Um sótão mágico



136 - UM SÓTÃO MÁGICO

De Romano Dazzi

 

Desde criança eu morava naquela casa antiga

Desde criança, quando brigava com os amigos, quando meus pais brigavam comigo,  quando alguma coisa não funcionava bem, refugiava-me no sótão e deixava-me ficar lá, até que me sentia melhor. Era um local arejado, espaçoso, acolhedor.

 

Aos poucos, o sótão tornou-se o meu quarto secreto, o confessionário; e também o meu lugar de estudos e  reflexões. O meu santuário, enfim.

De um velho baú, esquecido num canto, eu retirara, quando ainda criança, cinco figurinhas de gesso pintado; provavelmente eram sobras de um antigo presépio; colocadas em pé numa prateleira num canto iluminado, pareciam vivas. E falavam comigo.

Eu tinha dado a cada uma um nome e um significado;

A Mãe, imagem do bom senso e dos bons sentimentos;

o Avô, guardião da tradição, do legado atávico;

o Tio doido, representante da aventura e do risco;

Ainda havia uma cabra, símbolo da sobrevivência e uma árvore, senhora do tempo. .

Eu contava o que me acontecia; e elas teciam comentários.

Dirigia-me a elas naturalmente, como se fossem meus familiares; quem me escutasse me acharia louco varrido.  Sorte minha, estar sozinho no sótão.

Talvez fossem só o eco das minhas idéias, o reflexo de minhas experiências; talvez as respostas existissem apenas em meus pensamentos; mas para mim eram reais, verdadeiras..... 

De cada uma eu recebia umas palavras, mas cabia a mim decidir e agir.

Quando me apareceu a vaga esperança de chegar a ter uma namoradinha, por exemplo, fui pedir conselho.

A Mãe, logo preocupada, falou pausadamente; e pela primeira vez, percebi uma expressão de receio em sua voz: -“descubra, bem dentro de você, o valor e a sinceridade dos seus sentimentos; um erro pode complicar toda a sua vida e trazer longos anos de infelicidade”-.

O avô quis detalhes a respeito do sobrenome, a religião, a origem e as conexões da família. ‘” Cada um de nós está amarrado às suas raízes, aos antepassados “– declarou solenemente – Veja bem o que faz, rapaz, para não criar desde hoje problemas no seu futuro ...” -  

Mas o tio Doido empurrou-me logo para a ação. - “Vai, vai! “  recomendava-me com o entusiasmo de um jovem, sempre pronto a enfrentar a novidade, o desconhecido, o perigo. - “Não tenha medo de nada. É você quem constrói a sua vida e a sua felicidade! Elas são só suas, todinhas suas!...” 

A cabra e a árvore ficavam alheias; só se poderia contar com a primeira em caso de perigo extremo; e com a segunda,  em assuntos de longo prazo.....

 

Tudo passa. O caso da menina – da minha primeira, fracassada tentativa  de ter uma namorada, como todo o mundo – passou e foi esquecido.

Esquecido? Nunca!

A imagem daquela moreninha simples, de cabelo cacheado,  olhar inteligente e  expressões suaves, minha colega desde o segundo ano ginasial, ainda está inteirinha dentro da minha alma, igual ao que era setenta anos atrás. Uma foto que não desbotou nem amarelou com o tempo.  

Pena que, assustado com os alertas das minhas figurinhas,   nunca consegui chegar perto daquela garota e dizer-lhe o que sentia por ela.

 

Mais tarde, as alternativas se multiplicavam, a escolha se fazia mais e mais difícil. Escolher a carreira foi muito complicado. Poderia cursar letras, ou direito, ou física; estava livre para decidir entre sessenta cursos diferentes. As figuras, como sempre davam-me conselhos  discordantes, cada uma empurrando-me para uma carreira, uma  especialização diferente.

No fim, não cursei nenhuma faculdade e esta foi minha segunda frustração.

 

A cada ano que passa, desde então, percebo o mundo  mais agressivo e competitivo. As pessoas não convivem mais; lutam, batem-se, guerreiam.

Quando alguém me procura, é porque precisa de mim ou de algo que eu tenho; ou quer me empurrar algo de que não preciso e que nem posso ter.  

A competição é permanente; quem puder passar a perna no próximo, ganha pontos, status, posições, reverências.

Se me dizem: “bom dia” não estão dando a mínima, se o meu dia será realmente bom, ou péssimo.

Se me dizem: “como vai?” é mera convenção; a minha saúde  não interessa a ninguém, muito menos a quem perguntou.

 

Sim, eu estava me acostumando muito mal, com as minhas figurinhas.

O “bom dia! delas era feito de puro entusiasmo.  

Sempre me olhavam e observavam; e comentavam:

- “Você está um pouco pálido, cuide-se, ouviu?”

Ou então:-  “Hoje você parece cansado; porque não repousa um pouco?” .

Ou: - “Que cara de preocupação é esta? Conta, conta tudo!”....

Queriam saber, queriam que eu falasse, confirmando, negando, explicando.  Alegravam-se com minhas pequenas vitórias; sofriam com minhas inevitáveis derrotas.  Participavam.

Aqui está. Talvez esta seja a palavra chave: Participar !

Hoje não consigo participar da vida de ninguém e ninguém deseja participar da minha.

Meus irmãos, hoje em dia,  gostam mais de um cachorro....

 

Um dia, finalmente, tive que viajar. Recebi conselhos e recomendações.

Tão bons que me acompanharam pelo resto de minha vida e me fizeram errar menos.

A cabra abriu a boca pela primeira vez e alertou-me para os inevitáveis tropeços em que me meteria. Especialista em procurar raros fios de grama ao longo dos precipícios, cuidadosa e imprudente ao mesmo tempo, sabia bem o que dizia.  Seu aviso me foi útil e me salvou diversas vezes.

Por último, a árvore pronunciou uma só frase: - “volte quando tiver oitenta anos. Estarei esperando.” -   

Pois agora voltei. Ela estava lá, imensa, espalhada com longos ramos, ocupando o jardim inteiro. Cheia de ninhos de pássaros,  de folhas novas, de milhares de pequenas flores brancas Nós dois sabíamos que eu voltaria.. Parecia que ela tinha ficado esperando por mim durante  esse tempo todo.  - “Bem vindo! “ – exclamou.

Reconheceu-me,  apesar dos raros cabelos brancos, das costas encurvadas, dos passos trôpegos, dos olhos fatigados e marejados de lágrimas  

As figurinhas que me guiaram  tanto tempo atrás, perderam-se,  sumiram. Como acontece com todos os que já disseram as suas falas e nada mais têm a dizer.

O sótão está todo empoeirado, mais triste,  mais escuro – ou talvez já esteja faltando luz aos meus olhos.

Mas a velha árvore, a senhora do tempo,  está lá firme, gloriosa, oferecendo reparo e repouso aos pássaros, às flores, e a este pobre viajante cansado. 

Que saudade carreguei comigo a vida toda, do seu silêncio, da sua sombra e da sua paz, senhora!...    

 

  


Autor: Romano Dazzi


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