O CANTO DA TRAÍÇÃO



1

D. Josefa para o marido, Seu Joaquim:

- Eu ando preocupada com o nosso filho, Joaquim.

Ele fita o rosto moreno, magro, com as rugas do tempo mais acentuadas e mantém-se calado.

Estão no terracinho da casa também pequena, de duas salas, dois quartos, a cozinha, o banheiro e a área atrás com o tanque de lavar a louça e também roupa. A tarde vai morrendo, para logo a noite se apossar de tudo, agasalhar as residências daqui do morro. O vento circula agradável, acariciando-lhes as fisionomias tensas ante o problema exposto pela mulher.

- O Maurício é ainda um adolescente e andando com essa turminha da rua embaixo...

Seu Joaquim então fala:

- Já cansei de aconselhar ele. Só mesmo partindo pra ignorância!

Ela discorda, pois conhece o companheiro, sabe o quanto ele se transforma quando zangado:

- Mas, Joaquim vamos ver se não chega a tanto!

A voz do homem se eleva, mudada, no prenúncio da contrariedade:

- Josefa o Maurício não aceita conselhos e antes que entre numa "fria", se envolva com o "negócio" de drogas, é melhor eu exemplar ele, pra ver se aprende, se desvia do caminho do mal!

Sim, Joaquim tem razão. O perigo do envolvimento do filho no mundo do tráfico é uma ameaça, um chamado...

- Se ele trabalhasse Joaquim, tivesse em que se ocupar, já que não liga pra o estudo...

- Maurício não quer nada com a vida! Na idade dele eu já trabalhava na fábrica, me acordava de madrugada. Eu nunca soube o que é moleza!

Silenciam. Entregues à ameaça que ronda o filho. Ao futuro que lhes trará dores, o desgosto de... Não, melhor desviar o pensamento. E a mulher retorna a falar:

- Hoje quando ele chegar, você tenha mais uma conversa séria com ele. Mostre-lhe os exemplos dos outros rapazinhos que caíram no "canto da sereia"...

Joaquim então sorrindo:

- Melhor dizer no "canto da traição", porque não existe futuro no caminho da droga.

As primeiras luzes acendem-se nas residências circunvizinhas. Um cão ladra. Uma moto em velocidade corta a rua embaixo. De outra casa um rádio toca o "brega" do momento. A noite nasce, enquanto o casal sem mais nada falar, novamente se entrega ao mundo íntimo, de reflexões angustiantes.

2

- Maurício é você entregar a mercadoria e o cara lhe pagar na hora.

- Mas...

O sujeito mulato sorri, entendendo-o:

- Esfria cara. É só você se prevenir, não dar "vacilo". Como é, aceita ou não aceita?.

Então o braço longo se estende e a mão magra, trêmula recebe o pacote da outra mão grande.

Agora, mais um faz parte da "Organização" que cresce, domina o morro de gente humilde, necessitando de vidas e esperanças melhores, bem melhores...

O corpo esguio, alto do rapazinho se afasta, com o pacote na mão.E o "passador" segue em direção oposta. Cumpriu sua missão. Agora é esperar o que o dia seguinte lhe trará como recompensa.

Acende o cigarro e devagar descendo a escadaria estreita de numerosos degraus, perde-se na noite que em seu seio agasalha os segredos e as angústias humanas.

Numa residência próxima, um cachorro late, pedindo a liberdade.

A liberdade.

Paulo Valença é contista, romancista, com prêmios nacionais, membro de várias instituições literárias, presente na internet, por meio de sites, e reside em Recife/PE.


Autor: Paulo Valença


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