A ANÁLISE DA OFENDIDA NOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA



I. Introdução

Madrugada do dia 23 de junho de 2007, Barra da Tijuca, teria tudo para ser apenas o começo de um dia usual para Sirlei Dias de Carvalho, brasileira, mãe, empregada doméstica. Seria um dia normal exceto pelo fato de que cinco jovens após uma festa saíram do carro em que estavam e começaram a agredir a mulher que esperava um ônibus perto de onde trabalhava. Ela estava à espera de condução para ir a uma consulta médica em Duque de Caxias, Baixada Fluminense.

As marcas de toda a agressão sofrida por Sirlei, física e moral, não obstante, não se resumiram apenas a ela. Seu filho chora sempre que a mãe vai para onde aconteceu todo o impiedoso ato de agressão contra a doméstica: “Ele não queria que eu viesse pra cá. Ficou chorando. Mas falei que se não fosse para o trabalho, não poderia reconhecer o moço que me bateu”, disse Sirlei em entrevista aos jornalistas. Sobre o filho ela afirmou que quer que “tenha uma boa instrução, não só na escola, mas em casa. [...] que ele aprenda a ser um bom ser humano, a ser uma boa pessoa.”.

Os agressores, Felippe, Julio Junqueira Ferreira, Rodrigo dos Santos Bassalo da Silva, Leonardo Pereira de Andrade e Rubens Pereira Arruda Júnior afirmaram que pensavam ser a agredida uma prostituta. Mas seria esse motivo para a menor gravidade de qualquer ato lesivo à integridade física e moral de outrem? Infelizmente, para alguns nomes do Direito, sim. É o que em artigo, Osvaldo Lucas Andrade se refere como sendo a “trilogia do retrocesso” , ao doutrina, jurisprudência e Lei convergirem dando um trato diferente a cada crime apoiando-se na análise exacerbada do comportamento da vítima.

A vítima em certos casos aparece como ainda mais culpada que o próprio agente do crime. Colocadas na balança a sensualidade da mulher e a dignidade da pessoa humana, parece que a primeira tem peso visivelmente maior. Haja vista que pelo pelos fatos, sua liberdade é duplamente agredida, a liberdade de se exteriorizar à sociedade e a liberdade de se submeter ao coito sexual apenas com quem se interesse, ademais, sua dignidade humana vem sendo pisoteada ao ser minimizada sua integridade e livre manifestação da vontade. Seria essa uma construção jurídica ou meramente uma forma de imposição de condições sociais via Direito?

II. Panorama histórico

A história mostra que a mulher sempre viveu em condições inferiores em relação ao homem, quase sempre submetida a ele economicamente, tendo sua participação política reduzida e, sobretudo socialmente, cabendo a ela subserviência ao marido e organização do lar.

Sob o prisma religioso, atendo-se ao cristianismo, convém lembrar que já na Bíblia Cristã, a mulher é colocada como submissa ao sexo masculino, mais exatamente a seu marido, que parece se confundir com seu proprietário:

“Vós, mulheres, submetei-vos a vossos maridos, como ao Senhor, pois o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o Salvador do corpo. Mas, assim como a igreja está sujeita a Cristo, também as mulheres o sejam em tudo a seus maridos.”

O tráfico de escravos foi iniciado no Brasil em 1526 e a escravatura foi abolida em 1836, e durante pouco mais de três séculos, os cativos ajudaram a extrair riquezas do Brasil e o corpo das escravas tornou-se propriedade de seus senhores, como se elas fossem animais, o mesmo se pode dizer do corpo dos escravos e dos indígenas.

Já na época da exploração da cana-de-açúcar, os senhores de engenho aprovavam tacitamente a iniciação antecipada de seus filhos na vida sexual com “negrinhas imberbes”:

“Nenhuma casa grande do tempo da escravidão quis para si a glória de conservar filhos maricas ou donzelões. O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com sua docilidade de escrava: abrindo as pernas ao primeiro desejo do senhor–moço. Desejo não, ordem” .

Tal violência nem chegava a ser considerada como agressão física e preservava as “moças de família”, ademais, era uma forma de os rapazes saírem de seu extremo tédio, já que os trabalhos braçais eram vistos com extremo desprezo pela classe abastada, conforme pondera Caio Prado Junior .

Em artigo, o antropólogo Marcel de Almeida Freitas informa que em situações como essas em que os homens estão submetidos a outros, seja econômica, social ou psicologicamente, é provável que o sadismo e o masoquismo floresçam. Destarte, explica-se porque o costume do açoite de escravos era um verdadeiro espetáculo público, cujo anúncio era feito com antecedência para que toda a sociedade pudesse apreciar esse misto de licenciosidade e crueldade evidente.

Percebe-se que a colonização brasileira por Portugal teve forte alicerce na exploração do corpo do outro, exigindo a articulação de um forte aparelho ideológico repressivo e hierarquizante. O que era tido como normal era disseminado inclusive pela igreja da época. Era a ética do controle e da dominação do outro, o que como conseqüência atinge inclusive o que vivemos na contemporaneidade, embora de forma mais suave e implícita na complexidade das relações sociais. Basta observar o tratamento que é dado à mulher, sobretudo se esta é negra e pobre. Ainda seguindo a esteira traçada por Marcel de Freitas, pode-se afirmar que a dupla moral foi e continua sendo característica da sexualidade brasileira, haja vista que os pudores existem quanto às moças brancas e de classe social elevada, o que não se pode constatar no trato que é dado às demais mulheres da sociedade.

Inseriu-se então na legislação aquilo que certa camada social pretendia que fosse aceito como verdadeiro. Apareceu assim a diferenciação de mulher honesta, pura, de mulher pública, desenvolvendo toda uma falsa percepção de diferentes níveis de dignidade da pessoa humana, partindo do ponto que a integridade de certo grupo de mulheres foi um bem jurídico mais tutelado do que a das mulheres de outro grupo.

III. A Lei e a vitimologia

O Brasil tem seu primeiro diploma penal após a independência de Portugal em 1830 com a entrada em vigor do Código Criminal do Império. Tal diploma conceituava o crime de estupro em seu artigo 222: “Ter cópula carnal por meio de violência ou ameaça com qualquer mulher honesta”, cominando ao crime pena de três a doze anos além de o agente ser obrigado a dotar a ofendida, ou seja, além de existir a pena de reclusão admitia-se o cumprimento da obrigação civil, cabendo ao agente o pagamento de valor arbitrado pelo juiz destinado à ofendida, o que se compararia à indenização por danos pessoais (moral e físico). Infere-se daí a primeira falha em nosso sistema advindo da maliciosa criação legislativa que distinguia as mulheres da alta sociedade das demais mulheres. Os fatores de poder econômico e relevância social da ofendida eram o que auxiliavam na tipificação do estupro, como se nota claramente.

O Código Penal dos Estados Unidos do Brasil datado de 11 de outubro de 1890 estabelecia diferenças entre as vítimas do crime de estupro. Em seu artigo 268, podia-se ler: "Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta. Pena de prisão cellular por um a seis annos.”. No parágrafo primeiro do supracitado dispositivo legal era cominada pena excessivamente diferenciada para o estupro de “mulher pública ou prostituta”, de seis meses a dois anos de reclusão.

É notório o preconceito e discriminação via instrumento legal contra a prostituta, sendo cominada pena muito reduzida àquele que cometesse a agressão. Ademais, a pena como um todo, seja ela dirigida ao estupro de “mulher honesta” ou ao das demais mulheres é pequena, haja vista a gravidade do crime em tela e das perpétuas e dolorosas seqüelas psicológicas que perseguem a vítima.

O atual Código Penal Brasileiro, datado de 1940, não faz diferenciação entre estupro de “mulher honesta” e “mulher pública ou prostituta”, o que havia até alteração em 2005 era a inclusão da expressão “mulher honesta” nos crimes de posse sexual mediante fraude (artigo 215) e de atentado ao pudor mediante fraude (artigo 216). As penas também tiveram uma pequena alteração tratando estes crimes de forma mais gravosa, contudo, a pena ainda não compensa as conseqüências que a vítima tem com o crime.

Contudo, se por um lado o estupro deixou de ser distinguido formalmente entre estupro contra “mulher honesta” e contra “mulher pública”, por outro, a discriminação ganhou como aliado o estudo da vitimologia que o Código consagra em seu artigo 59 ao dispor que ao concretizar a pena dentre outros quesitos, o juiz deverá analisar o comportamento da vítima. Já na exposição de motivos é possível constatar-se a tentativa de beneficiar o réu:

“Fez-se referência expressa ao comportamento da vítima erigido muitas vezes, em fator criminógeno, por constituir-se provocação ou estímulo à conduta criminosa,como em outras modalidades, o pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes.”.

A vitimologia tem como grande teórico o israelita Benjamin Mendelsohn que buscou fundamentar sua classificação dos tipos de vítimas na correlação da culpabilidade entre a vítima e o infrator, chegando até mesmo a relacionar a pena do agente à atitude da vítima. Suas classificações da vítima vão desde a vítima completamente inocente (vítima ideal), aquela que nada fez para desencadear o delito, até a vítima mais culpável que o infrator (ou unicamente culpável), ou seja, coloca-se o infrator como na verdade uma vítima de sua própria vítima, o que soa como categórica incoerência. A vítima ainda poderia ter colaborado com o acontecimento do delito por sua imprudência ou por injusta provocação .

A vitimologia faz com que a vítima seja tratada como um atrativo para o crime, ela mesma atrai o crime para si, o que é de extrema impropriedade, haja vista que ser humano nenhum, em plenas condições de sanidade mental, jamais desejaria tornar-se vítima.

O estudo do comportamento da vítima, se tratado de forma consciente e sem os exageros que têm sido muitas vezes observados, pode, porém, garantir o preceito constitucional da individualização da pena. O que não se pode admitir é a transposição de posições, levando a vítima para a posição de criminoso e o criminoso para a posição de vítima. Entende-se por vítima aquele sujeito que não incorre em culpa, destarte, tratar a vítima como criminoso é um erro inaceitável.

Ademais, nossa Constituição na égide de um Estado-Democrático de Direito consagra o princípio da isonomia e tem como objetivo a promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”.

IV. Posicionamento doutrinário

Conforme os ensinamentos de Celso Delmanto, a análise do comportamento da vítima também pode refletir-se na censurabilidade da conduta delituosa . O que não é uma inverdade, haja vista que se o delito for considerado pelo legislador ou pelo magistrado como de alta gravidade, pouco importará o comportamento da vítima, mas sim o bem jurídico tutelado. E como o usual não é atacar a liberdade sexual de filhas, esposas ou membros do grupo social no qual estão incluídos juízes e legisladores, por exemplo, analisa-se o comportamento da vítima numa forma de na maioria das vezes, beneficiar o agressor.

Ainda sobre a análise do comportamento da vítima, incluída no artigo 59 do Código Penal, Delmanto afirma que:

“Não deve ser igual a censura que recai sobre quem rouba as jóias fulgurantes que uma senhora ostenta e a responsabilidade de quem subtrai os donativos, por exemplo do Exército da Salvação. A atitude do ofendido que deixa seus valores soltos – embora não justifique o furto – pode diminuir a reprovabilidade da conduta do agente.”.

Para os doutrinadores contemporâneos Reale Júnior, Ariel Dotti, Andreucci e Sérgio Pitombo, a análise do comportamento da vítima é senão, uma inovação, pois a vítima pode com seu comportamento estimular a prática da conduta delituosa . Parcialmente correto, pois cabem ressalvas, dentre as quais, o comportamento que não passa de uma mera liberdade, como é o fato de a mulher usar roupas decotadas, comportamento que é diferente daquele que se exalta facilmente criando ambientes propícios à lesão corporal, por exemplo. É lógico que em nenhum dos casos o crime se compensa pela conduta da vítima, contudo, o comportamento da ofendida nos crimes contra a liberdade sexual deve ter uma nuance quase nula no momento da aplicação da pena. A mulher tem todo direito de se vestir como seja de sua vontade, não está ferindo direito alheio. Ademais a forma de se vestir da mulher não se dirige especificamente para determinado indivíduo da sociedade, para o agente que viria a agredi-la, ao contrário da provocação que um homem faz a outro numa mesa de bar, para o que viria lesioná-lo. Quanto à prostituta, ela não está nessa situação para ser estuprada, para ser violentada, essa é a forma que foi encontrada por ela para garantir sua subsistência e quiçá, até mesmo a de sua família. Assim sendo, a prostituta, que não deve ser considerada mulher pública, é dotada, como qualquer outro ser humano, de uma vontade própria que deve ser livre, então, cabe a ela impor aos homens o que ela quiser que seja oponível, não estará, pois, lesionando direito alheio, apenas exercendo seu direito à liberdade sexual.

Guilherme Souza Nucci indo ao extremo desprezo do sofrimento da vítima e de sua dignidade humana afirma, de forma discriminativa, que ao se analisar o comportamento da vítima não significa que o agente será eximido da pena ou que o Direito não proteja o “mundano”. Contudo, mais adiante, Nucci afirma que o crime não terá a mesma repercussão se dirigir-se à pessoa “recatada e tímida, colhida em seu recanto doméstico” e vê como “natural” a necessidade de nesse caso a pena ser exasperada e complementa: “pois a vítima não deu, de modo algum, margem ao ataque sofrido” . Infeliz, no mínimo a colocação, do doutrinador. A pessoa “mundana” ao qual se refere o autor, da mesma forma que a “pessoa recatada” não desejava ser violentada, não se ofereceu ao agressor, levando-se em conta tratar-se de uma pessoa distante das loucuras de toda sorte.

A interpretação conservadora e ultrapassada do autor é acompanhada por outros escritores da área jurídica, tal como Fernando Capez que exemplifica:

“[...] a jovem de menor (sic) pode induzir o agente de estupro ou atentado violento ao pudor pelas suas palavras, roupas e atitudes imprudentes; as prostitutas também são vítimas em potencial.” .

Seguindo à esteira traçada por esses doutrinadores, Julio Fabbrini Mirabete ensina que embora tais condutas não justifiquem a ação ilícita, elas implicam num abrandamento da pena a ser aplicada, pois se diminui a censurabilidade da conduta tipificada como crime .

Ao que tudo parece, esqueceram-se os nobres doutrinadores que acima de tudo é fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, conforme o disposto já no artigo primeiro da Carta Magna, inciso terceiro. Assim sendo, a análise do comportamento da vítima deve ser feita à luz do princípio da dignidade da pessoa humana que será o norte de qualquer reflexão jurídica.

V. Posicionamento jurisprudencial

A jurisprudência, fechando o círculo vicioso de posicionamentos retrógados, ainda leva em consideração de forma discriminadora o comportamento da vítima, achando-se no direito de classificar a vida das vítimas como recatada ou não. Exemplo recente foi o recurso especial nº. 994.409 / RS, julgado em 08 de junho deste ano de 2009 pelo Superior Tribunal de Justiça, em que o relator, ministro Nilson Naves, em seu relatório, ao reconhecer o estupro como crime hediondo justificou-se afirmando que foi comprovado o desvirginamento da menor cuja vida era recatada.

É, outrossim, oportuno que sejam transcritas algumas ementas, para se constatar o posicionamento da jurisprudência e o não isolamento do eminente ministro Nilson Naves:

“EMENTA - Nº 17876 - ESTUPRO – Não caracterização – Nos crimes sexuais, a palavra da vítima, para gozar da presunção de veracidade necessita ser verossímil, coerente e escudada no bom comportamento anterior – No caso o comportamento da vítima deixa muito a desejar – Absolvição decretada. (Relator: Celso Limongi – Apelação Criminal 100.223-3 – Candido Mota – 23.01.91)”

“EMENTA – Nº 71022 - ESTUPRO – Presunção de violência – Vítima de mau comportamento menos de 14 anos – Relações sexuais mantidas anteriormente com outros homens – Circunstâncias que elide presunção, de caráter relativo – Absolvição - Inteligência dos arts. 213 e 224, "a", do CP (Ement.) RT 557/322.”.

Pensamento igualmente infeliz foi transcrito em sentença proferida em 1999 também pelo STJ, afirmando que “A palavra da ofendida, no caso em exame, não é suficiente para gerar credibilidade. Não há certeza de ser ela moça recatada.” .

Posicionando-se de forma arcaica, os aplicadores do Direito têm deixado as vítimas ainda mais feridas. Trata-se de uma lesão à ânsia incessante das vítimas pela busca da Justiça, cujo caminho encontra como obstáculo mentes conservadoras, elitistas e discrimadoras de alguns de nossos doutos magistrados. Não lhes cabe fazer o julgamento moral da vida íntima da ofendida, ademais, por mais esdrúxulo que seja o passado da ofendida, ele não ofusca o brilho que tem sua dignidade como ser humano.

Certamente, uma moça, filha de alguém cujo nome remeta a prestígio social, mas que, porém, se porte como uma prostituta, ao ser estuprada, virá a ser considerada moça “recatada” e o agressor sentirá a mão pesada da Justiça sobre ele. O que não se constatará se a ofendida for uma doméstica, negra e moradora do subúrbio, por exemplo, pois, faltarão provas de seu passado recatado.

Contudo, existem posicionamentos sensatos, deve-se ressaltar com louvor. E como lembrou o ministro Luiz Vicente Cernicchiaro em recurso especial de número 154.857 / DF,

“Durante muito tempo, recusou-se credibilidade (ao menos plena) a pessoas recebidas com restrição na sociedade. Exemplos: escravo, estrangeiro, preso, prostituta. Esse período histórico projeta a época (ainda não totalmente superada) de o processo judicial ser expressão de classe social, econômica e política. [...] Os Direitos Humanos buscam afastar, quanto possível, as causas que a sociedade foi levada a distinguir pessoas, gerando a categoria de – excluídos – vale dizer, marginalizadas.”.

Dentre decisões comprometidas com a Justiça e a dignidade da pessoa humana convém citar as brilhantes colocações do eminente ministro Neri da Silveira, no julgamento do habeas corpus nº. 69.981-2 / SP:

“Concernente ao estupro: Claro que a mulher mesmo sendo prostituta, atual ou no passado, tem a seu favor a liberdade, a disponibilidade do corpo. Plena e exclusiva. Até a mulher casada tem, com relação ao marido. O crime em causa dirige-se à proteção da liberdade sexual. Não tem mira (como em outros crimes contra os costumes) a salvaguarda da honestidade, da honorabilidade, da inocência, até da virgindade da vítima. Atua, sim, apenas como resguardo de vontade plena e definitiva da mulher, concernente ao ato sexual em causa.”.

VI. Dignidade da pessoa humana

“A República Federativa do Brasil [...] tem como fundamentos: [...] a dignidade da pessoa humana.”, é o que se lê na Carta Magna promulgada em 1988, já na égide de um Estado Democrático de Direito.

A dignidade da pessoa humana equivale ao direito geral de personalidade, que é construído a partir dos direitos especiais da personalidade, leia-se, aspecto moral, físico e intelectual. O direito geral da personalidade defende a inviolabilidade da pessoa humana em todos os seus aspectos. É inerente a esse fundamento constitucional a necessidade de que o ser humano seja vislumbrado como um valor em si próprio e não apenas um mero caminho para que seja atingido determinado fim.

Conforme ensina Alexandre de Moraes, a dignidade da pessoa humana,

“concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e de Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas [...] ”.

A tutela da personalidade, após a segunda grande guerra mundial passou a ser fortemente associada a direitos fundamentais e invioláveis da pessoa humana, o que foi confirmado e legitimado por importantes documentos internacionais sobre Direitos humanos fundamentais. Trata-se de um tema amplo que é consagrado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), Convenção Européia dos Direitos do Homem (1950) e mais recentemente em 2000 pela Carta de Direitos Fundamentais da União Européia, dentre outros .

Tamanha é a dimensão do bem jurídico tutelado que a dignidade humana é objeto do Direito Civil, Constitucional e também do Direito Penal. Tal fundamento reconhece o valor de cada pessoa como um ser independente e preexistente inclusive ao ordenamento, dotada de direitos que lhes são inerentes e invioláveis . Luciano Mariz Maia chega a sustentar que

“A lei não institui direitos humanos, apenas estabelece mecanismos para sua garantia. Os direitos humanos, portanto, não decorrem de leis, por serem inerentes à pessoa humana.” .

Francisco Amaral, um dos juristas mais reluzentes do Direito brasileiro, ensina que já no Código de Hamurabi eram estabelecidas sanções aos que lesavam a integridade física ou moral do ser humano. No Direito grego por sua vez, em que começou a se delinear a idéia de pessoa, a proteção à personalidade partia da idéia de hybris (excesso, injustiça), assim sendo, o Direito apenas recolheu a herança deixada pelo pensamento dos sofistas e dos estóicos. Já no Direito Romano, Amaral enfatiza que havia instrumentos como a actio iniuriarium, uma forma de sancionar os que cometiam a iniuria (ato contrário ao Direito ou agressão física ou difamatória contra a pessoa), outros instrumentos eram Lex Aquilia e a Lex Cornelia, para a tutela jurídica da personalidade .

Percebe-se que a tutela dos direitos da personalidade tem um longo caminho histórico percorrido que se estende até a contemporaneidade. Conforme já salientado, nosso ordenamento jurídico é corolário ao fundamento axiolódgico da dignidade da pessoa humana, que se sintetiza no direito à integridade física, intelectual e moral. Daí resulta três princípios de suma relevância: intangibilidade da vida, respeito à dignidade física e psíquica da pessoa humana e respeito aos pressupostos mínimos de igualdade e convivência igualitária entre os homens. Mais resumidamente, trata-se de não ferir, não lesionar qualquer direito alheio extra-patrimonial, neminem laedere.

Nos crimes contra a liberdade sexual, há lesão à integridade física, no que concerne à vida biológica, e há ataque à integridade moral, ferindo a honra e liberdade da ofendida. Destarte, atentou-se contra a dignidade da pessoa humana, o ser humano deixou de ser visto como um fim em si próprio e passou a ser simplesmente um meio para obtenção de satisfação sexual. Conforme ensina Kant, "o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade [...] Só o homem não existe em função de outro e por isso pode levantar a pretensão de ser respeitado como algo que tem sentido em si mesmo” .

As decisões e posicionamentos que corroboram com a análise do comportamento da vítima de maneira a colocá-la em posição de réu em função de sua vida pessoal ou modo de se vestir, são incoerentes de forma discrepante com os direitos da personalidade sintetizados na dignidade que é inerente a qualquer ser humano. Atenta-se contra a liberdade, a disponibilidade de seu próprio corpo que cada um tem, e ao final, minimizam-se os ataques à vida biológica, ao psíquico e à honra da vítima.

A dignidade é a mesma para todos, requer o mesmo respeito, é indisponível, inalienável, ilimitada, erga omnes. Não existe ser humano que tenha dignidade maior que a de outro, há um direito uniforme à tutela dos direitos da personalidade. Ademais, a única condição para que se adquira esse direito é ser humano.

VII. Conclusão

Ao longo da história da humanidade, a mulher, sobretudo a de menor poder econômico, vem sendo colocada em posição de inferioridade ao homem, que encontrou no preenchimento da interpretação de dispositivos jurídicos com um discurso socialmente construído em seu favor sua colocação para além da justiça . Assim, Simone de Beuvaoir ensina com sabedoria que a definição de mulher é uma construção de cunho social, ao afirmar que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” .

Nosso ordenamento jurídico é prova disso. Legislação, doutrina e jurisprudência têm dado provas de que a discriminação ainda não está banida de nossa sociedade e de que o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana é criminosamente desrespeitado.

Atualmente, na égide do século XXI, as mulheres já alcançaram uma série de direitos, contudo, alguns deles ainda não atingem o plano fático, exaurindo já no plano formal, dentre eles, o da isonomia. Basta notar as colocações jurisprudências supracitadas, que põem em situação diferenciada a vítima de estupro de acordo com seu passado ou seu comportamento atual. A Carta Magna afirma que todos são iguais e que se repudia qualquer forma de discriminação, o Código Penal unificou o estupro de “mulher honesta” ao estupro de “mulher pública ou prostituta”. Contudo, certamente, pode-se afirmar que na grande maioria dos casos concretos, o tratamento dado ao que violentou uma prostituta será mais brando do que o dado ao que violentou uma moça branca de classe média, por exemplo.

É notório o preconceito que ainda existe. Mudanças já aconteceram, as prostitutas, podem, por exemplo, fazer parte da Previdência Social e, dessa forma, obter alguns benefícios como a aposentadoria, pensão, salário-maternidade e auxílio-doença, ao inscrever-se como contribuinte autônomo. Porém, o direito maior que é o da tutela a sua dignidade ainda encontra sérios obstáculos que têm de ser superados.

O mesmo se aplica às demais mulheres, que conquistaram o direito ao sufrágio, mas que não tem a liberdade de se vestir da forma como querem. Retiram-lhes o direito de dispor de seus corpos, alienando sua posse a homens que usam como argumento o “mau comportamento” da vítima, que acaba assumindo satanicamente o papel de culpada.

Vale transcrever o que em artigo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira afirmou sobre a evolução do pensamento jurídico e social:

“O julgador não pode dar as costas à evolução do pensamento jurídico e da própria sociedade sob pena de perpetuar, no mais das vezes, posições equivocadas ou incondizentes com a melhor aplicação do Direito.” .

Com propriedade, Leopoldo Louveira afirmou o que é elementar. Manter o pensamento jurídico estanque é perpetuar mazelas que a evolução do pensamento da sociedade vem buscando ultrapassar.

O brilhante Radbruch já afirmava que

“O novo direito penal não poderá vingar sem um juiz totalmente novo. Exige, portanto, uma inversão da formação criminalista. O que vale para o juiz em geral vale particularmente para o juiz penal: para meio centavo de doutrina deveria corresponder um real de conhecimento da natureza humana e da vida. Por isso a formação do futuro juiz penal não poderá ser uma formação meramente jurídica, deverá estender-se a técnica criminal, psicologia criminal, teoria carcerária, antes de tudo também experiência prática em instituições de todos os tipos. Tudo isso é necessário para o juiz penal, mas de modo algum suficiente, pois, afinal, o bom juiz penal o é de nascença. O coração bondosamente compreensivo e a mão que conduz com firmeza, que não lhe podem faltar, não lhe poderão ser dados por nenhuma formação.” .

Ademais, além da imparcialidade retrógrada dos aplicadores do Direito, as penas cominadas aos delitos contra a liberdade sexual são pequenas, haja vista as marcas que se eternizam na vida da vítima. Trata-se de um dano irreparável, por ser pessoal, que Savatier conceitua como “qualquer sofrimento humano que não é causado por perda pecuniária”, e que o nobre Gilberto Fachetti Silvestre completa com autoridade:

“De maneira que isso representaria atentado à reputação do ofendido, à sua autoridade (legítima), ao seu puder, à sua segurança e tranqüilidade, ao seu amor estético (“amor-próprio”), à integridade de sua inteligência e às suas afeições.” .

No estupro, o tamanho do bem jurídico lesado é tão grande, que nem mesmo o advento da Lei nº. 9.099 alterou a Súmula 608 do Supremo Tribunal Federal , que continua em vigor. Pois, de acordo com o posicionamento Ministro Nelson Jobim, relator do habeas corpus nº. 82.206, independentemente de a violência empregada para a efetivação do crime ser de natureza leve ou grave, o estupro com violência real é processado em ação pública incondicionada. A sociedade não aceita para si o estupro e o Direito confirma esse sentimento de repulsa a esse crime tão asqueroso.

Independentemente da forma como a moça está vestida, se comporta, ou de como foi sua vida no passado, não existe motivo para que sua liberdade de dispor de seu corpo seja limitada. Por mais mundana que seja, a mulher tem pleno e irrestrito direito de escolher com quem irá praticar os atos de sua vida privada. Retirar-lhe esse direito à liberdade é ferir sua dignidade na condição de pessoa humana. Minimizar o fato delituoso em função do modo de agir da vítima é atentar contra um fundamento constitucional. É necessário que o Estado haja proativamente para o fim de quaisquer formas em que a discriminação se exteriorize e que os legisladores, doutrinadores e magistrados ajam como se a máxima de suas ações devesse tornar-se, por suas vontades, lei universal da natureza, conforme Kant enfatiza . Assim, se se quer que sejam afastados da sociedade os crimes contra a liberdade sexual, que se aja de forma a punir de forma imparcial e rigorosa todos aqueles que insistem em atentar contra a dignidade da pessoa humana e ao bem-estar da sociedade

O tema em tela, sequer precisaria ser alvo de tão acaloradas discussões se os seres humanos tivessem acima de tudo em suas relações interpessoais a ética da vida e do amor. E recorrendo novamente aos ensinamentos kantianos, a dignidade da pessoa humana estaria preservada se as condutas humanas fossem de tal maneira que a humanidade fosse tratada como se trata a si próprio, jamais vendo o outro como um simples meio, senão, como sempre sendo um fim em sua essência .

Ademais, se na Bíblia Cristã em Efésios 5.22-24 à mulher é incumbida a submissão a seu marido, mais adiante se pode ler: “Assim, devem os maridos amar a suas próprias mulheres, como a seus próprios corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo.” , e ainda de forma mais abrangente, repetindo o princípio do quod tibi non vis fieri, alio ne feceris: “Assim como quereis que os homens vos façam, do mesmo modo lhes fazei vós também.” . As lições que o Livro Santo dos cristãos ensina, não são restritas aos adeptos daquela linha religiosa, são valores que devem ser levados em conta por qualquer ser humano que esteja inserido na sociedade para que reine entre os homens a paz e predomine de forma imperiosa o bem-estar social.

Bibliografia

A Bíblia Sagrada: Velho Testamento e Novo Testamento / versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida de acordo com os melhores textos em grego e hebraico. São Paulo: Hagnos, 2002

AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

ANDRADE, Osvaldo Lucas. A ofendida nos crimes contra a honra: uma breve genealogia de uma falsa moral (ou, de como o código de 1890 volta a ter eficácia).

BEUVAOIR, Simone de. O segundo sexo. 8ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1991.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral - Vol. 1. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

DELMANTO, Celso [ET AL]. Código Penal comentado. 6ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

FREITAS, Marcel de A. A vida afetivo-sexual colonial brasileira e as conseqüências psico-culturais.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.

LOPEZ, V. L. Montes A. Derecho Civil, Parte general.

LOUVEIRA, LEOPOLDO S. L. Possibilidade de progressão de regime e concessão de livramento condicional ao sentenciado estrangeiro. Boletim IBCCRIM. Ano 16, nº 196. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2009.

MAIA, Luciano M. Vitimologia e Direitos Humanos.

MENDELSOHN, Benjamin. Tiplogias, Centro de Difusion de la Victímologia, 2002.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal: parte geral – Vol. 1. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2000.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2006.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

PRADO Jr., Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1961.

RADBRUCH, Gustav. Introdução à ciência do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

REALE JÚNIOR, Miguel, DOTTI, René Ariel, ANDREUCCI, Ricardo Antunes e PITOMBO, Sérgio M. de Moraes. Penas e medidas de segurança no novo Código. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

SAVATIER. In “Traité de La Responsabilité Civile”, vol. II, nº. 525. Citado por Caio Mário da Silva Pereira in “Responsabilidade Civil”, pág. 54.

SILVESTRE, Gilberto Fachetti. Critérios para reparação do dano moral.

ZENO-ZENCOVICH, Vincenzo. Personalità (Diritti delia), in Digesto delle Discipline Privatistiche.
Autor: Caio Cézar Will Dias


Artigos Relacionados


AnÁlise Da Nova Lei 12.015/09 - Em RelaÇÃo A ViolaÇÃo Sexual Mediante Fraude

Mudanças Na Ortografia Da Língua Portuguesa A Partir De Janeiro 2008

A Violência Das Pegadinhas

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri

A Inadimplência E A Suspensão Do Fornecimento De Energia Elétrica

Lixo Importado / OctÁvio Guerra

‘paquetá’ E Os Seus Homônimos