O Crime De Tortura



INTRODUÇÃO
No ano de 1948, logo após a Segunda Guerra Mundial, o mundo esteve diante da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que veio consagrar no plano intercontinental os “novos” direitos do homem. Neste cenário, onde os direitos inerentes à pessoa humana passam a ser protegidos mundialmente, a tortura foi colocada em discussão, vez que feria diretamente os princípios até então consagrados.
Na experiência brasileira, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a consagrar que a tortura deve ser considerada crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, por ele respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-lo, se omitam (artigo 5o, XLIII).
Internacionalmente, há regras para combater a prática da tortura. Em 1984, por exemplo, a Convenção da ONU - Organização das Nações Unidas contra esta Prática foi ratificada por 119 países (dentre eles o Brasil) que se comprometeram a prevenir, punir e erradicar este crime.
Neste sentido, Rodley (2000), relator da ONU para tais assuntos, afirmou ser a tortura um crime de oportunidade, que pressupõe a certeza da impunidade. Assim, analisou de forma atual a prática dos crimes de tortura, mas, não inteiramente, deixando fora da discussão os paradigmas dessa realidade. Hoje, grupos de extermínio, espancamentos em presídios, maus tratos nas casas de custódias etc., refletem o cenário em que a tortura está instituída, fazendo valer a lei do mais forte.

DEFINIÇÃO
O entendimento, em nível internacional, para conceituar a tortura levou em consideração os termos da “Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes”, adotados pela ONU, em 10 de dezembro de 1984. No Brasil, a tortura passa a ser considerada crime com a lei no 9.455, de 7 de abril de 1997. De acordo com o art. 1º desta lei, constitui crime de tortura, com pena de reclusão de dois a oito anos:  - Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causado-lhe sofrimento físico ou mental: a) com fim de obter informações, declarações ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa;  - submeter alguém sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Assim, de acordo com supradita lei, o crime de tortura consiste num crime material, que se consuma com o sofrimento físico ou mental provocado na vítima. Além desta, a Constituição Federal de 1988 oferece um arcabouço jurídico não apenas compatível, mas absolutamente imperativo quanto à observância dos direitos humanos no Brasil. Direitos esses, como já foram tratados anteriormente, em que o crime de tortura vai de encontro. Nos planos interno e internacional, o país foi um dos primeiros a adotar um Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), onde o tema da erradicação dessa prática, evidentemente, figura entre as prioridades.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) determina que ninguém pode ser submetido a tortura, a pena de morte ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. O arcabouço jurídico em torno do crime de tortura foi se formando. Entendendo e o definido muito diferentemente de como era encarado (lesão corporal ou constrangimento ilegal).

RETROSPECTIVA HISTÓRICA BRASILEIRA (DA DITADURA AO SÉCULO XXI)
A tortura no Brasil esteve ligada à propagação de três centros: no Exército (DOI – CODI – Departamento de Operações e Informações de Defesa Interna), na Aeronáutica (CISA – Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica) e na Marinha (CENIMAR – Centro de Informações da Marinha). Nestes, vários métodos de tortura eram utilizados (coerções morais e psicológicas, violências físicas sexuais, torturas com aparelhos mecânicos e elétricos, com produtos químicos, insetos, animais etc.).
No Estado Nacional, foram surgindo muitos abusos cometidos pelos interrogadores, que oprimiam os presos para arrancar-lhes a verdade. Durante a ditadura Militar, a tortura foi um método científico inserido nos currículos de formação dos militares. Muito além da teoria, as “aulas” deste método valiam-se de pessoas que serviam de vítimas para o ensino- aprendizado. O introdutor no Brasil desta praxe foi o policial norte-americano Dan Mitrione.
O autor David Nasser (1997) afirmou ser impossível determinar qual sistema de tortura foi pior: o da Alameda Nazista ou do Brasil militar. No último, não se permita que os atos praticados pelo comando Supremo da Revolução de 1964 e pelo Governo Federal, igualmente, fossem julgados pelo Poder Judiciário. Neste contexto, chegou a ser instalada uma comissão de Inquéritos, pela Câmara dos Deputados, com a finalidade de averiguar a crueldade da tortura aplicada e a autoria do delito contra a humanidade, porém suas atividades foram constantemente adiadas. Em suma, não funcionou.
Dessa maneira, durante a ditadura, a tortura vitimou não só mendigos, mas intelectuais, professores, esposas, filhos, pais. Ditatorialmente impregnou o sistema carcerário brasileiro de abuso de poder, desumanidade. Assim, com o passar dos anos e mesmo em face de um novo século, esse crime tornou-se habitual.
Persistiu, desde a década de 60, a cultura que aceita os abusos perpetuados pelos agentes públicos. As numerosas alegações de atos de tortura e de tratamentos degradantes, tanto nas delegacias de polícia quanto nas prisões e quartéis das forças armadas, e a impunidade de fato dos perpetradores de tais atos, que frente a insuficiência de fiscalização, até hoje se verificam. Conseqüentemente, a ausência de procedimento institucionalizado e acessível, afim de garantir às vítimas desse atos o direito de reparação e indenização, permite que no século XXI ainda sejam vista práticas tão violentas e cruéis como no período da ditadura.
A influência de um período de governo militar, caracterizado por tortura, desaparecimentos forçosos e execuções extralegais, ainda paira sobre a atual administração. Mesmo com os aspectos positivos da legislação brasileira (em 1988, a constituição Federal em seu artigo 5o, XLIII consagrou a tortura como crime; em 1993, foi criado o PNDH (Programa Nacional de Direitos Humanos); em 1995, a lei no 9.140 concedeu indenizações, a título de reparação, às famílias de algumas vítimas do regime militar; em 1997, a lei no 9.455 tipificou a tortura como crime), a tortura é prática constante.

TORTURA NOS DIAS ATUAIS
Em maio de 2000, esteve no Brasil o relator especial da ONU sobre a tortura, Nigel Rodley. Por três semanas, ele e sua equipe, entre reuniões e visitas, levantou dados a fim de elaborar um relatório final (a mais completa avaliação da tortura no Brasil feita desde o fim da ditadura). No cenário brasileiro, Rodley chocou-se com as condições sub-humanas no 2o Distrito Policial em São Paulo, com o caso da Febem de Franco da Rocha e da casa de Custódia Muniz Sodré no Rio de Janeiro. Não raro, notícias de vítimas da tortura chegam, a todo o momento, nos noticiários. Há pouco, um chinês foi espancado até a morte, depois de preso, no Rio de Janeiro. No interior da Bahia, um grupo de extermínio (que inclui policiais em sua formação), quase diariamente, faz uma vítima fatal. Neste cenário de horror, além da violência urbana, de rua, cresce aquela praticada pela polícia sob a forma de tortura. O caso de Chang, por exemplo, mostra a falta de decoro da polícia no trato com os presos. O comerciante chinês foi preso em 25 de agosto quando tentava embarcar, com cerca de US$ 30.000 (trinta mil dólares), não declarados à Receita Federal, para os EUA. Detido no Presídio de Ary franco, dois dias após a prisão, foi levado desacordado para o Hospital Salgado Filho, onde faleceu devido as várias lesões, entre elas traumatismo craniano.
Concluído o inquérito, doze pessoas foram indiciadas, entre alas, o então diretor do presídio, seis agentes penitenciários e presos do local. Segundo a Polícia Federal, foi descartada a versão de autolesão por parte do preso e também que o espancamento tenha sido motivado por possível extorsão. A conclusão aponta que agressões teriam sido praticadas contra o detento como forma de “castigo através de tortura”. O delegado Álvaro Lins, chefe da Polícia Civil, destaca a relevância deste caso, uma vez que não existe outra, no Brasil, em que agentes penitenciários tenham sido presos acusados de crime de tortura seguida de morte.
No caso baiano, um grupo de extermínio chamou a atenção para uma cidade pequena, onde não só marginais, mas também a polícia cometeu barbáries. Em Santo Antônio de Jesus, a 184Km de Salvador, esteve a relatora da ONU para Execuções Sumárias, Asma Jahangir, que colheu informações e depoimentos devido ao escandaloso número de homicídios cometidos por grupos locais. Entre os depoimentos, esteve o do mecânico Gerson Jesus Bispo, 26, assassinado duas semanas depois em que esteve com a relatora. A polícia local afirmou que “dois marginais da cidade” são os principais suspeitos do crime e estão foragidos. O caso é citado no relatório “Execuções Sumárias no Brasil – 1997 a 2003”, lançado em setembro pela Organização de justiça global e pelo Núcleo de Estudos Negros.
Sandra Carvalho, diretora da Organização, afirma a importância de uma investigação rigorosa, mas não descarta a possibilidade de o caso estar relacionado ao depoimento à relatora. O caso é parecido com outros registrados na cidade, onde a população, em seus relatos, está firme em apontar a participação de policiais militares nesses crimes de tortura, assim classificados em crimes de tortura policial.
Esse abuso de poder por parte de policiais, em alguns casos por falta de um treinamento adequado, em outros por pura maldade, faz crescer o número dos vitimados pelo crime da tortura. Mesmo conforme a meta estabelecida pelo PNDH, onde a Secretária de Estado dos Direitos Humanos estabeleceu o Sistema Nacional de Assistência a Vítima e Testemunhas Ameaçadas, o número é grande e o problema continua sendo um agravante não só entre a população carcerária brasileira, mas também entre sociedade civil.

TORTURA NO MUNDO
Entre as nações do mundo, ainda é grande o número daquelas que praticam o crime em questão. Numa retrospectiva histórica, muitos foram os ditadores cuja tática recaía na tortura de inimigos do Estado: Adolf Hitler, Antônio de Oliveira Salazar, Halie Selassie etc. Numa prática genocida, ilimitada e incontestável, milhões foram as vítimas que tiveram seus direitos fundamentais violados.
Até hoje, segundo dados da ONU, existem presos políticos em pelo menos 78 nações, pessoas desaparecidas em 37 - o Iraque e o Sri Lanka Estão entre os campeões nessa condição. O total de refugiados - pessoas que estão fora de seus países de origem por medo de perseguição de natureza radical, étnica, religiosa ou política - estava no numero de 21,5 milhões em 1998, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para refugiados.
Assim, mundialmente, algumas nações destacam-se na prática feroz e opressora da tortura - Na Argélia, por exemplo, o recrudescimento da Guerra Civil se evidencia nos diversos massacres civis (inclusive mulheres e crianças). Ainda na África, a problemática da situação na região dos Grandes Lagos. Em Ruanda, milhares de civis morem por causa dos confrontos entre os soldados do Governo (Tutsis) e grupos para-militares de oposição (Hutus). Na vizinha República Democrática do Congo (ex - Zaire), soldados reais do presidente Rawent Kablila são acusados de chacinar refugiados Hutus no leste do país.
Os abusos graves acontecem também no Afeganistão, território devastado por uma guerra civil que já deixou milhares de mortos. É grande o número de flagelos e amputações, penalidades aplicadas àqueles que desrespeitam as rígidas leis islâmicas impostas pela milícia fundamentalista Taliban, que controla parte do país desde 1996. Prisão política, supressão da liberdade de expressão, tortura e pena de morte continuam sendo práticas generalizadas na China que, com 1.067 execuções, é a nação que mais aplicou a pena de morte em 1998. Seguindo, a Republica Democrática do Congo, os EUA e o Irã.
Neste contexto, choca também o fato das “parcerias” internacionais na prática do crime de tortura. Na Alemanha nazista, muitas foram as empresas norte-americanas (ITT, Ford, General Motors etc.), que continuaram fornecendo seus produtos durante a Segunda Guerra Mundial. O governo dos EUA tinha pleno conhecimento do comércio de produtos americanos abastecendo os nazistas, pois os mesmos só eram permitidos por ordem presidencial. Enquanto o Secretário de Estado Americano, Brekinrigge Long, deu a Ford permissão para produzir tanques nazistas, tal empresa impedia a salvação de milhares de alemães e judeus, porque, supostamente, os EUA não ajudariam os inimigos durante a  Guerra Mundial.
Na África, a mutilação genital feminina alcançou a cifra de 137 milhões de vítimas. No Peru, campanha de repressão ao terrorismo, posta em prática pelo Presidente Alberto Fujimori, desencadeou centenas de prisões, nas quais, com freqüência, os réus não tiveram direito à defesa e acabaram julgados por corte militar secreta.
Esses e milhares de outros dados forneceram uma pequena mostra do panorama mundial do Crime em questão. Muitas vítimas, controle restrito e, no mundo, sendo realçado num foco desumano e inaceitável. É certo que práticas e tratados internacionais amenizam, mas estão longe de qualquer resolução, Vaz que ainda é grande o número de países que não aderem aos acordos internacionais. Assim, fragmenta-se e dificulta-se o combate, impedindo um controle afetivo e necessário às práticas desumanas e degradantes.

CONCLUSAO
No Brasil, vasto e complexo país, com uma população de 160 milhões de habitantes e a décima maior economia do mundo, a prática da tortura pode ser encontrada em todas as fases da detenção: prisão, detenção preliminar, outras formas de prisão provisória, bem como em penitenciárias e instituições destinadas aos menores infratores. Além do cenário carcerário, a tortura encontra-se também na sociedade civil: nos morros, bairros, escolas etc. Ela não acontece com todos ou em todos os lugares, acontece, principalmente, com os criminosos comuns, pobres e negros que se envolvem em crimes de menor gravidade ou na distribuição de drogas em pequena escala ou, simplesmente, são de baixa renda.
Os propósitos para o crime tortura variam desde a obtenção de informações e confissões até a manutenção de sistemas de extorsão financeira, racismo e extermínio. E, rotineiramente, esses abusos acontecem. O fato de não se investigar, processar e punir seus agentes cria um clima de impunidade que estimula contínuas violações. A persistência dessa situação pontua o quanto à tortura é utilizada nos dias atuais.
A adoção da lei que tipificou este crime (lei no 9.455/97) constitui um marco referencial no combate à prática no Brasil. No plano concreto, porém, a aplicação da lei pelos poderes competentes não tem sido satisfatória. Em muitos casos posteriores a edição da lei, as alegações de práticas de tortura não foram analisadas através de processos penais, seja pela ausência de denúncia do Ministério Público, seja pelo redirecionamento da mesma para crimes menos graves como lesões corporais ou abuso de autoridade, por parte dos magistrados. Há, de modo geral, um problema de falta de percepção da tortura como um crime grave contra o Estado Democrático de Direito, talvez porque o fenômeno atinja, quase exclusivamente, as camadas menos favorecidas da sociedade. Esse quadro exige não apenas uma ação decidida de conscientização e de mudança de mentalidade no seio da sociedade brasileira, mas requer a sensibilização dos operadores do direito para essa questão, de modo a criar uma Jurisprudência de aplicação da lei de tortura.
Entretanto, associações civis e outros organismos possuem uma ampla gama de iniciativas e instituições positivas destinada a assegurar a execução da lei de modo lícito e a proteger aqueles que se encontraram sob o poder das autoridades. Uma vez mais, o problema é a dependência de um trabalho predominantemente voluntário.
Os poderes exorbitantes de delegados de polícia, no que diz respeito à realização de investigações, tornam a maioria delas excessivamente dependentes de sua boa vontade e colaboração. O atual sistema policial torna muito difícil o monitoramento externo da polícia militar, o órgão freqüentemente responsável pelas prisões em flagrante delito. A capacitação e o profissionalismo da polícia são, muitas vezes, inadequados. Alguns, a ponto de não existirem. Uma cultura de brutalidade e, muitas vezes de corrupção, é generalizada. Os poucos suspeitos ricos, se privados de liberdade em absoluto ou até condenados, podem comprar tratamento e condições de detenção toleráveis ou, no mínimo, menos intolerável que a de muitos pobres, geralmente negros ou mulatos.
A pesar dos muitos aspectos positivos na legislação brasileira, a prática contra o crime de tortura é pouco eficaz e tortuosa. Com um “paternalismo” que favorece os poderosos nas diversas situações em que o crime é enquadrado. Fatos, dados, relatos diários, frente ao fato do Brasil ser uma sociedade aberta, não são surpresas. Aqueles que se preocupam em conhecer a realidade do país, há muito escutam falar da tortura. O inaceitável, porém, reside no fato de, mesmo com todo o aparato legal, ninguém é, minimamente, indiciado. Enquanto isso, vítimas são feitas diariamente, a luz de uma sociedade que mais parece não ter passado por uma ditadura, não ter tido notícias de extermínios, de práticas abusivas que ao longo dos anos deixaram marcas, além de relatos. Muitos crimes permaneceram impunes, em decorrência de um forte sentimento de corporativismo existente entre as forças policiais, no que se refere à investigação e punição dos envolvidos na prática da tortura. Porém torna-se urgente o controle dessa situação, que, há muito, deixa marcas na sociedade do Brasil e do mundo.


Autor: Juliana Cafezeiro


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