A METÁFORA DO CORPO EM ''O CORTIÇO''



Daí a pouco, em volta das bicas era um zuzum crescente, uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns após outros, lavava a casa incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos.

(Aluísio Azevedo, O cortiço. Cap.III. pág. 22).

1- Artigo apresentado ao Prof.Dr.Vitor Hugo Fernandes Martins, da disciplina Estudo da Produção literária no Brasil, do Curso de Letras Vernáculas, da Universidade do Estado da Bahia-UNEB, Campus XXI - Ipiaú, como requisito para complementação de nota.

2- Discente do segundo semestre, vespertino.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Historicamente, a figura do corpo na literatura foi exposta de várias formas: idealizado, cheio de pudor, sempre muito coberto e representando a ética da época no séc. XVIII no Romantismo, e com mais participação e adquirindo linguagem própria para expressar desejos e sensações no Realismo e Naturalismo. Neste artigo, propomos um estudo sobre a representação do corpo na estética romântica analisando as características apresentadas tais como: roupas e gestos, e principalmente estudando a representação do corpo da época realista e naturalista, analisando os gestos corporais comparados principalmente a atos animalescos no romance O cortiço de Aluísio Azevedo.

Nossa leitura desta obra será feita observando os gestos dos corpos dos personagens na literatura Naturalista. Por meio da categoria narrativa, dito de maneira mais específica, personagens, na terminologia mais tradicional, ou atores, na terminologia mais recente, estruturalista. Identificando a presença de atitudes humanas comparadas aos dos animais e também seus desejos comparados a instintos animalescos e reconhecendo nelas a zoomorfia, característica do Naturalismo e Realismo e o porquê acontecem com tanta freqüência em toda a obra.

Para fazer essa análise recorremos aos seguintes suportes teóricos:" A visão romântica", de Jacó Guinsburg (in O romantismo, de Benedito Nunez.2ºed. São Paulo:Perspectiva, 1985, p ...) ; "O episódio naturalista", de Nelson Werneck Sodré (in História concisa da literatura brasileira. 6º ed. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 1976, p. 425 – 447); "Aluísio Azevedo e os principais naturalistas", de Alfredo Bosi (in História concisa da literatura brasileira, 41º. Ed. São Paulo: cutrix, 2006, p. 187 – 194); e "Realismo. Naturalismo. Parnasianismo", de Afrânio Coutinho (in A literatura no Brasil. v 4.7º ed. São Paulo, 2004, p. 4 – 12);

Este artigo se dividirá em duas seções. Na primeira, intitulada "A metamorfose da metáfora do corpo", na qual daremos enfoque no corpo dos personagens naturalistas e realistas, demonstrando também a distinção das características corporais romântica para se fazer uma análise com a metáfora do corpo realista e naturalista; na segunda, A zoomorfia no cortiço, analisaremos como se compara os personagens aos animais comparando desejos a instintos atitudes humanas a dos animais não racionais no livro, O cortiço, de Aluísio Azevedo.

A edição de O cortiço que utilizamos para a elaboração deste artigo foi da Editora Ciranda Cultural, São Paulo, 2007.

I - A METAMORFOSE DA METÁFORA DO CORPO

Iremos analisar, a seguir, como era a descrição do corpo no Romantismo, com seu subjetivismo e pudor, para se comparar as mudanças acontecidas na evolução para metáfora do corpo dos personagens realistas e naturalistas, na literatura brasileira, destacando assim suas diferenças na forma de descrição, análise, seus enfoques e o que provoca nos homens românticos e nos realistas e naturalistas.

No Romantismo, no que toca à narrativa, era comum aos romancistas quase esconder o corpo dos seus personagens, o que tem tudo a ver com a ética e moral dos autores da época, ou seja, entre as duas últimas décadas do século XVIII e os fins da primeira metade do século XIX, se verificou a grande ruptura com os padrões do gosto clássico, estendidos por meio do Neoclassicismo iluminista.

Segundo Benedito Nunes, no capítulo intitulado " visão romântica", afirma que a concepção romântica está ligado a duas categorias: A psicológica que predomina o idealismo e metafísica com sua sensibilidade conflitiva que impulsionou os sentimentos extremos e as atitudes antagônicas;e a histórica que influenciava uma visão mediante de uma forma artística, de um estilo histórico por estar em um período de transição entre a Ancien Regime e oliberalismo.

Com isso podemos perceber que o idealismo romântico, a fuga da realidade e o pudor existentes nas obras estão intimamente ligados ao contexto histórico da época, pois insatisfeitos com o que acontecia a seu redor, os escritores começaram a idealizar em suas obras tais características, passando assim a destacar os pensamentos e sentimentos dos seus personagens.

As mulheres românticas apresentam-se sempre vestidas, e a mínima aparição de partes do seu corpo normalmente cobertas desperta delírios e interesses. Rostos são bem valorizados ressaltando normalmente olhos e cabelos:

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da Jati não era doce como seu sorriso; nem baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

(p.26, cap.2, José de Alencar).

Como que banhava-se essa estátua voluptuosa, em um gás de leite e fragrância.

Seus opulentos cabelos colhidos na nuca por um diadema de opalas, borbotavam em cascatas sobre as alvas espáduas bombeadas, com uma elegante simplicidade e garbo original que a arte não pode dar, ainda que o limite, e que só a própria natureza incute.

(José de Alencar, cap.IX, p.29 ).

Outras partes da anatomia feminina como braços e perna estão sempre cobertos, graças às roupas comuns ao estilo da época, que ocultavam até mesmo os tornozelos:

Não era, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o nosso leão; eram sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que tinham deixado na pelica os contornos do pezinho desconhecido.

(José de Alencar, Pág. 14, Cap.II) .

Mas esporadicamente, estas partes se evidenciavam, tornando-se o centro das atenções e comentários:

[...] Insensivelmente, seu olhar desceu a fímbria do roupão. Sobre a almofada de veludo e entre os folhos da cambraia, apareciam as unhas rosadas de dois pezinhos divinos.

Uma onda de rubor derramou-se pelo semblante da moça, cujos lábios balbuciaram uma palavra.

( José de Alencar pág.96, Cap.XIX).

Já o Naturalismo surgiu em meio à derrocada do feudalismo, quando a burguesia e o povo se juntaram para acabar com o sistema feudal. Esta fase se caracteriza pelo despojamento e pela violenta repressão dos movimentos populares que, segundo Nelson Werneck Sodré, vai de 1848 à comuna.

Por conta de tudo que estava acontecendo que os escritores procuravam criar obras em que são meros observadores, colocados à margem ou acima dos acontecimentos:

O abandono do exame dos mais profundos motivos, que revelam as conexões causais e humanas limitadas à visão ao superficial e cotidiano da existência, conduz inevitavelmente ao subjetivismo. Os naturalistas tentam enganar esse subjetivismo pela utilização de recursos científicos.

(Nelson Werneck Sodré Cap. 9, pág.427).

O Naturalismo trabalha com a análise do real, científico, aquilo que de mais relevante acontece, poderá ser retratado na obra. Sendo assim, uma escola que analisa e mostra a realidade sem máscaras e algumas vezes repletas de exageros:

Fugindo de figurar as suas exatas dimensões e a profundidade social de seus motivos, o naturalismo decaía inevitavelmente para o excepcional, para o isolado, para o arbitrário. É por isso que acaba por fixar-se no patológico nos tipos descomedidos, no ébrio, no criminoso, na histérica, no anormal, como se criaturas tais estivessem em condições de espelhar o conjunto.

(Nelson Werneck Sodré, p. 429, cap. 9).

Ao mostrar o corpo dos personagens realistas e naturalistas, os autores demonstram o lado antes impensável na literatura, que são: A sensualidade, os gestos, os desejos, ditos de forma escancarada assumindo assim linguagem própria. Esta performance corporal é expressa com tanta intensidade, que é atribuído ao homem características animalesca, querendo assim demonstrar o lado selvagem destes, no Realismo e Naturalismo como afirma Bosi:

A redução das criaturas ao nível animal cai dentro dos códigos anti–românticos de despersonalização [...] como dá caráter absoluto ao que é efeito da iniqüidade social, o naturalista acaba fatalmente estendo a amargura da sua reflexão à própria fonte de todas as suas leis: A natureza humana a figurar-se-lhe uma selva selvaggia onde os fortes comem os fracos. Essa, a mola do cortiço. Essa, a explicação das vilanias e torpezas que "naturalmente" devem povoar a existência da gente pobre [...]

(pág.191, Alfredo Bosi, "Azevedo e os principais naturalistas").

II - A zoomorfia em cortiço

Azevedo na obra o cortiço, traz insistentemente um modo de ver seus personagens como animais irracionais, por meio de comparações das partes do corpo das pessoas ao dos animais e de atitudes animalescas:

E o mugido lúgubre daquela pobre criatura abandonada antepunha à rude agitação do cortiço uma nota lamentosa estristonha de uma vaca chamando longe, [...] assentada à soleira de sua porta, paciente e ululante como um cão que espera pelo o dono, maldizia a hora em que saíra da sua terra [...].

(P.115, Cap.XVI, O cortiço).

No escerto supracitado, há uma característica insistente em atribuir à personagem às particularidades de uma "vaca", comprovados nos seguintes termos: "Mugido lúgubre" e "vaca". Estes nos mostram que o personagem não estava apenas sofrendo por uma triste notícia, e sim sofria como uma "vaca", e que emitia sons como a mesma.

Da mesma forma, é dado as mesmas peculiaridades a outros personagens: Como a Marciana e o Jerônimo, a saber:

Marciana na frente do grande grupo e sem largar o braço da filha, que seguia como um animal puxado pela coleira, ao chegar à porta lateral da venda, berrou:

- O seu João Romão!

(P.64, cap.IX, O cortiço, grifo nosso)

Jerônimo soltou um mugido e caiu do barco, segurado os intestinos.

(P. 80, cap. X, O cortiço , grifo nosso)

Isso mostra que não é uma característica isolada de apenas um, mas sim de todos os personagens naturalistas que se mostram como verdadeiros animais selvagens e irracionais demonstrando assim suas origens animal, presente em algumas atitudes:

Também cantou. E cada verso que vinha da sua boca de mulata era um arrulhar choroso de pomba no cio.

E o Firmo bêbado de volúpia, enroscava-se todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de bichos sensuais, num desespero de luxúria que penetra até o tutano com língua finíssima de cobra.

(P. 78, cap.X, O cortiço, grifo nosso)

Nesta citação estão explícitas as ações e instintos animalescos que segundo os realistas e naturalistas estão contidos em cada um dos seus personagens.

Suas personalidades são apresentadas com exagero, é o que acontece com Firmo e Rita Baiana; que são retratados num momento de excitação, destacam-se suas ações são ditas animalescas nos seguintes termos: Miar, granir, grunir e cio, como em vez de ser um homem e mulher, fossem dois bichos no cio.

Até o próprio cortiço é tratado como uma pessoa, ou melhor, como um ser vivo, que surgi sendo alimentado pelos personagens/ animais e as casas que aumentavam em quantidade, e assim o cortiço crescia:

E aquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a fervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.

(p.15, cap.I, O cortiço).

Com isso, podemos perceber que a visão da vida naturalista está representada com veracidade, nos mostrando que a vida segundo esta escola literária é mais determinista, mais mecanicista: O homem é um animal, presa de forças fatais e superiores sem efeito ou maquiagem e impulsionado pela fisiologia em igualdade de proporções que pelo espírito ou pela razão. O naturalista observa o homem por meio do método científico, impessoal e objetivamente, como um "caso" a ser analisado.

Sendo assim, fica claro que os autores realistas e naturalistas procuram representar toda a natureza, a vida que está próxima da natureza, e o homem natural que é representado em suas visão como um outro bicho qualquer, que apesar de ser domesticado ainda guarda em suas raízes e em suas atitudes resquícios instintivos e animalescos que estão geralmente vinculados ao comportamento sexual. Mais que pode estar também ligado a tristeza, a procriação e ao trabalho como é o caso do trecho da página 115, capitulo XVI, "... que fazia ferver o sangue aos homens e metia-lhes no corpo luxúria de bode".

O exemplo supracitado retrata claramente um homem adquirindo o instinto animal de um bode em um momento que o homem está com desejos por outra personagem que por conseqüência nos causa repugnância e desprezo pelo personagem, sendo que a intenção do autor é realmente o contrário de nos mostrar o lado grotesco do ser humano de instintos animais e de atitudes exacerbada e impensadas, reduzindo-os a animais:

Da porta da taverna que dava para o cortiço iam e vinham como formigas; fazendo compras. [...] As corridas até a venda reproduziram-se, transformando-se num verminar constante de formigueiro assanhado.

(P.22, Cap. III, O cortiço)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim ao analisar os temas é quase impossível não perceber as diferenças marcantes entre o Romantismo e o Naturalismo, sendo que o primeiro é idealizado e o segundo é real. algo que acontece no cotidiano, com suas análises científicas, e que é mostrado de forma a defender uma tese, na qual surgiu por meio de várias observações do cotidiano que irá ser exposta na obra.

No cortiço, que é o nosso objeto de estudo, o ambiente retratado é o cortiço do Rio de Janeiro, e lá acontece de tudo como se fosse uma cidade. Um contexto propício para as análises naturalista com suas teses e exageros. Em nossa análise está explicito a redução do homem ao nível de animais irracionais, pois nossa tese está relacionada com os instintos humanos, o que pode ser comprovado por meio das citações supracitadas.

O autor enfoca com insistência a zoomorfia em sua obra com intuito de comprovar sua tese de que todo o homem tem seu lado selvagem. Comprovamos que a finalidade do autor é destacar que em cada ser humano há sempre seu lado animalesco, com instintos animais, mostrando assim que o homem apesar de toda tecnologia e evolução criada por ele ainda continua ligado aos seus ancestrais selvagens.

BIBLIOGRAFIA

ALENCAR, José de. A pata da gazela. São Paulo: Ática, Ed.: Fernando Paixão 1997.

ALENCAR, José de. Iracema. Rio de Janeiro. In Iracema e cinco Minutos. Rio de Janeiro: Viana & Filho, 1865. V 1.

ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ciranda cultural, V 1.

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ciranda cultural, 2007. V1.

BOSI, Alfredo. "Aluísio Azevedo e os principais naturalistas". In História Concisa da literatura brasileira. 41º ed. São Paulo: Cutrix, 2006, P.187 - 194.

COUTINHO, Afrânio. "Realismo. Naturalismo. Parnasianismo". In A literatura no Brasil. V4. 7º ed. São Paulo: 2004, P.4 – 12.

NUNEZ, Benedito. "A visão romântica", in GUINSBURG, Jacó (org). O romantismo. 4º ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, P. 51 – 74.

SODRÉ, Nelson Werneck. "O episódio naturalista". In História da literatura brasileira. 6º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 425 – 447.


Autor: suzane Reis Bonfim


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