Selecionador



SELECIONADOR

De Romano Dazzi

 

Dia comum, de trabalho; gente apressada, carros arrastando-se em filas intermináveis. Uma chuvinha fina, só para atrapalhar.

Em geral chego em 45 minutos; de madrugada, já consegui em 12 ; hoje, demorei uma hora e meia.

Chego aborrecido pelo atraso, enfrento a cara feia de quem ficou me esperando. E eu tenho culpa?

Meu trabalho é difícil e sinto-me só, apesar de estar no meio de um escritório movimentado e barulhento.

Trabalho com gente. Pessoas são minha matéria prima, funcionários meu produto final. 

Sou um selecionador. 

Devo olhar, examinar, pesar, inquirir; devo decidir em vinte segundos se alguém pode ser útil para a firma ou se é melhor descartá-lo 

A fila está grande;  os candidatos tensos, impacientes. 

Mando passar o chá de múltipla escolha: camomila, erva doce, erva cidreira ou nenhuma das anteriores.

Desde que aboli o café todos ficam mais calmos.

 

Entre o primeiro!

É um garoto de 17 anos; espera desde as  6 da manhã; deve ter vindo de longe; quer ser ajudante de expedição.

Deve estar precisando muito, mas tem uma caligrafia péssima e nunca deve ter aberto um livro de ortografia ou gramática. Pena. Tinha um jeito simpático e despachado.

A entrevista é rápida e inútil.

Mas como posso mandar à  expedição um sujeito despreparado assim? O pessoal vai me fuzilar.

Recusado. Mas com boas maneiras; e  antes de despedir-me sugiro-lhe que pratique um pouco menos de futebol e um pouco mais de português....e que tenha fé.

 

Próximo!  Este é para a vaga de auxiliar de contador.

É  um homem de seus 28 anos. Casado, dois filhos. É um “quase” contador; chegou ao ultimo ano mas não se formou.

Treme feito vara verde. Nervoso, inseguro, dá até pena.

Foi despedido junto com outros, porque a firma onde trabalhava está falindo. Vai bem na prova, conhece a profissão creio que terá alguma chance; se o pessoal de cima gostar dele, é claro.

O meu “não” é definitivo; mas o meu “sim” ainda está sujeito a aprovações e consensos.

Encaminho-o, na esperança que o aceitem.

Dou algumas recomendações e lhe peço que me dê notícias.

 

 

Próximo!

É uma garota de uns 25 anos. Também ela perdeu o emprego. Era assistente de marketing. Trabalhou três anos. Assistente, auxiliar, ajudante, denominações diferentes para as mesmas tarefas. Ir aos poucos substituindo um chefe, um  encarregado, um gerente.... acorda, menina. Três anos só assistindo, é muita coisa. Tenha iniciativa, parta para arriscar. Faça a sua própria oportunidade. Aja!  Ela com certeza vai se encaixar num setor que evolui e cresce. Dou um “sim” e mando em frente. Vejo o alivio nos olhos dela e gostaria de ver esta mesma expressão em todos os que entrevisto...

Assim vem o quarto, o quinto, o sexto.... Cada um com um jeito de ser, com seu problema e suas esperanças.  Pequenos ou grandes dramas,  assuntos urgentes....questões importantes.

Sei que qualquer pessoa é imprevisível e surpreendente; tem recursos e capacidades insuspeitas; pode agir com o cérebro, com o coração, com o espírito, ou com todos eles juntos. Sei que não basta uma vida inteira, para conhecer uma pessoa.

Meu Deus, como gostaria de poder dar uma mão a cada um deles! Poder abrir as portas da firma e dar a todos a oportunidade que procuram.

Mas não posso. E só tenho vinte segundos.

Deram-me apenas uma régua, para analisar  as pessoas. Só me permitem usar este instrumento.

Quem não tiver as medidas certas, não entra. E não me resta se não pedir desculpas por barrá-lo.

......................

 

Finalmente é noite. A garoa continua caindo e confunde imagens e reflexos, multiplicando as luzes e fragmentando as cores.

Pego o meu carro e entro na fila de executivos importantes e solitários, que hoje demorarão no mínimo uma hora e meia, para voltar aos seus apartamentos silenciosos.

 

Penso.

Ser um  selecionador tem algo de juiz, de carrasco; equivale a decidir o futuro dos outros, encaminhá-los ou sacrificá-los.  

Deixar acesa uma esperança, ou apagá-la de vez.

Pelo menos, até que consigam acender outra oportunidade.

Mas quem me deu este direito? Quem sou eu ?

Por que logo eu tenho que assumir o peso da decisão?

Amanhã vou pedir minha demissão. Não quero mais.

Prefiro ser um candidato a qualquer coisa e ficar na fila, tomando erva cidreira. 

Com certeza, vou me sentir melhor. Muito melhor.

 

   

 


Autor: Romano Dazzi


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