Greve dos Contos (1)



 

207 - GREVE DOS CONTOS

De Romano Dazzi

 

Hoje aconteceu-me uma boa.

Duas da manhã .

Estou eu sossegado, refestelado na poltrona favorita, quando ouço um burburinho na rua, bem embaixo da minha janela.

Não dou bola; passam por aqui muitos bêbados, a pé, depois que foram proibidos de dirigir; bom para a saúde  deles e de suas possíveis vitimas.

Mas o murmúrio aumenta; espiando pela veneziana, vejo meus contos – sim, os meus contos! -  reunidos, uns sentados na calçada, outros em grupinhos, de pé, ocupando quase a rua inteira, de lado a lado, falando cada vez mais alto.

Uma manifestação !  Fico surpreso; ou pior, chocado. Nunca esperaria isso de  minhas criaturas. Os vizinhos já acordaram e vêm espiar, tontos de sono; querem saber o que está  acontecendo .

Agasalho-me e saio no sereno, arriscando uma gripe. Deveres de Autor;

Assim como temos direitos,  não podemos furtar-nos aos deveres...

De início, reajo;- “vão dormir, voltem amanhã, prometo que vou escutar tudo; mas não agora , assim, na rua, com  esta umidade horrível,  morrendo de sono como estou.  Não quero briga, mas acho inconveniente o lugar, a hora, e se querem saber, até a arrogância, embora eu  tenha apenas uma idéia, do que querem....”

Enquanto tento argumentar, dou uma boa olhada neles; são todos originais, manuscritos, velhos, novos e de meia idade; de resto, contos são como gente: uns baixos, magrinhos; outros altos, fortes, troncudos.

Há os leves e saltitantes, e os pesados, barrigudos, antipáticos.

Como em todo grupo, há os revoltados, os pacíficos, os filósofos; se ficaram unidos, devem ter algum motivo sério. 

Mas todos são minhas criaturas, não posso deixar de escutá-los.

Finalmente um deles, o 019, um conto sério, triste,  escrito num dia negro,  atravessa a rua e vem me enfrentar.

 –“Boa noite, Senhor Autor!” – me diz com a voz grave e um olhar de profundo desagrado –“Viemos aqui para reclamar suas providências. Como sou um dos mais considerados, represento meus colegas e falo em nome de todos.”

-“Gente! Mas o que é isso!!” Esta é uma revolução, um complô! Quem lhes deu autorização para saírem da Biblioteca  e virem aqui, aborrecer o Autor e incomodar os vizinhos?”

 Mas a minha reação só faz aumentar o barulho, tornando-o mais incômodo.

A vizinhança já abre as janelas e reclama, tentando fazer calar os contos mais agitados.

“Silêncio!”  ordena o conto 019.  - “Vamos primeiro explicar nossas razões e ouvir o Autor!” e dirigindo-se novamente a mim, continua:

- “O assunto é este:  somos suas criaturas, produto de sua mente e do seu PC;  fomos escritos, reescritos, corrigidos, peneirados, revisados, editados e impressos, apenas três cópias, numa HP;  adquirimos assim vida própria; não somos apenas umas larvas em evolução.

Cada um de nós tem seu valor, sua personalidade.

Queremos entrar em ação!

Queremos ser impressos numa Heidelberg, refilados, encadernados distribuídos, comprados e vendidos; oferecidos,  folheados, lidos, usados, comentados, criticados.  Depois disso, podem até nos queimar. 

Mas não se consegue lidar com o descaso; ser ignorado é pior que morrer; é um suplício, é a morte moral.  

Alguns de nós tem dez anos de vida e ainda não viram a luz do dia.

Não somos como o vinho, que  melhora a cada ano; nós somos frágeis, passageiros; quando ficamos empoeirados, ninguém quer saber de nós; se tivermos uma teia de aranha, então, somos descartados; somos lixo.

E depois que o senhor morrer, não vamos ter outra chance. Nosso destino está selado. Não sairemos nunca mais  da prateleira, a não ser em caso de incêndio, ou de destruição sumária, por falta de espaço.

O senhor sabe que nós,  na grande maioria, não somos levianos.

Temos conteúdo, assunto, até uma certa profundidade -  pelo menos, alguns de nós.

Estamos revoltados, Senhor Autor. Exigimos suas providências. Caso contrário, vamos promover um panelaço! “

-“Calma, calma! “ digo eu,  mostrando-me conciliador para ganhar tempo.

-“A sua luta é a minha luta  meus amigos!” (Sinto-me um demagogo no palanque)

-“Prometo-lhes  que vou estudar o assunto com carinho e encontrar uma solução – mas devem entender que ela não depende só de mim. Prometi e juro.  Porém, agora voltem para o lugar de onde vieram e parem de incomodar os vizinhos. Vemo-nos amanhã. Boa noite! ”

“Estaremos aqui amanhã, a esta mesma hora, para decidir.” - conclui o 019, amuado. “Não falte! Se não.....”.

E tem mais cara de ameaça do que de promessa. Vai ser uma briga.

O que eu faço, agora? 

     


Autor: Romano Dazzi


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