Alguns Tipos de Graciliano



Um amigo me pede que diga como nasceram as personagens principais de alguns romances meus ultimamente publicados. Eu desejaria não tratar dessa gente que, arrumada em volumes, se distanciou de mim. Na fase da produção era natural que me interessasse por ela, presumisse que lhe dava um pouco de vida; agora tudo esfriou, os caracteres se deformaram – os leitores vêem o que não tive a intenção de criar, aumentam ou reduzem as minhas figuras, e isto prova que nunca realizei o que pretendi. Referindo-me, portanto, a essa cambada não penso no que ela é hoje multiforme, incongruente, modificada pelo público, mas nos tipos que imaginei e tentei compor inutilmente. Falharam todos. Esta declaração é necessária: talvez anule, mas pelo fato menos atenuará us toques de vaidade que por acaso apreçam nas linhas que se seguem. O assunto me foi dado com a encomenda, já disse.

 

Bem. Devo declarar, logo no começo, que nunca supus ajeitar-me a este indecente meio de vida. É certo que, por volta dos treze anos, achei que deveria ser agradável construir uma espécie de Inocência ou Casa de Pensão e fiz algumas tentativas. Com o correr do tempo os modelos se tornaram maiores, mas aí veio o bom senso e vieram ocupações razoáveis: a idéia de ser literato desapareceu completamente.

 

Há alguns anos porém, achei-me numa situação difícil – ausência de numerário, compromissos de peso, umas noites longas cheias de projetos lúgubres. Esforcei-me por distrair-me redigindo contos ordinários e em dois deles se esboçaram uns criminosos que extinguiram as minhas apoquentações. O terceiro conto estirou-se demais e desandou em romance, pouco mais ou menos romance, com uma quantidade apreciável de tipos miúdos, desses que fervilham em todas as cidades pequenas do interior. Várias pessoas se julgaram retratadas nele e supuseram que eu havia feito crônica, o que muito me aborreceu.

 

Nessas páginas horríveis, onde nada se aproveita, um fato me surpreendeu: as personagens começaram a falar. Até então as minhas infelizes criaturas abandonadas incompletas, tinham sido quase mudas, talvez por tentarem expressar-se num português certo demais, absolutamente impossível no Brasil. O livro que menciono saiu cheio de diálogos, parece insistência de Augusto Frederico Schimidt, que tinha virado editor. É uma narrativa idiota, conversa de papagaios.

 

Nesses oito anos deram-se graves desarranjos na minha vida: mudanças, viagens, doenças, ocupações novas, uma trapalhada medonha. Outra vez assaltado por idéias negras, lembrei-me dos criminosos dos contos. Um deles entrou a perseguir-me, cresceu desmedidamente, um que batizei com o nome de Paulo Honório e reproduzia alguns coronéis assassinos e ladrões meus conhecidos.

 

Talvez me fosse útil afirmar que escritores importantes, naturalmente estrangeiros, ma haviam induzido a fabricar uma novela. Seria mentira: as minhas leituras insuficientes iam deixando o século passado. Em falta de melhor, estava ali à mão um coronel, indivíduo interessante, embora não fosse abonado por mestres de nomes difíceis.

 

A verdade é que os meus negócios andavam encrencadíssimos. É possível que esse sujeito reflita alguma tendência que no autor existisse para matar alguém, ato que na realidade não poderia praticar um cidadão criado na ordem acostumado a ver o pai, homem sisudo em meio termo, pagar o imposto regularmente.

 

Não reli o conto, recenado que o protagonista não estivesse lá como eu agora o via enorme e que os comparsas, uns bonecos silenciosos de tempo da gramática, me atrapalhassem a composição que iniciei doente e interrompi quando entrei no hospital. Ao sair, arrastado ainda com a barriga aberta, findei o trabalho.

 

Em 1935 novas dificuldades me surgiram – e o criminoso do outro conto me importunou. Localizei esse tipo na capital, fiz dele um pequeno funcionário, último galho duma família rural estragada, e dei-lhe um nome insignificante. Luís da Silva, condenado a passar despercebido era prejuízo certo para o editor. Foi o que eu disse a José Olímpio quando ele me falou a respeito da publicação.

-- Não vende cem exemplares.

Foi o que eu disse. Vendeu mais porque algumas pessoas querendo ou sem querer, fizeram do livro uma propaganda imerecida, em conseqüência dum trambolhão muito sério que dei involuntariamente. Sim senhor, involuntariamente.

 

O meu Estado é um Estado respeitável e tem produzido homens de consideração, até alguns heróis. Foi lá que se comeu o bispo Sardinha, em 19556. Enfim é um Estado de que nos orgulhamos. Mas tem o defeito de ser pequeno e estar repleto. Por isso lá nos apertamos e nos incomodamos. Afinal emigramos. É o meu caso, emigrei. Ou antes, fui emigrado em condições bem desagradáveis. Essa viagem inesperada contribuiu para que vários leitores travassem conhecimento com o meu Luís da Silva, o que não teria sucedido se ele e eu vivêssemos ainda na nossa modesta capital, bocejando nas repartições.

 

.Em 1937 escrevi algumas linhas sobre a morte duma cachorra, um bicho que saiu inteligente demais, creio eu, e por isso um pouco diferente dos meus bípedes. Dediquei em seguida várias páginas aos donos do animal. Essas coisas foram vendidas, em retalho, a jornais e revistas. E como José Olímpio me pedisse um livro para o começo do ano passado, arranjei outras narrações, que tanto podem ser contos como capítulos de romance. Assim nasceram Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia, as últimas criaturas que pus em circulação.

 

Todos os meus tipos foram construídos por obervações apanhadas aqui e ali, durante muitos anos. É o que penso, mas talvez me engane. É possível que eles não sejam pedaços de mim mesmo e que o vagabundo, o coronel assassino, o funcionário e a cadela não existam.

 

Graciliano Ramos, agosto de 1939.


Autor: Erica Fagundes Teixeira


Artigos Relacionados


Tpm

Fugidia

Severa Certeza

EssÊncia

CoraÇÃo Machucado

Alguém De Experiência

Constatação