Sentadinha



Sentadinha

 

Eram sete e vinte da manhã, quando entrei no táxi a caminho do aeroporto. Fazia calor. Embora a decolagem estivesse prevista para dez e trinta, preferi aguardar no Galeão. A corrida foi tranquila e instrutiva. O motorista, Sr. Carvalho, deu-me algumas explicações a respeito dos perigos que enfrenta no exercício de sua profissão, inclusive narrando uma tentativa de morte que sofrera recentemente. Como houvesse tempo, enriqueceu a sua exposição com detalhes alusivos à Linha Vermelha, flanqueada pelas águas da baía, putrefactas e mal-cheirosas, e pelas terríveis favelas que acoitam a quintessência da marginalidade carioca.

 

Às oito e dez, com a bagagem acomodada no carrinho, subi ao terceiro andar para o  café. Olhei algumas vitrinas e desci para o chek-in, após o que tomei assento nas proximidades do portão de embarque.

 

Lia Biblioteca de Alexandria, de Derek Adie Flower e, uma vez sentado, tomei conhecimento de que Ptolomeu não possuía astrolábio.

 

Havia uma cadeira vaga à minha esquerda e nela sentou-se uma senhora de seus cinqüenta anos, que pareciam no máximo quarenta e um. Vale esclarecer que essas impressões eu as formei nos instantes seguintes, a partir daquele em que Ptolomeu começou a  ceder  terreno à perfumada e elegante dama.

 

Pela ordem. Eu sentei-me, comecei a ler. Ela sentou-se a meu lado, pegou do celular e despediu o primeiro telefonema, provavelmente para um vizinho:

 

- Henrique, sou eu, Roxana. Não, já estou no aeroporto, já despachei a bagagem e estou sentadinha, aguardando a chamada. Escuta, você pode me fazer um favor? Diga à Terezinha que não deixe de molhar as plantas. Vou passar treze dias fora e a mamãe está em Petrópolis. Olha, você nem precisa ir lá. Basta interfonar.

 

Eis o tópico do segundo telefonema, passado imediatamente após o primeiro, provavelmente para uma amiga:

 

- Lu, sou eu, Roxana. Tudo bem ? Não,  já estou no aeroporto. Já, já, já despachei a bagagem e estou sentadinha, aguardando a chamada. Escuta, você vai ao cabeleireiro amanhã ?  Faz um favor pra mim ? Cancela a minha escova, que me esqueci. Uma loucura, você sabe. Beijo, olha ...

 

Depois daquele “olha” ainda rolou conversação bastante para ocupar três a quatro minutos da existência das amigas, e da minha, porque eu já fechara moralmente o livro, e me preparava para a terceira ligação, a qual veio logo em seguida e que se materializou assim:

 

- Mãe, sou eu. Tudo bem com a senhora ? Claro, mãe, já estou no aeroporto, já, já, não se preocupe. Já, mãe, já despachei a bagagem e estou sentadinha, aguardando a chamada.

 

Este terceiro telefonema foi bem mais extenso que os anteriores, o qual deixo de reproduzir na íntegra porque o não memorizei e também porque as restantes palavras não interessam ao plano desta crônica. Devo, no entanto, registrar que a distinta senhora ainda fez mais três chamadas, e em todas elas, sem falhar uma só vez, enriqueceu a sua palestra com o esclarecimento de que estava sentadinha.

 

Ao ensejo do primeiro telefonema, os meus olhos ainda navegavam sossegados pelos canais de Alexandria. Nem por isso deixaram de recolher o primeiro diminutivo. Mas foi por ocasião do terceiro que resolvi ajeitar-me discretamente na cadeira, a modo de examinar o quadro por ângulos mais favoráveis.

 

A leitora arguta já percebeu que eu pretendia localizar no corpo da passageira algum sinal que justificasse não apenas o diminutivo, mas também a insistência e convicção com que foi usado.

 

O corpo de Roxana  desdizia qualquer insinuação diminutiva. Coxas, seios, braços e o mais que me foi permitido ver mostravam-se harmoniosamente desenvolvidos e concertados. E nem estavam tão aconchegados a si mesmos. Quero dizer que o diminutivo, no caso, poderia dar uma idéia de recolhimento, ou melhor, de  prudente aconchego, mas nada disso havia.

 

Concluí então que o diminutivo vinha-lhe não do corpo, mas do zelo que têm por si as almas soberanas .

 

Nisso, voltei ao livro. Estavam todos  lá: Alexandre, Alexandria, o Farol, a Biblioteca, até o sátrapa da Bactriana, sogro do Imperador, estava lá. Todos, todos, menos Roxana, justamente ela, a Imperatriz. a esposa do  fundador da cidade.

 

O sátrapa notou a ausência dela, cravou os olhos em mim, e perguntou: - Onde está minha filha?

 

Eu, que jurava ter ouvido a Infraero chamar, respondi: - Sua Alteza  acaba de embarcar, já deve estar sentadinha a bordo do avião.

 

Furioso, tomando-me por raptor de sua filha, o sátrapa saltou sobre o meu pescoço, decidido a me estrangular. 

Só me livrei do sufoco, quando alguém me sacudiu:

 

- Moço, moço, com licença, este livro é seu, estava no chão,  parece que o senhor cochilou um pouco.  

 


Autor: Osorio de Vasconcellos


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