O ASSALTO



 

O ASSALTO

De Romano Dazzi

 

Na nossa cidade está ficando tudo muito perigoso.

Em qualquer lugar,  dentro ou fora de casa, você pode ser abordado por alguém, assaltado e atacado violentamente.

Mesmo um ladrão sozinho é capaz de trazer o desespero e o terror e todos ficamos reféns da vontade dele;

É estranha esta situação – completamente anormal e sem razões.  

 

Outra noite estava eu tranquilamente trabalhando no micro, juntando dados para o imposto de renda.

- Luis! – gritou minha mulher do quarto – Você não vem dormir? 

- Já vou, Maria! Estou fechando o programa, me dê cinco minutinhos!

E de fato, cinco minutos depois eu estava entrando na cama.

Sei muito bem que ela demora muito para dormir quando está sozinha e depois que consegue, quando eu chego, com os pés gelados e esticando o corpo todo, ela acorda, perde o sono e se levanta achando ruim; vai esquentar um chá e ver se àquela hora, ainda tem algum programa decente na televisão. 

É um momento crítico, porque justamente naquele momento meu sono chega e caio duro.

Em geral ela volta uma hora depois, resmungando porque não havia um filme que prestasse; vinte canais com desenhos animados; dez com filmes pornográficos; dez falando de justiça, política, economia, que também não deixam de ser pornografia, sob muitos aspectos; e por fim, uns dez canais religiosos, com pastores que gritam, berram e esbravejam, tentando transmitir à força as mensagem do Senhor.

Fico imaginando se o Senhor precisa mesmo dessa gritaria toda....

Enfim,  o que se há de fazer? É o progresso...

 

Mas naquela noite, quando já estávamos pegando no sono, uma voz grossa, ameaçadora nos assustou: - “Mãos ao alto!” –“Todo o mundo parado!”  Meus olhos ficaram ofuscados pela luz do quarto que se acendeu de repente.

Um mulatão forte, com cara de mau, dentes maltratados, olhos que mostravam só ódio e desprezo,  estava de pé ao lado da cama, pronto para nos agredir, com um revolver na mão. ”Quietos, não façam nada, não se mexam. Nem pensem em gritar!”  A ordem era peremptória, seca; um ultimatum verbal que não admitia discussão.  Com certeza tinha entrado por aquela maldita porta dos fundos, que nunca consertei.

Surpresa., susto, pânico, absoluta incapacidade de mostrar qualquer reação, apoderaram-se de mim e da Maria.

Tinha imaginado às vezes, que este momento poderia chegar.

Moramos numa casa térrea, com um jardim lateral e cercada de sobrados.

Um muro de dois metros nunca seria barreira suficiente para segurar algum mal intencionado.

Imaginava como seria, como reagiríamos, o que teríamos para oferecer, para barganhar; se nossas modestas alianças de ouro antigo, gastas por sessenta anos de uso, seriam suficientes para conservar-nos vivos ainda pelos poucos meses que nos faltam.

Dinheiro, não tem. Estou desempregado porque estou velho; ou estou velho porque estou desempregado – não me lembro mais o que veio primeiro....

Aliás, nesta casa tudo está velho; um pouco menos do que nós, é claro, mas no limite máximo do uso; tudo está se desmanchando, como nós; a casa, a TV,  o fogão, o micro ondas, o forninho; a máquina de lavar roupas, cujos gemidos incomodam até os cachorros das vizinhança. a heróica geladeira frost-free, que já passou da maioridade.

Só o micro é um pouco mais novo; tem oito anos – uma criança, ainda.; queria vendê-lo, em troca de um dinheirinho, mas quando  vi os modelos atuais, bem mais modernos, à venda por 12 parcelas de 13,50,  perdi a confiança.

Então, oferecer o quê, trocar o quê, barganhar o quê?  

Meus pensamentos iam e vinham, batendo velozes e sem controle como bolinhas malucas de ping-pong.  Ping!.... Pong!... Ping!....Pong!....   

Olhei para a Maria. Também estava atônita, sem reação.

Dois pobres velhos apavorados, desamparados, completamente dominados por um agressor que parecia violento e ameaçador. 

E ainda por cima, não temos nenhuma arma. Não nos é permitido: somos velhos, podemos nos machucar. Aliás me diziam isso  mesmo quando eu era novo; larga isso imediatamente! Você é criança e pode se ferir ou pior, ferir alguém!  Não entendia por que seria pior.  Nada seria pior que machucar a mim mesmo. Seria muito mais dolorido do que machucar um outro...

Telefonar, talvez?  Poderia pedir licença – será que o assaltante, com uma boa conversa,  permitiria? Não, decididamente não.

Então, calma, muita calma. Um conselho antigo me voltou à mente: Não resista à ventania. Se ela não encontrar obstáculos, o seu impulso se desfaz sozinho. 

Não resista, não se oponha, não lute, não reaja, não ameace.

Mas aquele revolver na cara não tinha jeito de ventania, nem tendências para se desfazer no ar.

Outro conselho: converse com calma.

 Ensaiei uma tentativa. Pensei dizer: -  “E então, camarada,   como vai o distinto?”   Não; talvez fosse melhor mostrar uma camaradagem ainda maior: “Olá, meu chapa, como tem passado ?  Como estão as crianças?”  (“Chapa”? “Chapa”?  De que baú chegou essa? Faz pelo menos vinte anos que não se usa. Nem sei se ainda vale “Irmão” ou “Mano” ou “Truta”. O que se usa hoje?), Assim, logo perdi a esperança de uma aproximação. Ele continuava me encarando feio e não parecia ter nenhum interesse em socializar.

Estes pensamentos todos passaram pelas minha cabeça no máximo em cinco segundos; seguramente não mais.

Tudo analisado, não tinha como me salvar; mas apesar de tudo, ainda teria uma cartada.

 - “Maria” – ouvi a mim mesmo dizer calmamente –“ vai esquentar  água para a macarronada.! Rápido !”

Maria sabe que gosto muito de um bom macarrão à meia noite e não estranhou nada . Levantou-se,  vestiu seu penhoar cor de rosa, e foi para a cozinha.

“Você está convidado, meu amigo.! – Ainda era eu que estava falando, da boca para fora, enquanto a cabeça, completamente vazia, continuava adormecida, sedada pelo terror, incapaz de tomar qualquer decisão.

“Enquanto fica pronto, me ajude a pôr a mesa....”

Agora quem estava atônito era ele, o nosso visitante noturno. 

Tomado de surpresa, pelo inusitado da situação, apressou-se a me seguir para a cozinha.

Estendi-lhe a toalha, os talheres, os pratos, os copos o queijo ralado; abri uma garrafa de vinho – a última de meu finado estoque – e  ajudei-o a pôr a mesa na salinha.

Ele perguntou onde poderia lavar as mãos e eu permiti que deixasse a porta do banheiro  aberta para se precaver de qualquer surpresa.

Quando estava entrando, deu-me o revolver para segurar. Estava tranqüilo, estava em boas mãos. Aquele brutamontes não precisaria usar um revolver; um simples tapa,  e eu viraria pó de Luis, produto supérfluo, sem nenhuma utilidade..

Ai, vi que era uma arma leve, de plástico; um revolver de brinquedo.

Mas fingi que não tinha percebido. 

Finalmente, quando  a pasta ficou pronta, com o suculento molho que só a Maria sabe fazer, sentamos à mesa os três. Comemos, bebemos, trocamos comentários.  Ofereci fruta – não quis; um cafezinho – “não, obrigado , me tira o sono”; um cigarro – “não, não fumo, graças a Deus!” . “Eu também não”, respondi com calma.

Aproximava-se a hora crítica. Tudo voltaria ao terror do primeiro momento?

“ - A propósito, qual é o seu nome?” - perguntei afetando interesse.  

“ - Nada de nomes” -  murmurou o homem, com a sua voz cavernosa. 

“ - Mas se quiser” – acrescentou com uma expressão indefinível – “ pode me chamar de Graziela, que é como me conhecem no bairro.”

Caiu-me o queixo.  “ – Graziela.....Prazer...” – balbuciei.

“ - Duas coisas: “ – continuou o homem, sem me deixar o tempo de puxar o fôlego – “ Primeira: se comentar alguma coisa, com qualquer pessoa, sobre o que houve aqui esta noite, volto e lhe arrebento todos os dentes que você ainda tem na boca “

“E a segunda?” – perguntei aliviado, visto que não tenho mesmo dente nenhum.

“ - A segunda é : mande consertar aquela porta dos fundos. Onde já se viu? Uma porta dessas é um acinte à minha classe, uma afronta a qualquer critério de segurança!” .

 Deu dois passos e “- por onde se sai desse casebre?” disse com todas as letras. Depois virou-se e: “parabéns, dona Maria, pelos seu molho. Estava uma delícia!”.

 

Abriu a porta da rua e afastou-se na escuridão. 

Dois ou três cachorros começaram a latir.

Pus a cabeça para fora e gritei firme:

Quietos ! É amigo! “.

 

Maria, na cozinha,  estava satisfeita, animada.

 “O melhor filme a que já assisti!

“ Emoção, carinho, envolvimento, comida, amizade!....Tem de tudo!....”

“- Agora chega, Maria!” atalhei – “- Vem para a cama, mulher!”

 

        

 

 


Autor: Romano Dazzi


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