A Locomotiva 126



A  LOCOMOTIVA 126

De Romano Dazzi

 

Foi um ano estranho, o de 1938.

Um ano que passou lentamente, quase como se não quisesse deixar-nos, como se ele soubesse os frutos amargos que os anos seguintes nos trariam.

A guerra estava batendo às portas, e nós nem percebíamos.

Bom, na época eu tinha 10 anos, e minhas idéias sobre o mundo ainda não tinham desenvolvido o bastante.

Era tempo de bicicleta, meu instrumento preferido,  ao mesmo tempo meu telescópio e microscópio com o qual observei e conheci bem aquele meu pequeno mundo .

A estação da estrada de ferro era um dos meus passeios preferidos.

Na realidade, era apenas uma estação terminal.

A ferrovia, chegando na cidade ficou assustada com a altura das montanhas e desistiu de subir.

Ali era o fim da linha; nada de trens expressos, a passar correndo, deixando fumaça, vapor, poeira.... 

Durante o dia, a cada hora chegava um trem.

As locomotivas vinham cansadas pela subida, ofegantes, precisando de um gole de água. Nos vinte minutos em que ficavam na estação, enquanto os passageiros desciam e subiam, elas bebiam umas duas toneladas, apenas o suficiente para a viagem de volta. 

Usavam carvão, e sua fumaça era  mais preta que a das fábricas, que usavam lenha

 

As duas ou três linhas dos trens de passageiros, eram terra proibida; principalmente para garotos de bicicleta, como eu.

 

Mas o pátio, era outra coisa; o trilho principal, um quilômetro adiante, separava-se, a cada cinqüenta metros, em duas ou três linhas secundárias, que vinham chegando, paralelas, deixando largos corredores entre elas.

Cada linha acabava em uma montanha de terra batida, reforçada por estacas de madeira. 

Prova que os engenheiros não confiavam muito nos maquinistas – ou nos freios das máquinas que faziam....

Nesses vinte e poucos trilhos eram deixadas dezenas de vagões de carga, que seriam descarregados depois,  com calma, porque, como disse, o ano corria muito devagar.

Deles saiam as cargas mais inesperadas.

Vinte toneladas de peras para compota; eu sempre roubava alguma, mas eram péssimas de se comer assim; duras, amargas; só cuspindo; como podiam transformar-se em doces tão gostosos, ficou para sempre um mistério.

Trinta  cabras reprodutoras,  cujo mau cheiro inundava o pátio inteiro e em dias de  vento sul, chegava até o  bar dos ferroviários. Os homenzarrões bigodudos, de colete e relógio de corrente, saiam do bar furiosos, amaldiçoando os pobres quadrúpedes. ,  Cinco ou seis vagões com enormes fardos de lã australiana, que iam diretamente aos lanifícios. Todos espirrávamos e tossíamos, mas nada sabíamos de alergias, então.

Tanques de ferro para tingir, prontos para se estragar em poucos meses, nas tecelagens, porque ainda não conhecíamos o aço inoxidável..

Paralelepípedos de granito, encomenda da Prefeitura, para  a praça da cidade

Cada vagão era uma  adivinhação; a cada porta se abrindo, uma surpresa.

A estrada de ferro tinha um plano perfeito: os vagões chegavam, eram arrastados para uma linha  pré-determinada, eram descarregados e recebiam outras mercadorias. Caixas, caixotes, engradados, maquinas esquisitas, tanques de óleo, sacos de batatas e caixas de cenouras.... até umas vacas ou uma tropa de burros,  eram embarcadas, vez por outra...

Os vagões tinham que ser arrumados para montar  um novo trem; dependendo do destino, cada vagão teria que se encontrar em um lugar certo na composição. Os vagões destinados às estações mais próximas, ficavam na ultima parte do trem.

Tira um, põe outro, tira aquele, põe este, era um grande jogo de xadrez.

Neste momento, começava a minha alegria, o meu orgulho. Tinha feito amizade  com os maquinistas, largava a bicicleta no chão, em qualquer canto, e subia a bordo da 126. 

Era uma rainha, a 126;  a  locomotiva de manobra.

Antiqüíssima, talvez uns trinta anos mais velha que eu, mas ainda garbosa, bem conservada, brilhante nos seus “metais” como se fosse um instrumento de fanfarra..

Eu já conhecia de cor seu funcionamento. A alavanca do vapor era tão longa, que bastava dar um ligeiro empurrão, uns três dedos no máximo, e a máquina começava a andar, lenta,  suave, obediente; só  tinha que ter paciência, pois ela respondia devagar. . 

Deixavam-me leva-la até perto dos vagões, às vezes, até encostar num deles, mas sempre com medo de dar um empurrão muito forte.

O segredo era tirar o vapor uns vinte metros  antes, e deixa-la deslizar.

A dois metros do vagão, virar a roda do freio, bem depressa. A inércia fazia o resto. Quando encostava sem trancos, os maquinistas me cumprimentavam – e eu sabia que viria bronca da minha mãe, porque aquelas mãos enormes deixavam respeitáveis marcas de graxa, de carvão, de óleo, na minha roupa. Mas não importava.

A 126 ficou comigo por todo o ano.

Quando começou a cair a neve,  chegou um locomotor diesel novinho e a 126 foi aposentada. 

Pouco depois, o tempo recomeçou a correr como sempre – ou talvez, como nunca; o ano longo, aquele que não acabava mais, finalmente se foi. 

Veio a guerra, soldados por todo lado, aviões,  bombas, enfim  tudo o que não esperávamos. 

A 126 ficou largada entre outros ferros velhos, no fundo de um depósito, no pátio.

Eu ia visitá-la, de vez em quando, mas ela não estava bem.

Envelhecida, sem cuidados, os metais sem brilho, a ferrugem aparecendo.

Quem sabe para onde tinham ido aqueles maquinistas que tão bem cuidavam dela.  Por fim, num dia frio de dezembro, uma bomba caiu no depósito.

Fui ver – eu já tinha 14 anos, ainda conservava a mesma paixão, mas achei que poderia agüentar a emoção.

O depósito tinha sumido com a explosão; e eu tive certeza que a bomba tinha procurado justamente a 126.  Caiu-lhe em cima, deixando-a em pedaços, em escombros.  Os faróis sem vidro, vazios como olhos de um cego, confirmaram que ela tinha deixado definitivamente de existir.

Fiquei desolado. E entendi alguma coisinha a mais sobre o mundo,  a vida e  a nossa obrigação de deixarmos para trás o que já não é nosso.

Mas olhando para o grande numero pintado na frente, ainda me pareceu ouvir aquele suave ciuff, ciuff,  - ciuff,  ciuff  do  pistão principal  da 126 .

Uma parte do meu passado ficou lá, para sempre perdido.... 

 

          


Autor: Romano Dazzi


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