Passageiros da ilusão



Das lembranças da infância, guardo sempre as das brincadeiras na charqueada dos avós e a companhia de Dinho. Alfredo era o nome dele. Moleque franzino de olhos acesos e dentes alvíssimos no rosto cor de carvão. Devia ter sete ou oito anos, ninguém sabia. Naquela época era comum, quando chegava o escrivão, acorrerem todos a registrar os filhos nascidos entre o período e, assim, em muitas famílias era comum o Tonho ser irmão mais velho do que o Tonico e terem registro de nascimento no mesmo dia e ano.

Dinho era o filho número nove entre os doze de Alaíde. A negra Alaíde era viúva. Ainda moça perdera o marido quando esse, ao pular a janela do rancho da comadre Olga, enredara a bombacha no umbral e o marido ultrajado o alcançara com dois golpes do facão de esquilar, lavando a honra.

Sem recursos, Alaíde fazia serviços a uns e outros e também ao pároco. (Diziam que o filho menorzinho era a cara do padre, cuspido e escarrado.) Ela era encarregada de lavar e engomar os panos da igreja e Dinho servia de coroinha aos domingos, na única missa, às dez horas. Depois disso, Dinho pegava carona no Chrisler do meu pai e seguia, acenando com o chapéu aos passantes, até o casarão de "Dom Domingo", meu avô materno.

Dinho almoçava na mesa com os empregados e depois ficava servindo de pajem da "Ducinha" como ele me chamava, não sei se por não saber pronunciar meu nome ou outro motivo qualquer. Perdeu o cargo de me pajear quando meus pais viram uma de nossas brincadeiras: Eu, em meu vestido domingueiro de broderie branco com fitas de veludo e saias armadas, sapatos de verniz e meias brancas. Dinho agarrava-me pelas fitas de organza com picô das tranças e, com uma réstea de cebola vazia, tocava-me aos gritos de "eia" enquanto eu corria à volta do potreiro.

Terminada a hora em que os adultos faziam a digestão conversando na varanda, era hora de ir embora. Antes de entrar, Dinho cuspia nas mãos e apagava o vestígio de poeira dos meussapatos de verniz.

Depois disso, eu só o via aos domingos na igreja. Sempre que eu podia, levava de casa um pedaço de rapadura que, disfarçadamente colocava na cestinha enquanto Dinho recolhia os óbulos. De lá, também, Dinho foi dispensado depois que Padre Dirceu o pegou tomando o vinho da missa, com o bolso cheio de hóstias. Acho que as levava para acrescentar à refeição dos irmãos.

Longe da igreja, Dinho foi trabalhar como engraxate e eu o via no trajeto para a escola, sempre com a caixa às costas rumo à praça.

Um belo dia, Dinho apareceu com uma bicicleta. "A bike" como dizia. Estava tão vaidoso com ela que a encheu de flores plásticas, roubadas do cemitério, e anéis de borracha colorida nos aros. Daí foi incrementando: uma buzina imitando boi, capa franjada no assento, farolete, bagageiro e por fim uma capota de vinil. Foi contratado para fazer "marketing" com o alto-falante acoplado à bike. E lá ia Dinho: "Casas de carne Ribeiro, onde vale mais o seu dinheiro..." Cidade crescendo, eu normalista, novidades e modernidades...

Dinho apostou nas máquinas caça-níqueis e a cidade o viu ganhar oitocentos reais. Não deu outra. Dinho comprou uma Brasília no ferro velho. Amou-a como havia idolatrado a bicicleta. E passou a incrementá-la: bandeirolas, aerofólios, neon, espelhos laterais, filme nas janelas, farol de milha, som com rock pauleira...

Depois disso ficou comum ver Dinho próximo à carrocinha do vendedor de churrasquinho. A Brasília estacionada com a tampa do porta-malas aberta e enormes caixas de som no máximo volume. Os badboys, filhinhos de papai, davam-lhe moedas para vê-lo colocar o som mais alto e escolhiam as músicas. Na inocência da sua sandice, Dinho não se dava conta de que o faziam para poderem rir à vontade.

Numa manhã de segunda-feira, a cidade amanheceu mais silenciosa: Num entrevero com travestis da praça, Dinho levara um tiro no meio da testa. Só a Brasília não silenciou, continuou tocando: "Don't cry for me, Argentina..."


Autor: lucia czer


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