O DESPERTAR DA CRÍTICA: DO RACIONALISMO CARTESIANO AO CRITICISMO KANTIANO



INTRODUÇÃO

Por volta do século XV o Ocidente assiste a um processo de transformação dos valores científicos que, grosso modo, irá se consolidar no século XVII com o problema do conhecimento. Diversos pensadores, em oposição à metafísica proposta pela escolástica medieval, irão se debruçar sobre a teoria do conhecimento, pretendendo validar a apreensão que se faz do objeto, procurando não incorrer nos mesmos erros que invalidara outrora a ciência dos antigos.

Desta maneira, no primeiro capítulo faremos uma breve exposição do contexto da modernidade, procurando explicitar como o embate teórico que surgia entre a antiga e a nova ciência desencadeou o problema acerca do próprio conhecimento que o Ser faz sobre o objeto, de forma que, no segundo capítulo trataremos de percorrer o caminho que o homem faz para o conhecimento, já introduzindo a discussão sobre o racionalismo cartesiano.

No terceiro capítulo a problemática gira em torno de Descartes, contextualizando, iremos acompanhar o desenvolvimento filosófico do pensador francês em busca de um método capaz de garantir o sucesso da elaboração de uma teoria científica, poderemos perceber, ao longo do capítulo, o quão influente é o seu pensamento, mesmo no período contemporâneo, na ciência moderna.

O quarto capítulo se dedicara a expor, de forma esquemática, o empirismo inglês, corrente filosófica que se originou como uma forte oposição ao racionalismo enquanto método científico, salientando que o conhecimento é resultado da experiência, sendo assim, revelaremos as abordagens e os argumentos que importantes empiristas deram ao problema.

O último capítulo refere-se a crítica de Kant, filósofo que se dedicou a superar o conflito teórico proposto por racionalistas e empiristas, os argumentos de Kant em seu livro A crítica da razão pura é uma importante contribuição filosófica ao desenvolvimento da ciência moderna.

O presente trabalho se propõe a, sinteticamente, desvelar a discussão que a ciência travou acerca do conhecimento na modernidade através do pensamento dos mais representativos pensadores de sua época.

1. A MODERNIDADE

Antes de penetrar no pensamento de Descartes e dos empiristas ingleses e, principalmente, na crítica de Kant as duas correntes filosóficas, é importante tecer uma breve consideração (senão, superficial) acerca da modernidade, esta que é pano de fundo e elemento constitutivo de uma nova forma de pensar. O período que caracteriza o rompimento com a filosofia da escolástica[1] inicia-se por volta do século XV e trás no seu bojo, ou seja, no conceito de modernidade, a idéia do novo, do progresso, da valorização do indivíduo, "em oposição à tradição, isto é, ao saber adquirido, às instituições, à autoridade externa" (MARCONDES, 1997: 140).

Conforme Danilo Marcondes (1997), podemos identificar quatro fatores essenciais à ascensão da valorização do indivíduo (ou da subjetividade), são eles: o humanismo renascentista, a reforma protestante, a revolução científica e a redescoberta do ceticismo antigo. A partir destes quatro fatores que veremos se desenvolver o caudal teórico que dará vida à modernidade, os quais, posteriormente, os historiadores identificarão como uma linha divisória entre dois períodos distintos.

De certo modo, o período medieval foi reconhecidamente dominado pela filosofia da escolástica, que, grosso modo, caracteriza-se pela ortodoxia de posições tradicionais e conservadoras, ou seja, aquela de verdades adquiridas e provadas mediantes o complexo silogismo aristotélico. A escolástica defendia um modelo de cosmo geocêntrico, ordenado e hierárquico pelo fato de que isto lhes conferia a devida segurança às suas teses. Em oposição, a partir do século XV, os humanistas rompem com este pensamento ao conferir valor ao indivíduo (à criatividade humana), segue a reforma protestante que nega a autoridade papal que representava no mundo dos homens a hierarquia do cosmo, enquanto isto, a revolução científica defende um modelo heliocêntrico do cosmo por meio de uma ciência ativa[2] opondo-se à ciência contemplativa da escolástica, além de que este será o período em que os céticos irão levantar, novamente, o problema da ausência de critérios para se validar as teorias.

Todos estes fatores relacionam-se a uma série de transformações políticas, econômicas e sociais que vinham ocorrendo na Europa e que, no caso, deflagram a necessidade de uma nova forma de pensar, deflagram o problema do conhecimento, como veremos a seguir.

2 O PROBLEMA DO CONHECIMENTO

A filosofia de Descartes é a forma mais bem acabada da modernidade; como se viu anteriormente o humanismo, a reforma protestante e a revolução científica causaram uma profunda cisão no pensamento ocidental, porém era necessário que este novo modo de filosofar, que se voltava, essencialmente, para o homem, fosse devidamente organizado. Descartes volta seu trabalho para o problema do conhecimento do homem acerca da realidade, se a metafísica aristotélica já não dava mais conta das respostas que o individualismo moderno propôs, como bem perceberam os renascentistas, era necessário justificar o conhecimento do homem; pois, se não eram as verdades universais, como saber se o que percebíamos e induzíamos sobre o objeto do real era verdadeiro? Conforme o pensamento moderno, o homem é capaz, por si só, através de sua razão, ou seja, sem o auxilio da metafísica teológica, chegar às verdades? Descartes e os empiristas ingleses propor-se-ão a buscar as respostas a estes questionamentos.

A exposição, anterior, sobre a modernidade é pertinente para o bom entendimento do pensamento cartesiano, já que o próprio Descartes é considerado um dos iniciadores da modernidade, e principalmente para entender o por que de seu pensamento ser tão influente. Para Marcondes (1997), é necessário contextualizar o pensamento cartesiano (esta é uma exigência do próprio Descartes), pois são as experiências do indivíduo que determinam o percurso do pensamento, desta forma, valoriza-se o sujeito que pensa, não mais àquele ligado a alguma tradição clássica que bem organizava seu pensamento em complexas fórmulas; é característico à obra de Descartes a escrita em primeira pessoa, que enfatiza o fato de que "[...] devemos compreender o pensamento filosófico como resultado da reflexão sobre a experiência de vida" (MARCONDES, 1997: 162).

O século XVII representa o momento em que o homem subverte a imagem de si próprio e do mundo (após um longo processo); com a revolução científica os cientistas perceberam que durante séculos de história o homem esteve enganado acerca das coisas que conhecia. O homem havia trabalhado sobre verdades que quando testadas se mostraram falsas, desta forma, o que os cientistas da modernidade temiam era novamente incorrer em tais erros, isto os leva a superar a metafísica que lhes dava um modelo de mundo acabado (e, portanto, falso quando experimentado), para a ciência do século XVII o problema estava no conhecimento, de forma que para evitar o erro era necessário pensar a questão do método. Se a escolástica estava preocupada em conhecer o ser, a ciência moderna voltava sua preocupação para o próprio conhecimento, ou seja, com o caminho que o conhecimento percorre para conhecer o ser e fazer deste um conhecimento válido, este problema será tratado pela teoria do conhecimento ou epstemologia.

Antes de adentrar no racionalismo cartesiano, em linhas gerais, vamos entender como se processa o conhecimento, vejamos o que diz Aranha e Martins (1986) a respeito:

Há dois pólos no processo do conhecimento: o sujeito cognoscente (que é o sujeito que conhece) e o objeto conhecido. Assim, o conhecimento é uma dualidade de sujeito e objeto expressa numa relação, isto é, o sujeito tende para o objeto e dele se "apossa" pelo pensamento, assim como o objeto "determina" o pensamento do sujeito.

(ARANHA, MARTINS, 1986: 165-6)

O conhecimento sobre um objeto acontece quando o pensamento do sujeito concorda com o próprio objeto, entretanto, a teoria do conhecimento levanta a seguinte questão: Qual o critério para se ter certeza de que o objeto concorda com o pensamento? É desta maneira que a epstemologia irá propor alguns métodos para que o homem seja capaz de possuir critérios para avaliar um conhecimento verdadeiro e um destes métodos será o racionalismo.

3 O RACIONALISMO CARTESIANO

O primeiro método que vamos abordar acerca do problema do conhecimento é o racionalismo. Descartes em duas de suas obras expressa este problema de forma central, O discurso do método e Meditações, terão por finalidade chegar ao método apropriado para atestar se o conhecimento obtido sobre os objetos é verdadeiro ou não.

Segundo Descartes, a racionalidade é natural do homem; o que faz com que nos enganemos, sobre o ente, é o mau uso da razão, devemos, portanto, aplicar um método para que a razão siga um bom caminho e não incorra no erro; sendo assim, o método "é um caminho, um procedimento que visa garantir o sucesso de uma tentativa de conhecimento, da elaboração de uma teoria científica" (MARCONDES, 1997: 162).

Durante o período medieval o método utilizado era o complexo silogismo aristotélico, com Descartes o método torna-se muito mais simples, baseia-se na geometria e resumem-se a quatro regras, ou passos, que devem ser seguidos a risca para se chegar ao conhecimento verdadeiro, estas quatro regras seriam satisfatórias para validar um conhecimento, não sendo necessário o formalismo da lógica aristotélica.

As regras que compõem o método cartesiano são:

a) Dúvida: Jamais aceitar uma coisa como verdadeira sem que se saiba ser ela evidentemente verdadeira. A primeira regra é fundamental para o pensamento cartesiano, se o problema do conhecimento é a busca da verdade primeira que não possa ser posta em dúvida, Descartes faz da dúvida o método, ele duvida de tudo, do saber do senso-comum às verdades deduzidas pelo raciocínio.

b) Análise: Dividir cada uma das dificuldades examinadas em tantas partes possíveis e necessárias para melhor resolvê-las.

c) Síntese: Conduzir o pensamento de forma ordenada, começar pelos objetos mais simples de serem conhecidos, para que pouco a pouco se chegue até o conhecimento dos mais complexos.

d) Revisão: Fazer enumerações e revisões completas para que se tenha certeza de que nada foi omitido.

O método desenvolvido por Descartes tinha por objetivo, também, dar conta do problema do ceticismo. Para ele a nova ciência era a mais capaz de se aproximar e apreender o conhecimento, entretanto, sabia Descartes, que as teorias céticas tinham fundamento, afinal, "se durante vinte séculos teorias falsasforam adotadas como verdadeiras, o que nos impede de estarmos também hoje [...] adotando teorias falsas?" (MARCONDES, 1997: 162).

As fontes céticas retornam com o Renascimento, juntamente com o redescobrimento dos pensadores da Antiguidade, o interesse pelo ceticismo se dá devido ao questionamento que eles fazem ao fato de que não há um critério para resolver a disputa de teorias rivais, ou seja, numa disputa de teorias não há como determinar a validade de uma ou de outra. O trabalho de Descartes será o de resolver este impasse. No século XVII o pensamento vivia um conflito entre escolástica e ciência moderna, os céticos diziam que ambas eram corretas. Sendo assim, Descartes, simplesmente não podia descartar a crítica cética, pois ela era genuína, ele deveria refutar a teoria cética.

Ora, se os céticos sustentavam que não podemos ter certeza acerca de nada, uma vez que nossas faculdades de conhecimento são falhas e as teorias científicas que formulamos incompletas e sujeitas ao erro, Descartes propõe-se a encontrar uma certeza básica [...] que possa servir de base e fundamento para a construção da nova teoria científica.

(MARCONDES, 1997: 163)

Neste sentido, podemos afirmar que seu ponto de partida é a constatação de que seu tempo vivia uma crise científica e, que a tradição era incapaz de sanar tal crise por si só; pois bem, se ela não era capaz de tanto, logo seus pensadores (autoridades externas) haviam perdido a credibilidade, portanto, fazia-se necessário o homem voltar-se para si, para sua interioridade, à sua racionalidade. Segundo a teoria platônica, o homem possui em si a possibilidade do conhecimento, devido sua razão, contudo a tradição deturpou este conhecimento, para Descartes, o individualismo significa um retorno a esta racionalidade platônica.

O racionalismo cartesiano tem inicialmente, a função, por meio da subjetividade rigorosamente orientada, ser capaz de entender o ser cognoscente (autoconhecimento), a teoria do conhecimento nos dá o método para que o homem entenda o que é o conhecimento e seja capaz de refutar teorias científicas.

Por isso, Descartes, carecia encontrar a certeza básica que desse fundamento ao seu raciocínio, eis a especificidade do argumento do cogito.

         3.1 O ARGUMENTO DO COGITO

A principal contribuição de René Descartes ao desenvolvimento do pensamento filosófico ocidental é o argumento do cogito, segundo o qual se pretende encontrar o fundamento seguro para se chegar ao conhecimento, e, assim, refutar o ceticismo.

Levando em consideração o argumento cético, Descartes, formula a dúvida metódica, onde toda "[...] proposição deve ser rejeitada, caso haja o menor motivo para dúvida" (MARCONDES, 1997: 165) e, desta forma, examinar o conhecimento que não se sabe verdadeiramente confiável. Em suas Meditações, Descartes, elabora três argumentos básicos "sobre as coisas que se podem colocar em dúvida", são eles:

a) Reconhece que as faculdades cognitivas (sentidos) são tão enganosas quanto o conhecimento adquirido, em sua primeira meditação diz ele que em alguns momentos, talvez, possamos ter certeza daquilo que percebemos, como por exemplo, o fato dele estar sentado, escrevendo junto à lareira.

b) O segundo argumento é o do sonho, diz Descartes que é possível que mesmo aquilo que percebemos como real (estar sentado junto à lareira) seja na verdade um sonho, ou seja, o que percebemos como fato não é critério para distinguir o sonho da vigília, pois todos já passamos por experiências que nos levam a tal confusão, segundo Danilo Marcondes (1997), este problema entre o que se passa em nossa mente e o mundo externo é crucial na filosofia cartesiana.

Desta maneira, explorando o argumento do sonho, Descartes diz que mesmo que os objetos de nossa percepção sejam frutos de um sonho, ainda assim, neles existem algumas características universais como forma, extensão e quantidade, que estão presentes tanto no plano objetivo como no plano subjetivo das formas abstratas, um quadrado sempre terá quatro lados, seja desenhado no papel ou imaginado pela mente, portanto, estas formas podem estar imunes à dúvida.

Os dois argumentos acima são, tecnicamente, semelhantes aos utilizados pelos céticos, vejamos o terceiro argumento que corresponde à original contribuição de Descartes à filosofia.

c) O terceiro argumento é o mais radical, segundo ele parte-se da idéia de que existe um deus que tudo pode e que nos criou de forma a acreditarmos em tudo sem que realmente tudo existisse; este deus é chamado por Descartes de gênio maligno. A partir disto, ele chega a uma primeira conclusão: que nada há no mundo de certo, pois tudo que penso como verdadeiro (por exemplo, as formas geométricas) pode ser obra de um gênio maligno; com este raciocínio, Descartes, parte para a primeira certeza, diz que mesmo para que possa ser enganado sobre tudo é necessário existir, e por mais que nos enganemos é impossível não ser nada enquanto pensarmos ser alguma coisa,

Portanto, até mesmo para duvidar é preciso que eu pense; logo, o pensamento é ele próprio imune à dúvida. "Enfim é preciso concluir [...] que esta proposição 'Eu sou, eu existo' é necessariamente verdadeira todas as vezes que eu a enuncie ou a conceba em meu espírito".

(MARCONDES, 1997: 167)

É por meio deste raciocínio que se chega à conclusão de que até mesmo para duvidar é preciso pensar, e que a existência do ser pensante (res cogitans), portanto, não está sujeita à dúvida, ela é mais básica, é um pressuposto dela. Sendo assim, a primeira certeza é a verdade necessária do cogito.

A crítica feita a Descartes, neste sentido, diz respeito ao solipsismo cartesiano, no qual só se pode chegar a evidência do cogito através critériostão rigoroso que não se aplica a nada mais além da mente, pois o método só se aplica ao ser que pensa, o que lhe é externo sempre estará sujeito à dúvida, só podemos reconhecer a existência de um pensamento puro. A partir disto, Descartes se propõe a fundamentar a possibilidade do conhecimento científico através destas bases metodológicas, sua tarefa é sair do idealismo para o realismo.

O próximo passo de Descartes é reconhecer, após examinar a substância pensante, que a mente é composta de idéias e que a idéia é pensar sobre, independente de sua verdade e como diziam os cientistas tradicionais era por meio do juízo (composto de idéias) que poderíamos afirmar a verdade ou a falsidade de algo, que será válida na medida em que for evidente, que representar a idéia de algo. São três os tipos de idéias: inatas (infinito e perfeição), adventícias (ou empíricas) e as da imaginação, são elas que fazem o processo de correspondência com o real.

Após entender o funcionamento do ser pensante e da correspondência das idéias com o real, Descartes passa para o argumento cosmológico, no qual se reconhece a existência de Deus através da idéia inata de perfeição. Deus ao criar o homem lhe marca com sua perfeição, desta maneira, desta forma, mesmo sendo imperfeitos somos capazes de reconhecer a perfeição, seguindo este raciocínio chega-se ao argumento ontológico, em que se reconhece a existência de Deus, já que a perfeição só pode ser reconhecida como a posse de todas as qualidades é necessário supor que o Ser-perfeito exista. Por meio do argumento ontológico Descartes rompe com o solipsismo e pode afirmar a existência de algo além do cogito, fora de si mesmo; o argumento cosmológico mostra o processo de pensar Deus através do próprio cogito sem auxilio externo e o ontológico é capaz de afirmar a existência de Deus independente do cogito, sendo assim possível garantir a existência do mundo e a possibilidade do homem conhecer o mundo. O ponto arquimediano de Descartes, a base para construção do conhecimento, não é na verdade o cogito, mas a existência de Deus, sendo assim passou-se do idealismo do cogito para o realismo, "sendo o conhecimento a representação verdadeira, a correspondência entre a idéia e o objeto externo" (MARCONDES, 1997: 172).

4 O EMPIRISMO INGLÊS

Juntamente com o racionalismo cartesiano, encontramos o empirismo como uma das grandes correntes filosóficas da modernidade. A formação dos pensadores empíricos deve-se ao fato de que eles acreditavam não haver conhecimento sem experimentação do real, daí seu lema: nada está no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos, de inspiração aristotélica, que preza pelas percepções e impressões sensíveis na acumulação de dados sobre o real.

Muitos são os nomes que se dedicaram ao empirismo, entretanto iremos nos concentrar em três, pois são estes que, conforme Danilo Marcondes (1997), nos legaram as mais importantes contribuições contrárias à metafísica especulativa, trataremos, brevemente, de Bacon, Locke e Hume.

         4.1 FRANCIS BACON

O método experimental de Francis Bacon é considerado, ao lado do método cartesiano, como um dos iniciadores da modernidade por sua contribuição na concepção de pensamento crítico e, por sua defesa do método indutivo; concentremo-nos nestes dois pontos.

O método de Bacon é, claramente, uma ruptura com o pensamento desenvolvido pela escolástica, preocupa-se com o método correto de levar o homem ao conhecimento, desta forma é que sua filosofia se colocará a tarefa de "[...] liberação do homem de preconceitos, ilusões e superstições" (MARCONDES, 1997: 178), base da antiga filosofia medieval, que para Bacon, bloqueavam a mente humana ao verdadeiro conhecimento.

Diante desta observação, Bacon irá desenvolver a teoria dos ídolos, que fará menção aos níveis de superstição do homem em relação à religião e a ciência antiga, rompendo com alguns mitos preservados pela escolástica, como o do homem ser o reflexo do macrocosmo. Outra importante contribuição de Bacon, com esta teoria, é mostrar que o ser humano está sujeito a diversas perturbações do meio ambiente que vive, devido sua própria formação e sujeito a influência de outros homens que podem (ou não) levá-los a controvérsias e fantasias.

Para Bacon, o homem devia despir-se de seus preconceitos e encarar o mundo assim como o faz uma criança, somente desta forma poderia alcançar o verdadeiro saber; é desta forma que ele desenvolve o método indutivo, que permite por meio da observação da regularidade dos fenômenos e a generalização, a formulação correta de leis científicas. Bacon representa uma ruptura com a tradição, pois percebe que por meio da formulação de leis é possível que o homem interfira na natureza, a controle e a utilize em seu benefício, saber é poder, tal concepção é característica do ideal de progresso que experimentava a época.

         4.2 JOHN LOCKE

John Locke é outro dos pensadores que exerceram uma forte influência em sua época no campo da teoria do conhecimento, defendendo o método empirista, diz ele, rejeitando a doutrina cartesiana, que não existem idéias inatas, nossas representações são todas derivadas de nossas percepções sensíveis, ou seja, o conhecimento resulta da experiência, segundo o próprio autor, nada está na inteligência sem que antes tenha estado nos sentidos.

Desta forma, Locke abandona o caminho da lógica cartesiana e opta pelo caminho psicológico para entender a essência do conhecimento humano. Para o filósofo, a mente é uma tabula rasa, "na qual a experiência deixa as suas marcas" (MARCONDES, 1997: 180), distingue com isso, duas fontes possíveis para nossas idéias: a sensação e a percepção; "a sensação é o resultado da modificação feita na mente através dos sentidos. A reflexão é a percepção que a alma tem daquilo que nela ocorre" (ARANHA, MARTINS, 1986: 170).

As idéias que os homens possuem das coisas resultam das qualidades sensíveis que os objetos deixam em nossa mente, podendo elas serem de qualidades primárias ou secundárias, a primeira refere-se as qualidades próprias do objeto, como forma, extensão e volume e a segunda às qualidades que percebemos o objeto, como cor, odor e textura.

Passamos, assim, de um ser pensante (como queria Descartes), para uma mente com certas disposições para o conhecimento, dependendo de como os objetos, em suas qualidades primárias e secundárias, se apresentam sensorialmente.

         4.3 DAVID HUME

O escocês David Hume pode ser considerado o mais radical dos empiristas, pois suas teses, levadas as últimas conseqüências, podem assumir uma posição cética ou naturalista. Seu ponto de partida filosófico é a tese de que nossas idéias se originam de nossas próprias experiências sensíveis e é por meio da percepção que validamos as idéias que fazemos dos objetos, quanto mais próximas, mais fortes são, mas mesmo assim, enquanto idéias, são de natureza particular e, portanto, não produzem ciência já que não é passível de generalizações; a generalização só é possível quando associamos a idéia às palavras, pois assim podemos "[...] fazer referência a inúmeras coisas particulares que tenham natureza semelhante. O universal resulta assim desse processo de associação e da força de nosso hábito ou costume" (MARCONDES, 1997: 182).

A partir desta constatação é que se pode interpretar o ceticismo de Hume, quando ele questiona a noção de causalidade e a de identidade pessoal. A crítica à causalidade diz que não há uma conexão necessária entre os fenômenos, o que podemos observar é uma conjunção entre fenômenos, que por conta de uma regularidade em nossos hábitos tende a se projetar como real; a causalidade é resultado de nossa própria mente, de reflexões próprias do ser humano e não uma conexão necessária entre causa e efeito como queriam os antigos.

A critica à identidade pessoal tem o mesmo teor do anterior, diz que não podemos ter nenhuma representação a priori em nossa mente, tudo é derivado de nossas experiências (de nossas impressões sensíveis); o eu só existe por hábito, pois foi por alguma impressão durante a vida que o eu se constituiu, diz Hume, que as impressões não são constantes, portanto, o eu existe, pois acreditamos que ele é, não provém de percepções e nem de nenhuma outra fonte como queriam os cartesianos.

Desta forma, Hume admite que não há critérios para definir alguma certeza, já que as impressões não são constantes e nossas idéias resultam apenas da regularidade que observamos nos fenômenos, não há nada certo e nem definitivo, tudo é probabilidade. A ciência é resultado da indução e o critério para lhe validar é a probabilidade que a regularidade oferece ao fenômeno estudado, portanto o conhecimento "[...] depende apenas de nossa natureza, de nossos costumes e de nossos hábitos" (MARCONDES, 1997: 184).

5 KANT E A CRÍTICA DA RAZÃO PURA

Segundo Danilo Marcondes (1997), a obra de Immanuel Kant pode ser dividida em duas fases: a primeira fase, pré-crítica, em que seu trabalho é considerado típico do racionalismo dogmático[3]; e a segunda fase, a crítica, a qual tem ínicio com a publicação em 1781 da Crítica da razão pura.

Iremos, pois, nos concentrar nesta segunda fase, que conforme o autor, ocorre após que a leitura de David Hume lhe causou ao deparar-se com o empirismo cético, Kant, se vê obrigado a defender o racionalismo, entretanto, as questões levantadas por Hume eram legitimas e Kant não podia simplesmente ignorá-las; refutar o empirismo cético o levou a elaborar uma filosofia que ele denominou "[...] como racionalismo crítico, pretendendo precisamente superar a dicotomia entre racionalismo e empirismo" (MARCONDES, 1997: 207), ou como nos diz Aranha e Martins (1986), a superar a confusão conceitual a respeito da natureza de nosso conhecimento.

O criticismo de Kant nasce com a seguinte questão: é possível uma razão pura (como postulava o racionalismo dogmático) independente da experiência? Veremos, a seguir, quais são os argumentos de Kant a este respeito.

5.1 O CRITICISMO KANTIANO

A crítica kantiana tem início com a negação dos argumentos propostos pelos racionalistas e pelos empiristas acerca do conhecimento, nega que tudo o que pensamos vem de nós, da mesma forma que nega que tudo o que conhecemos venha dos sentidos. O filósofo diz que a disputa entre as correntes filosóficas é um "escândalo" que só pode ser superado pela crítica.

A filosofia é definida por Kant como a ciência da relação de todo conhecimento, e que trata de quatro questões básicas: o que posso saber? (objeto da metafísica, relaciona-se à possibilidade e a legitimidade do conhecimento); o que devo fazer? (objeto da moral); O que posso esperar? (objeto da religião); o que é o homem? (objeto da antropologia). Em A crítica da razão pura, será tratada a questão da razão teórica, isto é, o uso da razão no conhecimento da realidade como uma ferramenta para se estabelecer critérios entre o que podemos legitimamente conhecer e as falsas pretensões de conhecimento, desta forma, o trabalho tem por finalidade estabelecer os limites do poder da razão pregado pelos racionalistas dogmáticos através da crítica.

É por meio d'A crítica da razão pura que Kant desenvolve sua concepção de filosofia transcendental, ou seja, não se preocupa tanto com os objetos, mas sim como conhecemos o objeto. A teoria do conhecimento de Kant, por este meio, investiga a possibilidade de distinguir a ciência daquilo que não é ciência, uma razão cognitiva daquela meramente especulativa, é um trabalho que consiste "por um lado, no exame da constituição interna da razão; por outro lado, no exame de seu funcionamento" (MARCONDES, 1997: 208).

Kant inicia por distinguir os juízos analíticos dos juízos sintéticos, o primeiro é de caráter lógico, é a priori, são universais e necessários, não produzem conhecimento, mas definem o sujeito; o segundo depende da experiência, é a posteriori, constitui uma ampliação do conhecimento, pois resultam de generalizações empíricas. Ainda assim, para explicar a possibilidade da ciência, Kant considera que a distinção destes dois juízos é insuficiente, ele precisava dar conta de juízos necessários e universais que ampliassem o conhecimento, chamados por ele de juízos sintéticos a priori, estes são independentes da experiência, mas estão relacionados à ela; a teoria do conhecimento de Kant pertence a esta classe de juízos.

O conhecimento (resultado da relação sujeito-objeto e objeto-sujeito) ocorre na contribuição de duas faculdades de nossa razão: a sensibilidade e o entendimento, em A crítica da razão pura, Kant examina as formas puras da sensibilidade (espaço e tempo) e os conceitos puros do entendimento (categorias), de forma que os une para constituir a experiência cognitiva. Com isto, se procura legitimar a constituição do conhecimento.

Para analisar a sensibilidade Kant resgata o termo grego estética para explicar as intuições como condições de possibilidade de experiência sensível, diz que o intelecto é incapaz de ter acesso a essência das coisas, pois a essência é incondicionada e se conhecer é se relacionar, logo deveríamos entrar em relação com a essência e esta deixaria de ser incondicionada; é pela intuição (sensível) que podemos alcançar o modo como que os objetos se apresentam a nós no tempo e no espaço, "o que conhecemos não é o real, 'a coisa em si' [Ding an sich], mas sempre o real em relação com o sujeito do conhecimento, isto é, o real enquanto objeto" (MARCONDES, 1997: 210). Existe uma distinção entre o fenômeno e a realidade em si, pois só podemos pensar um objeto mediante categorias e só podemos conhecer mediante a intuição, assim que se desenvolve o "construtivismo" de Kant, pois o mundo dos fenômenos só existe na medida em que ele aparece para nós, só conhecemos a priori o que nós colocamos nos objetos.

A constituição do conhecimento é analisada por Kant por meio de três considerações: a analítica transcendental, a dedução transcendental e a dialética transcendental.

Na analítica Kant analisa as categorias, os conceitos puros do entendimento, diz que os juízos (todo homem é mortal) e as categorias ou conceitos (derivados dos juízos, como a unidade) são as formas mais básicas e gerais do nosso pensamento. Conceitos são derivados dos juízos, pois um juízo é uma unidade lógica que independe de seu conteúdo, seu sentido ou representação de um objeto depende da existência de um conceito possível, por exemplo, o conceito de mortal pode significar uma infinidade de objetos, porém quando derivado de uma unidade lógica (juízo) ele é considerado um predicado: todo homem é mortal, o "homem" não pode ser conhecido sem o seu predicado ou conceito.

Na dedução transcendental Kant analisa os conceitos a priori, diz que é por meio da sensibilidade que recebemos os dados da experiência, que a imaginação unifica os dados múltiplos da sensibilidade e que o entendimento lhes dá unidade conceitual que nos permite pensar o objeto. Diferente de Descartes, o eu penso de Kant não é anterior à experiência, precisamente pensar é dar unidade às coisas, elas se relacionam; da mesma forma que se afasta de Hume, ao afirmar que o eu não é um "feixe de percepções", em constante transformação por conta de novas percepções e que assegura da existência por força do hábito, para o eu de Kant é necessário para que haja experiência a existência de um eu que lhes dê unidade.

Na dialética transcendental Kant analisa o uso especulativo da razão, como vimos anteriormente a teoria do conhecimento kantiana é formada pela forma a priori do espírito e pela matéria a posteriori da experiência sensível, desta forma é que ele irá dizer que a metafísica tradicional não é capaz de produzir ciência, pois não em um objeto, a questão da perfeição de Deus não pode ser respondida pela razão já que não se manifesta no espaço e no tempo, não há experiência para que a razão possa lhe dar unidade, o filósofo deve se abster de afirmar ou negar qualquer coisa desta realidade, trata-se, pois, do agnosticismo kantiano. Tratar de questões como Deus e alma produz somente o que Kant chama de antinomias (questões insolúveis) e paralogismos (raciocínios defeituosos).

Desta forma, em A crítica da razão pura, Kant desenvolve os princípios básicos de sua teoria do conhecimento, que resulta da contribuição da sensibilidade que permite que o objeto seja pensado por conceitos e o entendimento que permite que o objeto pensado seja determinado no espaço e no tempo como uma experiência possível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observou-se ao longo do trabalho que o conhecimento produzido pelos medievais foi fortemente combatido, pois se validavam quando postos à crítica de uma ciência de caráter individualista que surgiu com a modernidade. A partir do trabalho de René Descartes a ciência ousou melhor compreender como se processa o conhecimento no Ser, buscando métodos rigorosos que dessem validade ao conhecimento produzido.

O racionalismo cartesiano representou o rompimento com o silogismo aristotélico da escolástica, argumentou que a razão é capaz de conhecer o objeto se devidamente orientada por um método seguro, ainda assim, o ceticismo que havia sido resgatado pela modernidade colocava a Descartes problemas legítimos quanto à dúvida, é desta forma que ele desenvolve sua mais importante contribuição à filosofia ocidental: o argumento do cogito, em que a própria dúvida é colocada como critério para se chegar a certeza do conhecimento da existência do ser pensante, que posteriormente, através do desenvolvimento das idéias inatas e do argumento ontológico, será possível afirmar a existência de Deus, ou seja, algo além do próprio cogito.

O empirismo inglês irá se opor à idéia do inatismo cartesiano, segundo seus pensadores, o conhecimento só pode se dar através da experiência, desta forma, seus pensadores defendem que sendo o homem uma "tabula rasa", nada está em seu intelecto sem antes ter passado por seus sentidos.

Estas duas correntes filosóficas propuseram um embate teórico que só seria resolvido por Kant, racionalista que havia sido despertado de seu "sonho dogmático" após a leitura do empirista David Hume, defendeu Kant que o conhecimento é constituído por forma a priori e matéria da experiência, o conhecimento se dá quando a matéria da experiência é transformada numa unidade por nossa sensibilidade a priori de tempo e espaço; Kant com isto nega que o conhecimento seja exclusivo da experiência, da mesma forma que nega a exclusividade da razão.

BIBLIOGRAFIA

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986. 443 p.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3. ed. rev e ampl. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 296 p.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. 298 p.


[1] Por volta dos séculos XI-XII surge a escolástica, termo que designa, genericamente, aqueles que pertencem a uma determinada escola e compartilham de certos princípios doutrinários, no caso, os dogmas do cristianismo. Cf. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. pp. 114-17.

[2] A ciência contemplativa diz que o conhecimento é obtido através de princípios primeiros, já a ciência ativa nega esta possibilidade, o conhecimento só pode ser obtido através da observação da realidade submetida à experimentação. Cf. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986. p. 142.

[3] Segundo Marcondes (1997: 192-4), o racionalismo dogmático é aquele fundamentado no "sistema Leibniz-Wolff" de grande aceitação no meio acadêmico alemão do século XVIII, defende, contra a doutrina cartesiana, que não se pode duvidar de tudo, existem graus de aceitação; contra o empirismo de Locke diz que: "nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos, exceto o próprio intelecto". Para Leibniz, toda a verdade deve ter uma razão segundo a qual ela é verdade, cabe ao filósofo distinguir as verdades da razão que são necessárias das verdades de fato que são contingentes. Para o "sistema Libniz-Wolff" o ideal do conhecimento é o conhecimento necessário, através da razão o filósofo deve partir do conhecimento de fato para o conhecimento necessário, ou seja, aquele que não necessita de explicação.


Autor: Rodrigo Vides Vieira


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