Como acabar com uma quimera



 

Como acabar com uma quimera

de Romano Dazzi

 

- “E então, você quer escrever! Foi você mesmo que destilou estas gotas amargas de poesia? Sozinho?” – meu tio, respeitado homem de letras, professor de italiano, poeta laureado e diretor de uma biblioteca e pinacoteca, olhava-me com ar entre divertido e sarcástico, deixando-me completamente sem jeito. 

Como estudante medíocre do Liceu Clássico, eu representava a escória do mundo intelectual, com a qual ele era forçado a conviver, nas longas, monótonas aulas  de língua e literatura italiana, na Academia de Belas Artes de Veneza.

Devo confessar que eu, com toda a minha ignorância,  considerava justificado o nojo indisfarçável do meu tio pela minha laia; seus alunos, todos eles uns malucos e  indisciplinados  aprendizes,  não queriam saber nada de língua e de literatura; faltavam, não faziam a lição de casa, copiavam escandalosamente nos exames, em suma tratavam a matéria com desdém e desrespeito.

Mas o pior era que adoravam as aulas de desenho, de perspectiva, de geometria, de pintura a têmpera, a pastel, a crayon, que enchiam suas manhãs, e se deixavam ficar longamente depois das aulas, envolvidos pelo clima e pela paixão pela arte.

Que a raiva do meu tio fosse atiçada um pouco pelo ciúme, francamente é uma idéia que me passou pela cabeça várias vezes.

Mas voltemos aos fatos: eu havia feito uma breve poesia, um “poemetto” bucólico, inspirado por Virgilio, um poeta fascinante porque o seu latim era compreensível, linear e direto, quase tanto quanto o de César.  Apesar de considerá-lo, intimamente,  bem razoável pelos meus padrões, nunca o apresentaria, para ser avaliado, a algum professor; muito menos ao meu tio, que eu temia mais pela língua ferina e pela inteligência afiada, que pela sua idade e posição.

Foi meu pai, que me colocou naquela desagradável situação. “Ele não sabe fazer quase nada “ – deve ter dito – “vamos ver se conseguiu se sair bem com esta coisa de poesia;  afinal, tem um tio poeta, nunca se sabe!”

Mal sabia ele que eu seria submetido á execração e ao escárnio, não só do tio, mas de todo o corpo docente da Academia. Foi o maior vexame que sofri, por muitos e muitos anos da minha vida. Prometi a mim mesmo que nunca mais escreveria poesia.

Claro que outros vexames se juntaram pontualmente no meu prontuário dos anos seguintes; afinal, às vezes ficamos em situações desastrosas;  mas aquele me deixou como um verme, nu e assustado, sobre uma bancada de laboratório, com dez microscópios apontados para as minhas vergonhas. 

As críticas impiedosas que sofri, deveriam ter-me arrancado qualquer absurda ilusão de sucesso na arte poética.

Mas não.  Continuei me arrastando pelos rimários, contando sílabas e tentando costurar versos, que no fim ficavam como roupas de  Arlequim. 

E Arlequim continuo me sentindo, até hoje, ridículo e ingênuo, quando, sem querer, me sai um verso, que logo esqueço e apago..

Sinal que meu tio, infelizmente, enxergara longe.   

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Autor: Romano Dazzi


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