OS JAGUNÇOS - SEGUNDA HISTÓRIA: A Morte visita o Quilombo



Um deles era a maldade em pessoa. Matou o irmão no terreiro do rancho depois de terem espalhado favas de feijão pra secar no tabuleiro do quintal. Este irmão era aleijado, tinha uma perna mais curta que a outra, doença que pegara menininho; andava mancando, mas não era, este irmão, de "entregar os pontos", andava meio que rebolando, mas andava. Jogava bola, trepava em árvores, montava a cavalo, e dançava também. E trabalhava muito.

Não eram, esses irmãos, como Abel e Caim. Eram bons companheiros. Um se chamava Raimundo, o outro, Altemar.

E não foi num acesso de raiva que Raimundo matou o Altemar, foi coisa pensada.

Altemar, o aleijadinho, era muito respondão. Raimundinho era muito nervoso. Era bom, generoso, mas muito nervoso. Tudo poderia ser explicado pelo fato de Altemar ser muito respondão. Mas a causa não foi esta, foi Maria Rita.

Maria Rita era a mulher do Raimundinho. Raimundinho era bom, mas muito nervoso. E muito ciumento. Maria Rita havia mudado as maneiras no tratamento com o severo Raimundinho, e ainda não sabemos por que. Bem capaz que Altemar soubesse.

Altemar não conhecia mulher, mas era como se conhecesse. Não fosse a perna mais curta e aquela manqueira, muita moça das redondezas trocaria vários Josés e Joãos por ele. Altemar tinha lá seus modos de falar, de olhar e de cantar, que, sei não, fazia mulher botar nos sonhos aquela carinha bonita e aquele jeito de olhar.

Altemar era muito trabalhador, esforçava-se em não ser um peso para o irmão, cuja bondade e responsabilidade passavam dos limites. Trabalhando e fazendo uns negocinhos, umas permutas, ia juntando dinheiro querendo conquistar maior independência para satisfazer seu orgulho.

Porém, depois das abrigações cumpridas, de tardinha, pegava do violão e tocava e cantava bonito, com voz e jeito de homem de muitas camas.

Raimundinho e Altemar não tinham mais pai nem mãe. O pai a doença levara: mal dos pulmões e nunca se soube se da cachaça, do cigarro ou dos pós e fumaças das carvoeiras. A mãe, aquela a febre levara também, não por culpa da pinga, mas "de infecções no úter", como afirmava, sobranceira e convicta, Rita de Cássia, a irmã caçula dos dois.

Uns tios criaram a filharada dos falecidos. E depois de solto, quero dizer: emancipado, taludo e adulto, Raimundo foi criando a irmandade, dedicando carinho mais privativo e atencioso ao irmão aleijado, enquanto ele mesmo se criava neste mundão de meu deus.

Mas voltemos ao terreiro do rancho, onde os dois irmãos espalhavam favas de feijão pra secar. E busquemos saber por que Raimundinho, o irmão cuidadoso, matou Altemar, o irmão aleijado.

Num foi por nada não, não foi por nada importante, foi só por causa de mulher. Causa que sempre matou pela vida à fora, desde que a gente, nós, homens, tomamos a rédea do mundo e decidimos que tudo ia ficar bem. Acontece que a mulher, esta obra que deus criou depois que estava cansado, ou depois que aprendeu direitinho a criar as coisas, e esculpiu isto que é a coisa mais bem feita do universo, deu de prestar atenção ao cunhado Altemar.E deu de mudar as maneiras com Raimundinho.

Maria Rita sabia ou desconfiava que Altemar não conhecia mulher, mas não era nisto, talvez, que ela pensava quando, de tardinha, quase que de noite, enquanto Raimundinho, sem nunca falhar, ia ao rio se banhar e pescar uns bagres, Maria Rita se punha à janela do rancho e ouvia...

Altemar, obrigação cumprida, sentava-se no banco de tábua grossa de sucupira, que ele mesmo fizera usando seus pendores de carpinteiro, e punha um cigarro de palha no canto da boca, cigarro que raramente acendia, e dedilhava o violão e tocava e cantava bonito. E Maria Rita escutava, sentindo dó demais do rapaz, mas gostando em demasia daquela voz, das melodias, e muito mais das letras apaixonadas.Causos de gente que sofria, de traições, de pobreza e de sucesso, de moças bonitas e de homens que comiam o pão que o diabo amassava com o rabo e depois venciam tudo e todos para enfim ficar com a donzela que o esperava. Canções do tempo em que havia donzelas, e que estas esperavam... Canções do tempo em que havia homens que lutavam galhardamente e mereciam ser esperados.

Quando Raimundinho voltava do banho a janta estava sempre pronta. Mas o magro Altemar não gostava de jantar, ficava cantando.E se ria das zangas do irmão:

"Vem comer, Magrelo!"

Raimundinho falava pro irmão jantar e dormir cedo, pois havia que pegar na labuta de madrugada. Altemar sempre se levantava cedo, sempre agarrava a labuta, sempre dava conta do serviço. Manqueba ou não, serviço dele nunca ficava por fazer, sempre terminava e ninguém poderia dizer que ficara mal feito.

Houve, certa vez, que mesmo magro e saudável, o manco Altemar caiu de cama. Coisa rara. Mas coisas raras acontecem. Nem gripe, nem defluxo, nem braço quebrado. Um coice. Coices duma mula puxadeira de carroça. Traziam os dois, ramas de feijão da roça, quando, passando por um atoleiro, a mula empacou. Os dois irmãos empurraram daqui, forcejaram dali, incentivaram de acolá, puxaram, gritaram, elogiaram e xingaram. E nada da mula se mexer. Tiveram que retirar os arreios da mula. E eis que, Altemar, cansado, mas brincalhão, deu de dar uma chicotada nos traseiros da mula. Levou um coice. E caiu de cama, machucado.

A carne macerada nos flancos. O arroxeado se espalhava, às direitas do umbigo, e descia, descendo pra baixo, mais para trás, onde ele tinhavergonha de mostrar.

Cuidadosa, Maria Rita preparou compressas da erva de santa-maria, boa pras machucaduras. O cunhado falou que não precisava. Ela insistiu com o zelo de enfermeira sertaneja e destapou a colcha que o cobria. Ele tinha ereção.

E aconteceu.

Não entremos em detalhes – quem não entender o que aconteceu que se foda. Mas também não saiamos assim, às carreiras, daquele quarto. Há que, por mais que isto nos deixe confusos, embaraçados, ou, como Altemar, em posição de sentido, há que nos deixarmos ficar um pouco mais, nem que seja por maldosa curiosidade. Ficaremos. Não por "maldosa curiosidade", é certo, nem por que não tenhamos escrúpulos, mas devido a sermos adultos e podermos suportar dissabores ou exaltações, tipo aquela... aquela... aquela "exaltação" do Altemar [falta-me, agora, a palavra, leitora ou leitor], mas já que ficamos, vejamos o que aconteceu:

Acontece que ela se debruçou. Acontece que ela cheirava. Acontece que ela era mulher!

E acontece que Altemar, mesmo aleijadinho, era homem e exibia... [não olhe, leitora!] exibia, hã, exibia o seu desejo em toda a extensão! E Maria Rita se deitou com ele.

Quem o culpará? Quem for inocente que atire a primeira pedra!

Quem a culparia? Quem for inocente que atire a primeira pedra!

Quem os culparia? Quem for inocente que atire a primeira pedra!

Ninguém sabia, nem Raimundinho, nem Maria Rita, nem Altemar, nem eu, nem você, leitor ou leitora, que o manquinho tinha tanta energia!

Embora Maria Rita, ela somente, adivinhasse que o cunhado, com voz e jeito de homem de muitas camas, precisava mais dela do que o marido Raimundinho.Mas não foi apenas por isto que ela se deitou com ele. Houve, é certo, outras injunções ou implicâncias. Só que eu não sei quais foram. E assim, leitora ou leitor, nunca ficaremos sabendo a não ser que você volte atrás [me perdoe a redundância] e releia, se é que já não esteja cansada, ou cansado, demais.

Mas continuemos.

Disse Maria Rita, depois, quando Raimundinho apareceu, que sentira pena e por generosidade deitara-se com ele. Mas Raimundinho não acreditou nestas baboseiras.

Quem acreditaria?

Altemar foi morto com quatro tiros no peito, e mais dois, que se alojaram na barriga. Altemar morreu dum jeito que preferiria esconder: os dois tiros na barriga abriram os intestinos dele, rasgaram as tripas, debruçando as fezes. A catinga e as frissuras foram saindo barriga à fora. O pior era aquele cheiro de merda, lamentar-se-ia Altemar, se pudesse lamentar, enquanto subia para os braços do Criador, aquele que o pusera no mundo, aleijado.

O que teria atraído Maria Rita? O que a levaria a fazer esta "caridade" ao cunhado? Quais sentimentos movem a gente e nos levam a tomar uma decisão, ou, sem tomar decisão consciente, fazer a coisa que parece não ser certa?

Raimundinho não matou Maria Rita. Apenas deu seis tiros nela. Dois não acertaram, ele estava nervoso demais (naquele tempo ele ainda era ruim de tiro). Pegaram, um na parede, outro, no chão. Um tiro saiu pela casa afora, só fazendo barulho. Outro furou pouco abaixo do umbigo, pouco abaixo, mais ou menos um palmo, e nunca mais ela usaria aquela coisa, coisa que ele, Raimundo, usara por demais, e nunca, nunca, aceitaria que outro homem, mesmo que fosse aleijado, mesmo que fosse seu irmão, usasse. Certo que Raimundinho não era bom de tiro, não estava acostumado a atirar, apenas cuidava dos seus afazeres, apenas cuidava menos dele que dos outros, apenas cuidava que tudo fosse indo assim como as coisas devessem ir indo. Era mesmo ruim de tiro, o último, mirou no coração, acertou na testa! Maravilhou-o o sangue que saiu. Maravilhou-o o modo como Maria Rita foi caindo devagar. Porém mais o maravilhou a boca dela que, ao morrer, ia dizendo alguma coisa... Raimundinho quis ouvir que sua mulher dizia "Eu te amei", mas Maria Rita balbuciara: "... eu tinha pena dele..."

Mais balas sobraram, aproveitou e gastou todas. Gastou todas como quem, com justificada indignação, como um profeta bíblico, como aquele que, zombado à beira do córrego, matou, com um gesto, quarenta, quarenta e uma, quarenta e duas, quarenta e três, não sei quantas crianças más, mas a matança não chegou a cinqüenta, creio. O profeta matou somente quarenta e duas crianças travessas, se não me engano. Raimundinho matou apenas duas crianças que criam no amor do instante.

Raimundo gastou as balas que sobravam. Balas para a infiel e balas pro irmão. Aquele irmão que tinha ereção. E não adiantaram orações, nem justificativas.

Até parece que eu estava mentindo quando disse que não foi num acesso de raiva que Raimundo matara o Altemar. Eu disse que foi coisa pensada. Foi.

Raimundo não ficava só tomando banho. Raimundo já desconfiava e refletia. Toda vez que vinha pra casa Maria Rita estava à janela. E Altemar tocava. Ele não era tolo e...

Aqui eu me detenho, leitora, e pergunto:

"Quem é dono de quem? De quem sou dono?"

E, numa repentina lucidez, me pergunto: "Sou eu dono de mim mesmo?"

Vê, leitora, que já não mais lhe pergunto.Pergunto a mim mesmo. E não respondo.Também você, leitora, não responderia, sabe se lá quem é que lê essas coisas aqui, que eu e você, tão íntimos, tão discretos, vamos escrevendo e lendo...

Mas, quem é que morreu? – pergunta-me você, ansiosa em que esta longa e mal escrita história chegue ao fim, já que temos na vida tantas coisas para cuidar. Antes que sua impaciência me ofenda esclareço que a história pode ser mal escrita, porém foi uma linda e dolorosa história.

- Foi ou é? – pergunta-me novamente, sempre impaciente. – E afinal quem é que morreu?

Não te digo. Ou, melhor, te digo: morreram todos. Triste é, para um autor, afirmar que todos morreram.Há o risco de que, matando todos, só sobre o autor, e, sem personagens o autor é nada.

Mas continuemos.

CAPÍTULO X - O AUTOR É NADA.

O autor é nada. Nem falemos disto. Todos sabemos que o autor é nada. Vamos aos personagens. Os personagens é que são tudo.

Sim, todos morreram. Mas até Raimundinho morreu? – pergunta-me um leitor.

Morreu mas não morreu, respondo um tanto aborrecido com tanta interrupção de meus dois leitores.

Meus dois leitores... Como são eles? Tem hora que me pergunto. Tem hora em que até penso... Sim, quanta vez pensei convidá-los para um café, um chá, uma conversa, mas...

Mas isto é outra história. Perdoem-me, leitora e leitor, não deveria ter me intrometido entre os tiros de Raimundinho e os corações de Altemar e Maria Rita.

Sim, morreram os três. E depois conto porque Raimundo morreu mesmo estando vivo.

E deixo Raimundinho e passo ao Gaudêncio, outro jagunço.

CAPITULOZINHO - O AUTOR EXPLICA

Sim, outro jagunço. Isto aqui é uma história de jagunços, leitora e leitor, e jagunços vivem de matar. Portanto, não posso me delongar em histórias de corações.

TERCEIRA HISTÓRIA: GAUDÊNCIO

Gaudêncio matara a mulher e os dois filhos, o sogro e a sogra. Depois que viu em quem atirara, deu um tiro na boca. E ficou assim com aquela bochecha furada e o queixo meio torto.

CONTINUA...

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Autor: Onivaldo Paiva


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