A CIGANA



a  cigaNA 

de romano dazzi

 

Eu mesmo não queria acreditar.

Estava na frente da casa dela, com a dedo esticado, pronto para tocar a  campainha.

Eu, um professor universitário, autor conhecido, conferencista, colaborador de jornais e revistas, estava de repente cedendo ao chamado atávico das ciências ocultas, da irracionalidade, da mística e da magia!

Não queria mesmo acreditar.

Tudo tinha sido tão repentino, tão inesperado, que não consegui resistir.

Ao sair da faculdade, meia hora atrás,  entrei na marginal: tudo parado.

Aparece-me uma mocinha, o rosto simpático ostentando um meio sorriso sem jeito; estranhei, porque as meninas que entregam santinhos nas esquinas usam sorrisos amplos e cativantes.

Ela olha-me com aqueles olhos estranhos - tristes, eu diria; até no sorriso,  pensei ver um ar de melancolia.

Estende-me um  folheto, que eu   largo, distraído, no banco do carro.

Tem gente que acha um tormento receber tantos folhetos, todo dia, em qualquer semáforo.

É pizza em casa, remédio de graça, conserto de ar condicionado, amortecedor barato, mel de fazenda, encanadores e desentupidores milagrosos

Eu  até gosto, sempre dou uma olhada. São coloridos, variados, interessantes, educativos.

Aprendo sempre alguma coisa, até com aqueles que apregoam vagas e ambíguas massagens especiais, que já não enganam mais este público sabido.

Quando volto a olhar a rua, a menina já desapareceu. 

O trânsito continua quase parado.

Aproveito para olhar melhor o folheto.

Apresenta a famosa Madame X, de quem eu jamais ouvi falar.   

Uma mensagem convencional, a ladainha de sempre. 

Problemas ou dificuldades de amor, de trabalho, de dinheiro, de família, todas resolvidas em poucos dias, num passe de mágica.

Até dor de cabeça, insônia,  alcoolismo, traição, herança e fracasso em geral.

Considerando a capacidade da madame X de afastar o mal e concentrar a sorte, eu devo ter encontrado o Eldorado. Mas não me impressiono.

O transito anda mais um pouco, lentamente; largo a leitura, concentro-me na rua; arrasto-me por outros dois quarteirões e paro de novo, no semáforo seguinte. 

Surpresa: outra mocinha, igual á primeira,  surge da calçada, atravessa a primeira fila de carros, e com um outro meio sorriso, me entrega um folheto.

É igual ao anterior.

Não sou bom fisionomista, mas acho-a parecidíssima com a primeira.

A coisa começa a me interessar.

Antes que me dê conta, do mesmo jeito que aparecera, ela some.

Devo dizer que em São Paulo é freqüente um pedestre ultrapassar a corrente dos veículos, encurralados em filas intermináveis; por isso, poderia ser uma coincidência. 

Mas duas quadras adiante, em uma outra parada, lá vem a mocinha, novamente,  com a mesma cara, a mesma roupa, o mesmo jeitinho.

Eu, que ainda me recuperava da surpresa anterior, desta vez fico perplexo, impressionado.

Serão os carros, que andam de menos, ou as meninas, que correm demais?

Ela me empurra o santinho, dá um adeus... e some; como a segunda, como a primeira.

Sem nenhuma explicação.

Bem, agora decididamente fiquei curioso.

Releio os folhetos: são todos iguais.

Quando ameaça chuva, os entregadores empurram pela janela do carro um bolinho de folhetos, para se livrar mais depressa da obrigação.

Mas esta foi uma entrega especial, encomendada.

Alguma coisa instiga a minha curiosidade.

Olho de novo o endereço; é bem próximo; um pulinho.

Saio da marginal, viro na primeira à esquerda, sigo para a segunda à direita, mais duas quadras, cheguei: uma casa geminada, porta e janela, pintada de um verde duvidoso e desbotado; o portãozinho antigo de ferro batido; três degraus, um patamar, outro degrau já beirando a porta. 

Estendo o braço, ainda duvidando de mim  (mas o que estou fazendo? em quê estou me metendo?)  mas nem preciso tocar a campainha.

A mocinha – como já imaginava – abre a porta e me convida a entrar.

– Sou Anna – me diz, sorrindo com familiaridade - . Entre e fique a vontade doutor Ulisses!  Minha avó já vem! –

Como ela sabia que eu viria? Como ela sabe quem eu sou?

Minha expressão de espanto deve tê-la impressionado, porque acrescenta:  “Sabemos muitas coisas a seu respeito, mas não se preocupe: não andamos espionando ninguém. Acontece que a minha avó é vidente: tem poderes mágicos; quase como uma feiticeira. É muito boazinha, mas está sempre aprontando alguma .

Perdoe-a, porque é pessoa de idade; de resto, esta visita vai ser tão proveitosa para o senhor; quanto agradável para ela O senhor vai gostar...

-“Eu também, sou pessoa de idade, mocinha – respondo – Já passei dos 65!”

“Mas o senhor está em plena forma! Parabéns! Sente-se, por favor... As mulheres nunca estão prontas na hora certa; demoram sempre um pouco, assim podem fazer a sua entrada triunfal!...”

Age com um  jeito antigo,  não só no uso das palavras, mas nas expressões do rosto, no mover as mãos, as pernas, a cabeça, de maneira elegante e discreta.

Correndo atrás dos meus pensamentos, não percebo que Madame X  entrou silenciosamente na sala. Mas pressinto a sua presença . Esboço apenas um pequeno gesto reflexo, levantando-me e virando, quando a ela sussurra, com uma cordialidade inesperada: 

–“Boa noite, doutor Ulisses, seja bem vindo. Sou Anita, mas todos me conhecem como Madame X.”

O acento é levemente afrancesado, suponho.

Estende-me a mão com um gesto tranqüilo e eu, talvez pela primeira vez na vida, sou levado a beijar a sua mão.

– “Absurdo!” – penso – “Que diabo acontece comigo? É uma cigana, uma velha senhora totalmente desconhecida. Vim até aqui seguindo apenas um impulso estranho. Nada mais.  Nenhum envolvimento, de qualquer tipo que seja, pelo amor de Deus!”

Mas para ela  tudo é normal, natural e continua fitando-me com um olhar que me deixa sem jeito.

É uma senhora de idade indefinível – diria de seus sessenta e poucos anos.

Traz no rosto algumas marcas que a vida escavou – mas ostenta firmeza e dignidade no porte.

Tem os mesmos modos e a postura agradável da neta.

Agora sei qual foi a escola da jovem; mas ainda não consigo imaginar por quais caminhos tortuosos e difíceis a velha senhora  chegou a me encontrar.     

A sala está atulhada de badulaques; nas paredes, dois quadros indecifráveis, uma fotografia esmaecida, numa moldura oval; a janela é coberta por uma cortina pesada, antiga.  O ar é carregado, mofado, quase irrespirável.

Trocadas algumas palavras, a cigana dirige-se a uma mesinha redonda, num canto da sala, que noto somente agora. 

Ela nos acena, convidando-nos a sentar; Anna senta-se à minha direita 

“Bem,” – penso – “isto tudo era previsível; é claro que estávamos só esperando o momento para iniciar uma “consulta técnica” .Vamos ver em que vai dar tudo isto...”

A luz, já fraca, parece reduzir-se ainda mais. 

Madame X  assume um ar misterioso, profissional. Sua voz baixa de tom; sussurra as palavras mais lentamente, de um modo quase solene. 

Fala de mim, cita informações a meu respeito: quem sou, quando nasci, as escolas que freqüentei, cursos, viagens, palestras.

-“Tarefa fácil” – deduzo - “por enquanto,  o que ela diz se encontra em qualquer curriculum meu na faculdade ou até nas “orelhas”  dos meus livros.”

Mas as notícias se acumulam; e de repente, fala de coisas que não aconteceram – ainda.  Uma série de aulas no  Instituto Carlson, em Vancouver. Ela as descreve com pormenores, comenta que foram um sucesso, que tudo foi muito gratificante; mas na verdade,  são aulas que me proponho a dar, e sobre as quais o Instituto ainda nem me deu uma confirmação. Se não houver algum contratempo, elas ocorrerão só na próxima primavera. 

E ela me diz: “Cuidado com o resfriado que vai apanhar lá, no hotel!  Ele custa a sarar, em clima tão frio!”    

Depois me alerta: contra pequenos acidentes domésticos, e me diz saber que nada há de mau na minha vida. Tudo vai correr bem por um certo tempo e eu não preciso me preocupar...Ela só queria ter certeza; agora está satisfeita.

Preciso saber mais; não a meu respeito, mas sobre ela.

- “Sempre vivi no interior” - ela diz – “salvo por uma breve estada em São Paulo.  Aos vinte anos, enfrentei um período muito difícil; perdi pai e mãe e fiquei por meses em forte depressão.

Foi a partir  desse tempo que adquiri alguma capacidade de ver o futuro – algum vislumbre, na verdade – apenas sombras, que em certas ocasiões se tornam um pouco menos  misteriosas, menos vagas.

-“Você ficou em algum hospital?”- pergunto-lhe, imaginando para onde seria mandado alguém com este quadro, quarenta anos atrás.

“Não, dr Ulisses, não estive num manicômio, num hospital psiquiátrico ou numa clinica de doenças nervosas, se é o que quer dizer. Eu era – e ainda sou – perfeitamente normal, com uma boa cabeça, sempre no lugar.”

“Não foi o que eu quis dizer, Senhora; perdoe-me se não me expressei como devia. “

 “Acontece, dr Ulisses, que eu o vi,  envolvido em um terrível acidente, na Marginal. Vi-o com clareza, sem sombra de dúvida, e vim a São Paulo para tentar avisa-lo, protegê-lo. Mas quando acabamos de ver o futuro, não podemos mais  alterá-lo; ele acontecerá, exatamente como foi visto; é inevitável.  Sei que você estará lá no dia, na hora,  no local e nada posso fazer para que o seu destino não se cumpra.”

Eu estava ainda tentando assimilar esta situação e de repente me sinto aflito, preocupado; pior, muito pior: , assustado.

- “Senhora, passo pela Marginal quatro vezes ao dia; não sabe me dizer quando será?  como será?  O que acontece? É dia ou noite? Está chovendo ou não? Diga-me alguma coisa, dê-me algum detalhe, conte-me o que viu....”  

“Vi o seu carro, seu lindo Honda vermelho, sendo atingido em cheio por um caminhão; o carro rodopiou, tombou, pegou fogo, quase no mesmo instante. Ninguém saiu dele; nem poderia......E eu nada posso fazer para salvar você, dr Ulisses...”   Anita está chorando, tão presa quanto eu pela aflição, pelo pavor daquela  cena que ela estava revendo .

Enfim, emudece e  fica parada, estática, olhos fechados, braços caídos ao longo do corpo, mãos soltas, largadas, como se tivesse desmaiado ou adormecido.    

Fica assim um bom tempo. Quando volta a si está refeita, com aquela mesma expressão calma, tranqüila, que tinha no início de nossa conversa.          

Ao abrir os olhos, diz, suavemente:

 –“Madalena mandou-lhe lembranças” –

“Madalena? Que Madalena?”

“ A sua Madalena, a Madi, da faculdade”

“Madi? Mas como...quero dizer... o que.... “  Estou pasmo, sem palavras.

Madi foi um grande amor durante os meus tempos de estudante, na faculdade de direito Tão grande e tão curto. .

Talvez ela gostasse mais de mim,  que eu dela.

Eu tinha muitas outras coisas pela cabeça; o estudo, os amigos, as farrinhas, os fins de semana nos sítios dos colegas; as idéias voavam, levavam-me longe.

Ela, em vez,  não tinha amigos. Era moça do interior, tinha vindo para a Cidade Grande para escapar do controle sufocante da família. Não queria conquistar o mundo, como nós. Queria apenas um mundinho modesto, que fosse só dela; e depois que nos conhecemos, queria tanto que eu fizesse parte dele.

Nosso amor não durou seis meses. Acabou como começou, sem traumas, sem choques; apenas como uma flor que esqueci de regar. Não houve nem um adeus. Ela desapareceu – e eu nem me dei conta.

A vida me arrastou – e eu, tolo,  pensava que era eu, que a arrastava.    

“ Como sabe da Madi? Por onde ela anda? Ela está bem?

Diga-lhe que.....que nunca ....nunca deixei de amá-la, por favor”.

“Que mentira, esta, Ulisses”, pensei; e entretanto....: -“ nunca mais tive ninguém  e continuo solteiro, sem uma companheira ...”.

“Oh, Ulisses!... “ – me responde com uma voz tão conhecida, tão próxima, que chega a me arrepiar. E antes que ela fale mais alguma coisa, sou eu que me surpreendo a responder: “Oh, Madalena, Madi, a minha Madi!  É você !?”

Ela me ganhou. Com a sua tranqüilidade, com a sua paz interior.

Nossos cento e vinte e tantos anos, sofrem uma sacudida, nossos pobres corações combalidos estão palpitando de tanta emoção, nossa pressão vai além de qualquer seta vermelha .....

 

-“ Mas você não é uma cigana! Esteve mentindo todo este tempo?”

- “ Não, não! Quando comecei a ter visões, a ver algum relance do futuro, pensei em ajudar os outros, em oferecer um pouco de amor, de tranqüilidade, de vontade de viver....

Se você soubesse quanta gente precisa de uma vela, nessa escuridão que nos cerca!...

Quantos tropeçam e caem, por não terem um simples apoio!

É isso que faço. Não prejudico ninguém.

Tento fazer com que acreditem em alguma coisa, quando tudo lhes parece perdido.

Afinal quando alguém decide consultar uma cigana, é porque  já experimentou de tudo e nada deu certo.  Pior do que está não pode ficar....”

Sorri, mas imediatamente me apareceu a cena do meu acidente.

“Não podia deixa-lo morrer, sem vê-lo uma última vez.

Pois, apesar de minha felicidade em reencontrar Madi, a nuvem escura do futuro acidente me embaça a vista.

Madi me conta de sua vida, que também não foi fácil. Casou, teve uma filha, enviuvou. Foi salva pela companhia, pelo apoio da filha, Constância. Agora é a neta, Anna, a sua fiel companheira.

Anna a tudo assistiu sem falar; agora me pede desculpas pela trapaça das três moças. Era ela, o tempo todo; e como correu!.

Damos boas risadas.

O destino é aquele, está aí, atrás da esquina, pronto para acontecer; para que sofrer mais? Quando a hora chegar o aceitaremos. Por hoje, estamos vivos – e nos reencontramos.  O dia de hoje foi magnífico, excepcional.

............................

Passei uma semana de sustos contínuos; sabia o que iria acontecer, mas não tinha idéia de quando, nem onde, nem como. Esperar a morte é difícil, é complicado, é insuportável; e pensar que, sem perceber, estamos esperando  por ela a vida toda....

 

Uma semana depois, o acidente realmente aconteceu. Eu vinha normalmente pela Marginal, quando um pneu furou. Chovia, estava anoitecendo. Coloquei o carro no acostamento, sinalizando com o pisca e fui procurar socorro. Um caminhão que vinha fugindo da chuva pesada, tentou frear, perdeu a direção, bateu no meu precioso Honda vermelho. O carro tombou e pegou fogo. Logo se formou uma multidão, a chuva apertando, impossível socorrer quem estivesse lá dentro..... Mas eu estava do lado de  fora., na rua.

 

Oh Madi!

Não fazemos o futuro, não sabemos mudá-lo, nem escapar dele, mas é muito melhor  não saber nada a seu respeito. 

Que venha o que for, quando tiver que vir!

De qualquer forma, obrigado, Madi. Valeu!


Autor: Romano Dazzi


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