mas afinal, como entram os escravos?

Denúncias anônimas sugerem uma possível conivência de delegados de policia na receptação de embarcações com escravos. O ministro já sugeriu que particulares tentam lucrar com a diferença de preços entre Norte e Sul, e se aventuram na empreitada de trazer os escravos e vendê-los na Corte. O movimento de entrada e saída destes escravos não é, em grande medida, facilmente recuperável. Fragmentos de denúncias anônimas, pouco claras e sem indicação de a quem foram destinadas, podem ser encontradas na Biblioteca Nacional. Achá-las requer paciência e insistência.

Comm° interprovincial de escravos

Os rapazes da compª de paquetes o fazem: aliás tem privilégios de navios de Guerra! Sob a bandeira do estado, e com [subvenção] delle, commercia-se em escravos.[33]

No caso acima, o denunciador faz referencia a uma possível participação do estado neste comércio. Nada mais consta no bilhete. O autor das poucas linhas transcritas pode estar se referindo a uma conivência por parte das autoridades, como quando Euzébio de Queiróz, quando Ministro da Justiça, que pouco fez no sentido de fazer valer a proibição do Tráfico transatlântico após 1831[34] . Uma outra denúncia, também sem referências sobre quem escreveu e para quem foi escrita, confirma as palavras do primeiro anônimo. Os escravos viriam com comprador já acertado, como que encomendados, e o comandante deste negócio seria o subdelegado. Para despistar a fiscalização, a embarcação com a "mercadoria" entraria por Mangaratiba, freguesia de Itacuruçá.

A manutenção do tráfico interprovincial, que acaba por reconfigurar o espaço urbano no Rio de Janeiro, está presente nas entrelinhas dos textos de homens como Joaquim Nabuco, por exemplo. Uma preocupação excessiva com o destino do negro africano e com o crescente aumento da população alforriada, dá a dimensão da tensão entre grupos tão heterogêneos quanto próximos no convívio diário:

"A primeira oposição nacional à escravidão foi promovida tão-somente contra o tráfico. Pretendia-se suprimir a escravidão lentamente, proibindo a importação de novos escravos. À vista da espantosa mortalidade dessa classe, dizia-se que a escravatura, uma vez extinto o viveiro inesgotável da África, iria sendo progressivamente diminuída pela morte, apesar dos nascimentos".

(Joaquim Nabuco, O Abolicionista).[35]

Não é difícil imaginar quais seriam os interesses dos senhores de escravos em manter a escravidão, mesmo quando a abolição está em vias de se tornar realidade. A forma de vida adotada pelos senhores de escravos fazia-se presente e constante, e admitir um negro – sinônimo de escravo – sem dono, seria um ultraje. Não mais complicado, é tentar compreender como pensava um escravo quando percebia a aflição de seu senhor na hora do jantar, que conversando com senhores ilustres, deixava fugir, para os ouvidos de seu cativo, palavras como revolução e liberdade. O medo com certeza dizia alguma coisa aos ouvidos atentos. Difícil defender a tese de que estava preocupado com o bem estar do cativo, levando em consideração o momento em que Nabuco escreve, é inegável que por traz de seu discurso, estavam interesses políticos e econômicos que envolviam o destino do Brasil. A prorrogação da escravidão desde 1831 poderia ilustrar, segundo Chalhoub, a falta de capacidade de pensar fora dos quadros da escravidão, e desta forma, Joaquim Nabuco teria se referido a este período da política Imperial como de degradação e de violação da lei moral[36].

A escravidão teria sido, na opinião de Nabuco, nociva aos interesses econômicos do país, pois que para a entrada de africanos no Brasil, houve gastos com os negreiros cobertos pela lavoura. No caso dos negreiros o lucro com o tráfico fora extremamente alto, mais que o dobro do valor empenhado no transporte e aquisição de escravos - segundo cálculos de Joaquim Nabuco. Ainda sob este ponto de vista, argumenta o autor, que se pensava que o Brasil enriquecia, quando na verdade o capital acumulado com o tráfico,

Voltou para a lavoura quando as fazendas caíram em mãos dos negociantes de escravos que tinham hipotecas sobre elas por esse fornecimento, e assim se tornaram senhores perpétuos do seu próprio contrabando.

(...) grande parte do mesmo capital realizado foi empregada na edificação do Rio de Janeiro e da Bahia, mas o restante foi exportado para Portugal, que tirou assim do Tráfico, como tem tirado da escravidão do Brasil não menores lucros do que a Espanha tirou dessas mesmas fontes em cuba.

Ninguém, entretanto, se lembra de lamentar o dinheiro desperdiçado nesse ignóbil comércio, porque os seus prejuízos morais deixaram na sombra todos os lucros cessantes e toda a perda material do paíz [37].

O movimento de pressão para que houvesse um fim da escravidão se deu tanto por questões econômicas, quanto por reivindicações escravas no dia-a-dia. Não se, neste ínterim,pode perder do horizonte os movimentos dos próprios negros tornando-se cada vez mais presentes e atuantes no cotidiano da cidade como libertos e mesmo passando-se por.

A liberdade do "elemento servil", seguindo o raciocínio do próprio Nabuco, seria no mínimo irresponsável, pois que a escravidão acabaria por criar seres inaptos e em estado "puramente animal", sendo, para os cativos, impossível viver sem um senhor; não tendo dignidade pessoal, responsabilidade, menos ainda lhes apetecendo o trabalho voluntário; seriam depositórios de paixões baixas, de todos os caprichos sensuais, de todas as "vinditas" cruéis de uma outra raça. O abolicionismo nasceria sob a bandeira do trabalho livre, e estaria longe de ser uma defesa do escravo oprimido e fraco. Para fazer tal movimento político, levaria em consideração a falta de consciência do cativo e de seus filhos, os quais foram designados ingênuos, e uma possível vingança por parte deles.

Segundo Célia Maria Marinho de Azevedo, o exemplo máximo da "vindita" a que eram susceptíveis os escravos, vinha de São Domingos, que fora tomado por escravos e tornou-se o primeiro estado independente afro-americano. Tendo este acontecimento, a propaganda abolicionista não deveria ser dirigida aos escravos, pois que lhes poderia suscitar atos rebeldes e difíceis de serem contidos, já que estaria quebrado o "freio do medo". Nabuco teria optado por uma vertente abolicionista diferente da francesa, de teor anarquista, para integrar sua política a uma corrente abolicionista internacional de teor liberal. Acabou criando, assim, uma idéia de paraíso racial longe da realidade brasileira [38].

A partir de 1879 o movimento abolicionista tomou impulso nos centros urbanos e a agitação política dos clubes abolicionistas se articulou com os movimentos de fuga. Leve-se em consideração que neste cenário também atuaram André Rebouças, Jose do Patrocínio, Luiz Gama e Francisco de Paula Brito, nomes de extrema relevância neste contexto. Eram os "homens de cor" tomando partido e formando a linha de frente da intelectualidade antiescravista.Nos últimos anos da década 1880, a propriedade estava deliberadamente sendo ameaçada, na visão dos proprietários de escravos; os objetivos estavam sendo alcançados, para os abolicionistas; a liberdade estava muito próxima, para os escravos. Neste caminho, é possível dizer que

"os discursos de liberdade, autonomia e de igualdade ganhavam as ruas e os sentimentos de muitos cidadãos que diante das situações de opressão, injustiça ou pelo simples desejo de participar, fez emergir um horizonte de expectativas que transpunha a restrita das camadas dominantes, chegando aos diversos setores da sociedade"[39]?

Vantuil Pereira é bem claro em seu texto: não está falando de escravos. Mas de uma camada social intermediária que, afastada da vida política institucional, apela para as petições como forma de participação alternativa. Esta interação da "sociedade civil" com a realidade política da época teria tensionado a cena política, já que estes cidadãos expressavam suas expectativas a partir das petições e procuravam o alargamento de seus direitos. Impregnada pela idéia da escravidão urbana na corte, penso nestes cidadãos como o meio termo entre os grandes homens da política e os escravos. Sem esmiuçar aqui a complexidade da composição populacional, entendo o argumento do autor quando exclui os escravos da possibilidade analítica proposta em seu trabalho, mas ainda assim sua explanação permite a inserção do cativo nesta produção de tensão, na medida em que estes cidadãos podem ser pequenos proprietários urbanos (muitas vezes possuidores de um só escravo) e quaisquer medidas relacionadas ao desenrolar das discussões relativas à emancipação escrava, dependendo do desfecho, seria mortal à economia doméstica deste sujeito. Este cidadão se relacionava diariamente com o escravo, muitas vezes dividindo lado a lado o espaço de trabalho, e era ele quem mais sofria com a perda da autoridade sobre o seu cativo. Ser questionado quanto ao direito de propriedade poderia significar perder a capacidade de sustentabilidade familiar, por exemplo. Em momento de análise quantitativa, vemos aparecer em seus números quase 10% de homens envolvidos com comércio lançando mão das petições para a Câmara dos deputados, e ainda, uma concentração de quase 30% das petições na Corte Imperial[40]. Mesmo sem acesso aos dados de maneira substancial, é plausível a idéia de que estes setores intermediários estariam utilizando este recurso como forma de salvaguardar sua estabilidade. Escravos, senhores, abastados ou não, defendiam como podiam a liberdade na qual acreditavam.

O discurso da época pode revelar muito mais do que medidas desesperadas por parte dos cativos, mas respostas aos desmandos de proprietários. Medidas individuais teriam conquistado um campo aberto ao diálogo, e é a possibilidade de manutenção desta liberdade que esta sendo discuta. Chalhoub aponta, neste sentido, para o papel do estado como mediador nas relações trabalhistas. Em uma cidade que tem um número cada vez mais crescente de negros sem rosto e não identificáveis, todos passam a ser suspeitos. Controlar idas e vindas passou a ser questão de segurança pública, além de garantia de manutenção da propriedade privada. Propõe uma função de destaque para o Estado que será a e "engendrar uma política de domínio" diferente da do feitor. E complementa: "Se a escravidão é uma forma de organização das relações de trabalho assentada numa política de dominação [...], então a emergência de um aparato político-burocrático apto e disposto a interferir sistematicamente nas relações entre senhores e escravos, ou patrões e empregados, é efetivamente um momento de ruptura do processo histórico" [41].

Sobre o cativo nascido no Brasil, Hebe de Castro indica o aprendizado de uma política de negociação desenvolvida no campo dos costumes e poder dos senhores. A generalização do tráfico interno e a troca de experiências tenderiam a levar o escravo a propor um "código geral dos direitos do cativo". Dentro da análise percebemos a ampliação da autonomia, ao longo do século XIX, como concessão dentro do embate entre senhor e escravo. A atuação do escravo no reconhecimento legal de alguns de seus direitos teria conferido um caráter político às suas ações, na medida em que eram garantidos direitos universais e não privilégios pessoais. [42]

Maria Helena Machado tem como objetivo recuperar nas peculiaridades dos movimentos rurais – de escravos – e urbanos – de matriz abolicionista – a construção de pontes entre estes dois universos, recuperando o movimento de penetração do abolicionismo nas fazendas. A autonomia seria a possibilidade de utilização do tempo livre para a concretização de organização econômica e social independentes [43]. Com um foco em regiões de fora da grande área produtora de café, teria sido a criminalidade ao longo do século XIX principal fator de desagregação do poder senhorial nestas áreas, transferindo a responsabilidade do controle dos cativos para a polícia. Em sua argumentação, a polícia controlaria os efeitos do desgoverno dos escravos para que não houvesse pânico generalizado. Este receio acabava por tornar ambíguo o papel dos policiais, que tanto defendiam os interesses senhoriais como mantinham o monopólio do poder de repressão, evitando confronto direto entre defensores e inimigos da abolição. A autora na fala em agencia do escravo sobre sua própria situação, mas de um abandono por parte dos senhores [44].

Para o caso urbano, Roberto Guedes Ferreira faz questionamentos quanto aos interesses da instituição policial em defender interesses dos escravos. Se atentarmos para este ponto, veremos todo um mundo de possibilidades que são deixadas de lado quando, ao contrário, analisamos nossos objetos unilateralmente. Apesar de admitir que fossem remotas as chances de um senhor ser punido por maus tratos, por exemplo, houve uma prática difundida entre os escravos de procurar autoridades policiais, diminuindo efetivamente a autoridade de seus senhores sobre eles.O autor fala em meio termo: a polícia trabalharia no sentido de evitar a insubordinação dos escravos, atenuando o conflito com seus senhores, numa outra direção, promoveriam a atenuação da vida em cativeiro [45].

Em 1830, havia mais de trinta prisões no Rio de Janeiro, incluindo as militares, situadas em fortes, as eclesiásticas, a naval (um navio ancorado no porto com 458 condenados por crimes mais graves, sentenciados a trabalhos forçados, e escravos fugidos), e as prisões civis, como as do Aljube, de Santa Bárbara, da ilha das Cobras, do Calabouço do Castelo [46]. O Calabouço era a prisão onde os escravos eram presos e recebiam açoites, como pena pública ou como castigo privado, executado por demanda do proprietário. Até 1829, os açoites eram aplicados em praças públicas, quando então foram deslocados para o Calabouço, permanecendo no espaço público os açoites aos criminosos condenados por sentença e os capoeiras. Dentre os encarcerados, a pior condição era reservada aos escravos, que recebiam alimentação e vestuários da pior qualidade e deviam trabalhar em serviços externos e prestar serviços aos outros presos.


 

Homens

Mulheres

Total

 

 

Entradas

Mortes

Entradas

Mortes

Entradas

Mortes

%

1859

1002

19

156

02

1158

21

1,8

1861

776

12

124

02

900

14

1,6

1862

752

07

174

-

926

07

0,8

1862

715

10

264

01

979

11

1,1

1870

484

08

156

02

640

10

1,6

Tabela 5. Mortes de escravos no calabouço, 1859-1870 [47].

Além dos escravos condenados, havia aqueles detidos para "correção" por seus donos e que corriam o risco de ficarem ali abandonados para o resto de suas vidas, pois não podiam sair da prisão sem o consentimento de seus donos, uma vez que o governo não podia perdoá-los porque não haviam sido condenados [48]. O escravo depositado também acabava abandonado na prisão quando a dívida de seu dono com a taxa de manutenção da prisão excedia o seu valor. Outro grupo era o dos escravos fugidos, aqueles cujos donos se recusavam a libertá-los para puni-los da fuga, ou os que não revelavam os nomes de seus donos nem mesmo sob tortura. Então, ficavam nas prisões à espera da reclamação por parte de seus proprietários.

Também eram enviados para o calabouço os africanos livres, libertados do tráfico ilegal pelas operações por parte da marinha inglesa e da marinha brasileira ao longo da década de 1830. Eles foram emancipados pelo governo brasileiro, mas a sua condição acabou sendo igual à dos escravos, visto que foram deixados sob guarda de grandes proprietários de escravos ou ficaram a cargo das autoridades prisionais, para executar serviços públicos [49].

É neste contexto que, em 1833, o governo imperial toma as providências para a construção de uma Casa de Correção na Corte. Adotou-se um projeto elaborado em 1826 por uma sociedade inglesa de melhoramento das prisões, o qual previa uma construção "estilo panóptico", com quatro raios, com duzentos cubículos cada um, totalizando 800 celas. Em cada raio haveria quatro andares, que comportariam cinqüenta cubículos por andar, cada qual com 2,64 m de comprimento, 1,65 m de largura e 3,08 de altura, totalizando 4,3 m2. As celas seriam distribuídas ao longo de um corredor central, havendo também corredores externos. Como regime disciplinar, adotava-se o trabalho em comum durante o dia, em completo silêncio, e isolamento à noite nos cubículos. As oficinas seriam intercaladas com os raios, enquanto, na torre central, se situariam a casa do diretor e a capela.[50]

Couceiro aponta, nos casos analisados por ele, que os escravos acusados como autores dos crimes eram recém-chegados de províncias do Norte. Esta observação é apontada como um sintoma do processo de mudança da direção da política das relações sociais existentes nas fazendas do Sudeste. Os critérios morais de convívio social, especialmente com pessoas próximas, teriam sido forjados no dia-a-dia, quando se posicionavam ante a gramática das relações sociais do grupo de escravos já estabelecidos na fazenda, no centro da dinâmica das redes sociais das quais tomaram parte. Os escravos migrados teriam tido que se adaptar a uma rede de relacionamentos já tecida entre as pessoas na fazenda, sendo necessária a localização dos níveis de arranjos sociais existentes, para tornarem-se cada vez menos estrangeiros e construírem seus próprios acordos silenciosos. Isso não anularia as relações de conflito existentes em qualquer grupo social [51]. No meio urbano a pulverização dos plantéis, a fragmentação das comunidades escravas em pequenos grupos com interesses menos globalizantes, além de uma intensa crioulização da Corte, poder ter sido fator agravante dos conflitos sociais e até intensificador das diferenças.Nas palavras de chalhoub,

O meio urbano misturava lugares sociais, escondia cada vez mais a condição social dos negros, dificultando a distinção entre escravos, libertos e pretos livres, e demonstrando assim, uma política de domínio em que as redes de relações pessoais entre senhores e escravos, ou amos e criados, ou patrões e dependentes, enquadravam imediatamente os indivíduos e suas ações.

A cidade que escondia, porém, ensejava aos poucos a construção da cidade que desconfiava, que transformava todos os pretos em suspeitos. [...] a suspeição aqui é indefinida, está generalizada e todos são suspeitos [52].

Este ponto traz de volta a relevância sobre discussão a respeito do código criminal de 1830. Era necessário refrear o transito deliberado de cativos pelas ruas, identificar, punir, organizar a cidade de maneira a fazer a manutenção da hierarquização social imposta pela escravidão. Redes de relacionamentos, concubinato, autonomia do cativo para se deslocar pela cidade, tudo isso se torna possível quando olhamos com mais cuidado para as fontes. Joanna permaneceu em Alagoas perto de sua filha Sebastiana. No Rio de Janeiro, centro urbano, outros tantos talvez quisessem esta realidade para si. É impossível não pensar em um trânsito interminável de escravos pelas ruas, com encontros e conversas com amigos e parentes. Será que com suas cestas na cabeça, andando pelas ruas, se sentiam livres? Ou a alforria seria fundamental para que se sentissem senhores de si? Levá-los para um trabalho doméstico feriria seus ideais de liberdade? Dar atenção a estes pequenos detalhes permite uma análise do processo de reconfiguração do espaço urbano da província do Rio de Janeiro estimulado pela intensificação do tráfico interprovincial, e que foi palco de batalhas por interesses individuais tanto de senhores, quanto de escravos. Permite mesmo vislumbrar como ações individuais, movidas por ideologias pessoais, fundamentaram debates sobre a abolição da escravatura. Possibilita sugerir quais os mecanismos utilizados na fuga e em que medida ela é possível, permitindo o remonte de um processo histórico a partir de uma lógica do escravo, que foi principal agente nas ações que possibilitaram uma vida em família. E, mais especificamente, ter contato com nuances deste processo, que aqui é admitido como sendo a intensificação das fugas, permite sugerir um caminho interpretativo que leve ao entendimento da reconfiguração do espaço urbano no Rio de Janeiro.

100$000 de gratificação

A quem aprehender e levar à rua de Páo Ferro n° 6 o escravo Joaquim, crioulo, 20 anos de idade, côr um pouco fula, olhos pequenos, estatura regular, cambaio, pisando um pouco para fora. Este escravo foi comprado há oito meses aos herdeiros de Francisco Teixeira Pinto, do Curral Falso, em cuja fazenda servio de carreiro, é conhecido em todo o caminho de Santa Cruz, e foi visto há poucos nos arrebaldes do curral Falso, onde tem mãe e irmãos.[53]

Lendo o anúncio de fuga, podemos colher informações preciosas sobre o escravo procurado: o nome de seu senhor, o lugar de onde fugiu e possível destino, sua profissão, e a situação instável em que se encontrava no momento da fuga. Não perdendo de vista que esta coleta de dados obedece a uma escolha específica de abordagem, e tem a função de responder às perguntas suscitadas no trabalho, a análise desta fonte nos dá informações preciosas sobre tensões entre os agentes históricos e preocupações dos mesmos.

Uma perseguição lenta e minuciosa põe o anunciante no encalço do negro fugido. Para redigir um anúncio, era necessária uma descrição detalhada do homem procurado, facilitando sua identificação, além de uma coleta de informações sobre o cativo, sendo possível inferir a idéia de que a perseguição é efetuada bem de perto. Entretanto, para o pesquisador, e, sobretudo aqui, a informação mais valiosa é relativa ao proprietário. Joaquim, o escravo fugido, convive com o novo proprietário há oito meses, tempo relativamente curto, se levarmos em consideração que tem vinte anos de idade aproximadamente e que, ao que parece, viveu toda uma vida ao lado da mãe e dos irmãos, na fazenda do antigo senhor. Lendo este anúncio, não é de se espantar que Joaquim fuja e queira de volta a estabilidade que tinha junto a familiares, em uma fazenda da qual conhecia as regras e obrigações e onde, muito provavelmente, estava perto de amigos e conhecidos. As regras da cidade são complexas, ainda mais se somadas a uma possível concepção de justiça trazida por Joaquim. Podemos encontrar em outros anúncios da mesma natureza, indicações de lugar de origem, nomes adotados pelos escravos para driblar esta perseguição tão próxima, e mesmo outras estratégias que confundem e até impossibilitam a captura.

A venda de escravos para fazendas cafeicultoras tinha como parte do trajeto a Corte. No espaço urbano do Rio de Janeiro este escravo teria se tornado indesejado por diversos fatores, que vão desde o aumento de fugas com a sua chegada até crimes cometidos pelos mesmos[54]. Nesta questão, Mary Karasch caracteriza o envio de negros para o interior como uma medida dos senhores para proteger o investimento das epidemias de cólera e febre amarela, estimulados pelo aumento dos preços e demanda de mão-de-obra em fazendas de café[55]. Para o tráfico interprovincial Richard Graham[56] reúne em seu texto uma serie de dados de outros autores, mesmo fazendo ressalvas quanto a dificuldade da coleta devido a imprecisão das informações. Segundo o autor, em 1852, os registros policiais apontam a chegada de escravos no Rio de Janeiro, sendo três quartos vindos do Norte e os 83% dos escravos registrados como brasileiros teriam a mesma procedência. Esses escravos são destinados às economias cafeeiras em constante expansão no interior do Rio de Janeiro e São Paulo. Posteriormente as Minas Gerais entraram nesta rota comercial, com as maiores taxas do tráfico em 1870. Cerca de 200 mil escravos teriam sido comprados e vendidos de uma província a outra após 1850. Hebe de Castro, a partir do aumento do preço dos escravos, conclui que houve concentração nas mãos dos mais abastados, com os mais pobres vendendo seus bens. Este comércio seria feito, segundo Graham, por agentes intermediários que viajavam comprando escravos de pequenos proprietários endividados. Mesmo na Corte, a tendência era enviar os escravos para o meio rural, podendo ser considerada, então, como ponto de transferência, local onde os escravos eram desembarcados e remetidos ao interior.[57] Talvez isto explique anúncios de escravos fugidos de outras províncias: na possibilidade de o escravo tentar voltar para casa, refaria o caminho e provavelmente passaria pelo Rio de Janeiro[58].

Sandra Lauderdale Graham faz um contraponto interessante entre rua e casa, apontando pontos de vista pessoais e diferenciados como transformadores destes ambientes. Rua e Casa podem ter assumido papéis diversos do convencionalmente estipulado, e vistos como possibilidade de atender expectativas particulares de justiça e autonomia. Pode haver recusa na execução das tarefas e possível, ainda, detectar fugas de escravos fundamentadas pelo argumento de volta para casa. Estas são bastante recorrentes no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Dentro desta concepção e possível pensar em uma forma privada de conceber o mundo que poderia ganhar expansão com a vida nas ruas: vestígios de conduta podem indicar que o trabalho e seu local assumiam significados que contrapunham senhores e escravos, sendo possível maior decisão do escravo sobre sua própria vida, com possibilidade de criar laços de amizade e estender a sua rede de relacionamento fora do ambiente doméstico, longe dos olhos do senhor[59].

Apesar de ser inviável a quantificação desta parcela de trabalhadores, fontes que deixem entrever esta relação, podem revelar os mecanismos pelos quais se deu a forja das regras que regeram as relações entre senhor – escravo no local de trabalho. Havia na Corte uma preocupação com senhores que se excediam em castigos físicos impostos aos cativos, sendo regulamentados pelo código de postura de 1838 e ainda haveria o reconhecimento e regulamentação de uma prática social já generalizada no meio urbano. Sendo assim, é possível constatar a plausibilidade de alegações por parte de escravos quando se justificam a partir de "injustiças" cometidas por senhores[60]. Castigo justo – Barão de paty. Uma regra formal não teria sido eficaz em um ambiente com praticas tácitas, de domínio geral, onde o castigo físico sempre fora uma constante. O código de postura de 1838 não necessariamente teria colaborado para um melhor tratamento dos escravos, sendo a contrapartida igualmente violenta. As ações movidas por escravos contra seus senhores sob alegação de maus tratamentos, assim como os assassinatos, e a fuga constante indicam a forma assumida por essas relações.

O olhar que os senhores lançam em direção a estes lares forçosamente abandonados, e mesmo ao escravo, é acompanhado de uma imagem prévia forjada a partir de uma comparação entre os padrões de comportamento. A concessão de uma liberdade condicional, transcrita abaixo, pode sugerir uma relação mais harmoniosa entre senhor e escrava, já que não há indícios de que tenha sido tão conturbada quanto a de Joanna:

"Eu abaixo assignado declaro que sou Senhor e possuidor de huma escrava de nome Maria da Conceição, crioulla, a qual possuo livre e desembaraçada de toda e qualquer questão judicial, e com a obrigação de acompanhar-me enquanto eu for vivo, e do dia do meu falecimento em diante fica sendo livre como se nascida de ventre livre fosse. Esta é minha vontade, e por isso passo a presente carta em a qual unicamente me assigno na presença das testemunhas. Rio de Janeiro em vinte e seis de junho de mil oitocentos e cincoenta e oito= Marianno Intentes".[61]

Este documento de 1858 pode ser encontrado no Arquivo Nacional junto a outros inúmeros de mesma natureza: liberdades concedidas como doações, alforrias "voluntárias", segundo alguns registros, sob alegação de lealdade e bom comportamento por parte dos escravos. Às vezes, uma vida inteira, 10 ou 20 anos a mais de trabalho, sob a promessa de liberdade assim que o senhor falecer. Esta era uma forma de se conseguir a tão sonhada liberdade, e foi encarada, ao longo do século XIX, como uma benfeitoria por parte dos senhores, donde eles abriam mão de um bem tão valioso, esquecendo-se do herdeiro, para deixar seu escravo livre, "como se nascido de ventre livre fosse". A vida de Maria da Conceição provavelmente foi de muito trabalho, visto que o documento acima se encontra no livro de registro de alforrias lançadas em cartório. Ela se submeteu a sabe-se lá quantos anos de trabalho para que sua liberdade se desse sem tantos percalços quanto a de Joanna; possivelmente a trajetória de Joaquim se deu com mais contratempos, mas estes três personagens nos apresentam os momentos turbulentos que antecederam a abolição da escravidão. O escravo, principal personagem neste trabalho, esteve submetido a vontades individuais, quando expressas pelo Senhor, e coletivas, quando estes eram representados pelo Estado e tinham o direito de propriedade salvaguardado. As lutas travadas individualmente entre senhores e escravos recebem um sentido político quando analisadas coletivamente. Pensar nestas lutas como sendo cada indivíduo responsável pela sua trajetória, ou como está sugerido no título deste artigo, "Cada um por si", não indicaria a pulverização da coletividade, mas sim a coletividade construída a partir de ações individuais, que não necessariamente tiveram o mesmo objetivo, mas que convergiram para uma mesma finalidade. Diferentemente dos Senhores de escravos, os cativos questionaram, a partir de suas escolhas, a legitimidade de suas próprias condições, e tentaram, com as armas que lhes estavam disponíveis, pôr fim a condição escrava a que estiveram submetidos.

Fonte

B. N. Manuscritos. Coleção Arthur Ramos. 38, 4, 219.

BASTOS, A. C. Tavares. Caderno de notas. Manuscritos. Biblioteca Nacional. 11,01,24 – 28. caderno 3.

Comércio interprovincial de escravos. I - 03, 33,05 n.15. "Denúncia anônima sobre o tráfico interprovincial."

Passaporte passado pela polícia da Província da Bahia ao escravo Custódio. I- 48,17,8. Bahia, 4/12/1860.

SILVA, Antonio Moraes: Diccionario da Lingua Portugueza - 2ª edição (1813)

VIEIRA, João P. Dias (Ministro de Estrangeiros). Carta ao Barão de Penedo (Moreira). 63, 3, 5, nº. 157.

Bibliografia

AZEVEDO, Célia M. Marinho de. Onda negra, medo branco. O negro no imaginário das elites: século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Quem precisa de São Nabuco. Primeira versão apresentada em evento do Centro Acadêmico de Ciências Humanas -UNICAMP. "Que 500 anos são esses?", em 19 de abril de 2000.

AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda Negra, Medo Branco: O Negro no Imaginário das Elites, Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Ver capitulo 3.

CASTRO, Hebe M. Mattos de. "Laços de família e direitos no final da escravidão". In: História da Vida Privada no Brasil Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

CASTRO, Hebe Maria Mattos de, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil, século XIX, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995.

CHALHOUB, Sidney. Visões de Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo Companhia das Letras, 1990.

COUCEIRO, Luiz Alberto; ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de. Dimensões cativas e construção da emancipação: relações morais nas lógicas de sociabilidade de escravos e livres. Sudeste, 186-1888. Estudos Afro – Asiáticos, ano 25, 2003/2.

FLORENTINO, Manolo. "Sobre minas, crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro. 1789 – 1871". In. FLORENTINO, Manolo (org). Tráfico, cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira: 2005.

FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. 2°ed. São Paulo. Editora Nacional.

GRAHAM, Richard. Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil. Afro – Ásia, 27, 2007. p. 121-160.

GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860- 1910. São Paulo, Cia. das Letras, 1992.

GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigüidade. Ações de liberdade da Corte de apelação do Rio de Janeiro no século XIX.

GRINBERG, Keila. No Império da propriedade. In. O fiador dos brasileiros. Cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro. Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

KOEMER, Andrei. Punição, disciplina e pensamento penal no Brasil do século XIX. Lua Nova, São Paulo, 68: 205-242, 2006.

LARA, Silvia H. Os escravos e seus direitos. NEDER, Gizlene e outro (org.). História e Direito. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007.

LARA, Silvia Hunold. Blowin in the wind. In: Projeto História. São Paulo: 1995.n12. p.43-56

MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro/São Paulo, UFRJ/EDUSP, 1994.

NABUCO, Joaquim. O tráfico de Africanos. In: O Abolicionismo, Obras completas, v. 7. pp. 80-5

NABUCO, Joaquim. Que é o abolicionismo? In: O Abolicionismo, Obras completas, v. 7. pp. 3-4

PEREIRA, Vantuil. "Ao soberano congresso": novos espaços políticos e os direitos do cidadão. In. "Ao Soberano Congresso" petições, requerimentos, representaçòes e queixas à Câmara dos Deputados e ao Senado – Liberdade, direitos civis e cidadania na formação do Estado Imperial Brasileiro. Niterói, Tese de Doutorado, 2008.

PRADO, Maria Emilia. A questão nacional, a identidade cultural e o passado colonial brasileiro. Manoel Bomfim e uma interpretação do significado das raízes ibéricas. Estudios   Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe. Volumen 16 - Nº 2 Julio - Diciembre 2005

SILVA, Mozart Linhares. O Código Criminal de 1830: liberalismo / escravismo, igualdade e diferença. In. O império dos bacharéis. O pensamento jurídico e a Organização do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2003.

SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil, sudeste, século XIX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.

THOMPSON, E. P. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. In. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

THOMPSON, E. P. Tem a História uma Teoria? In: A Miséria da Teoria ou um Planetário de erros. Uma crítica ao pensamento de Althusser. 1981. Zahar editores. RJ.




Autor: jaciana melquiades


Artigos Relacionados


Tudo Tem Um Preço

Eu Sou (poesia)

Controle Da Qualidade Da Água Do Córrego Suiazinho

O Mendigo

A Maior Das VitÓrias

Solidão (poesias E Poemas)

Operário