Nota sobre a origem e evolução das ideias: uma explicação darwiniana ou lamarckiana?



Neste ano em que se cumprem 200 anos sobre o nascimento de Charles Darwin, e 150 anos sobre a publicação da sua obra maior A Origem das Espécies, muito justamente por toda a parte se tem reflectido sobre a origem e a evolução histórica das ideias darwinistas, até à Teoria Sintética da Evolução que as combina (àquelas ideias) com a genética de Gregory Mendell. A saber, uma vez posta a hipótese de que algumas novidades ocorrem casualmente na reprodução das espécies vivas, e postulada a adequação ao meio como critério de selecção dessas ocorrências, com a genética ficou respondida a pergunta pelo modo como os espécimes seleccionados transmitem as características adequadas aos seus descendentes.

Tais hipóteses, postulados, respostas teóricas… pressupõem alguma forma de explicação, ou ao menos de composição, dos processos de origem e evolução histórica das ideias. Todavia este pressuposto raramente é explicitado, e convenientemente consolidado. Ora o que é muito interessante neste caso é que o darwinismo se constituiu como paradigma explicativo da evolução em geral, como tal aplicado à origem e evolução histórica das ideias, ao ponto pois de inflectir sobre si mesmo visto que esse corpo teórico é mais um dos momentos daquela história. Normalmente isto só acontece às ideias filosóficas, por serem radicais… mas, então, vem a propósito a referência ao trabalho de Nicolas Jouvenet (2009b) na capa da revista que o publica: “Darwin – entre science et philosophie”…

            Neste Ano Darwin, com a presente nota procuro assinalar essa reflexividade explicativa, e a radicalidade que assim advém ao darwinismo, mais uma observação epistemológica e outra cultural.

            Esse biólogo inglês situou-se perante a questão, que vinha do século anterior, da alternativa entre fixismo e transformismo em relação à história natural – sempre terão sido as espécies tal como se encontram hoje, ou ter-se-ão transformado? Darwin, como Lamarck, argumenta pela segunda posição. A qual abre a questão dos processos de origem e de evolução das espécies. Perante a qual esses autores divergem: cumprida a adequação, o segundo defende que também se transmitem as características adquiridas por cada espécime, enquanto o primeiro argumenta que apenas as inatas se transmitem, ou ocorrem casualmente. Esta tese tem-se revelado mais coerente e adequada às observações do que a lamarckista – apesar da dificuldade em cumprir o requisito científico de facultar previsões verificáveis… e voltamos a um estatuto aproximável à filosofia – pelo que o darwinismo se estabeleceu no meio científico.

            Mas logo a meados do séc. XIX extravasou a biologia, nomeadamente num debate entre evolucionistas e criacionistas que faziam uma interpretação literal do Livro do Génesis (os seres vivos teriam sido criados por Deus tal como se encontram hoje). Debate que se sofisticou, no séc. XX, com a substituição da segunda posição pela teoria do inteligent design, que aceita uma evolução (furtando-se pois aos contra-casos apresentados pela paleontologia ao criacionismo anterior), mas orientada pelo Criador desde o início, e portanto não casual. Antes disso, aliás, já Charles Darwin terá sido teoricamente sugestionado pelo seu conhecimento dos economistas liberais clássicos e da demografia de Malthus, uns e outro defendendo equilíbrios espontâneos (no mercado e nas populações) mediante adequações entre necessidades e recursos. O impacto do darwinismo reforçou retroactivamente essa família de teorias sociais e humanas, nomeadamente com o darwinismo social. Também no âmbito das ciências naturais esse modelo (i) de novidades ocasionais, (ii) selecção natural, e (iii) algum processo de replicação da informação, se estendeu para além da biologia. Por exemplo na cosmologia contemporânea, com a hipótese duma multiplicidade de universos independentes que se reproduzem noutros. E ainda na filosofia, há quem ensaie uma ética evolucionista – segundo a qual os juízos sobre o que é bem representam as condições de sobrevivência que vingaram ao longo da evolução da espécie humana – contra as tradicionais éticas humanistas que sustentam a possibilidade dos homens se ultrapassarem num altruísmo desinteressado, etc.

            A história do darwinismo começou assim antes dele – designadamente na economia e na demografia. Com Darwin ocorreu uma pequena novidade teórica. Que se adequou ao meio intelectual da época. Em particular evoluindo para uma composição com a genética mendeliana, teoria sintética esta que, embora estabilizada nos seus traços gerais, continua a sofrer evoluções – ex. teoria neutralista (M. Kimura), teoria do equilíbrio pontuado (S. Jay Gould, N. Eldredge). Entretanto o larmarckismo não se dissolveu integralmente, a evolução de espécies não-sexuadas, como vírus, poderá ser explicada mediante uma transmissão de características adquiridas.

            Para melhor se responder nestes debates teóricos, tanto além quanto aquém das fronteiras darwinistas, importa então esclarecer os modos de origem e de evolução de quaisquer ideias. Formulei o parágrafo anterior numa tentativa de exibir a possibilidade de responder, darwinianamente, a esta questão da história das ideias – entre elas, a darwinista e a lamarckista.

            Mas um modelo lamarckiano também será possível (afinal as ideias não são sexuadas!): dir-se-á então que mal o modelo – que se haveria de chamar “darwinista” – se revelou adequado por exemplo em demografia, se transmitiu alteradamente para a biologia, na qual se alterou e retransmitiu estas alterações consubstanciando o darwinismo social, assim como incorporou a genética e passou a transmitir-se nesta forma sintética… Enfim, a ideia é que a transmissão é contínua, mesmo enquanto uma ideia é mantida por um mesmo sujeito este vai alterando-a até a transmitir diferente de como a recebeu. Lamarckianamente, dir-se-á que o lamarckismo biológico ter-se-á revelado inadequado por não ser capaz de gerar um seu desenvolvimento contínuo em resposta às observações empíricas, e ao jogo com outras teorias.

Em suma, muito mais evidentemente do que a paleontologia em relação à história natural, a história das ideias revela que estas surgem, transformam-se, e podem ser abandonadas. Inspirando-nos em duas dessas ideias precisamente sobre origens e evoluções, encontramos uma explicação descontinuísta, de uma sucessão de ideias em si mesmas fixas, segundo um jogo entre elas e os seus meios culturais, e uma outra explicação continuísta, que concebe antes cada ideia como um fluxo que se processa ao longo de momentos que se interligam.

Observação 1 – Como poderemos escolher entre uma e outra explicação? Me parece que, aqui, temos que regredir da metodologia implicada, via Mendell, na Teoria Sintética da Evolução, para o darwinismo puro e duro: pois o monge austríaco foi um cientista moderno, progredindo mediante experiências controladas em ordem à verificação de hipóteses prévias. Mas será um bocado mais difícil controlar a experiência em curso da história das ideias mundiais (no seio das quais surgiu agora esta nossa) do que as experiências com ervilhas na horta de Mendell… Logo, como de Aristóteles a Darwin se fez na biologia, restar-nos-á observar, descrever, e especular explicações causais. Que valor epistemológico caberá porém assim a uma história das ideias metodologicamente antiga, ou darwiniana?…

            Observação 2 – Pela minha parte, que algumas vezes me tenho acercado do tema da alteração de mentalidades, de influência cultural, etc., aquela questão da escolha da explicação da evolução das ideias adquire relevância prática: uma resposta darwiniana implicará, creio, que esta influência, ou seja, a selecção das ideias vencedoras e a respectiva transmissão, dependem de factores ideais intrínsecos, como a formulação coerente, e de outros de adequação ao meio, como (hoje em dia) serem publicadas em inglês, etc. Mas as pessoas que as mantêm não serão significativas pois em nada as alteram (à excepção dos génios criadores, mas, darwinianamente, a criação será questão de sorte). Ao contrário, lamarckianamente cada uma destas pessoas é um hospedeiro que pode interferir com o vírus ideal que transporta, precisamente pelo modo e o percurso do transporte que o hospedeiro decide. Segundo este outro modelo explicativo, o trabalho daquela influência cultural deverá talvez incidir especialmente nestes aspectos pessoais da assunção, aplicação e proposta de quaisquer ideias – ou seja, na retórica, não só verbal mas também comportamental – e não tanto, ou não exclusivamente na crítica lógica, impessoal, depois cuidadosa apenas com o alcance ou o impacto dos meios técnicos de apresentação dessas análises teóricas, que darwinianamente farão sentido.

Sugestões bibliográficas

Boyd, R.; Richerson, P. J. 1985. Culture and the Evolutionary Process. Chicago: University of Chicago Press.

Boyer, P. 1994. The Naturalness of Religious Ideas. Berkeley: University of California Press.

Journet, N. 2009a. Le nouvel évolutionnisme. Sciences Humaines, Nº 200: 60-65.

¾                2009b. Charles Darwin: Aux origines d’une idée. Sciences Humaines, N. 202: 50-55.

Lumsden, C.; Wilson, E. O. 1981. Genes, Mind and Culture: the Coevolutionary Process. Cambridge, Mass., Londres: Harvard University Press.

Sperber, D. 1996. La Contagion des Idées. Paris: Odile Jacob.
Autor: Miguel S. Albergaria


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