Paixões Cariocas



-"Mas serão outra vez? Numa sexta-feira? Esse seu patrão não se manca, não? Eu doida para assistir A um passo da eternidade no Metro!"

-"Meu bem, é a concorrência de amanhã, temos que ganhar essa obra..."

-"Concorrência em sábado? Pois eu vou para o biriba na casa da Gláucia!"

Debaixo desse clima é que saio, depois do almoço, do apartamento alugado na Tijuca.Construído por família de portugueses, no pós-guerra. Quatro andares, dois por andar, sem pilotis – 101 e 102 no térreo, mesmo. Pé direito altíssimo, facilitando a ventilação. Muito mármore e ferro batido art – décô. Sem garagem, naturalmente. Estacionamento na própria rua, pequena ladeira próxima ao Internato São José, lá pelas bandas da Usina. Duas salas e três quartos, cômodos imensos, inclusive os de empregada. Copa-cozinha com armários Fiel, de aço – que têm como logomarca a cabeça de um simpático cão pastor alemão. Lustres de cristal S. Simon. Os portugueses moram no 202, alugam os outros, nada de vender o patrimônio. Tijuca, uma paixão...

Anos 50. Tórrida tarde de sexta-feira; dia associado à Paixão, ainda que neste incandescente dezembro. Ou às paixões: outra delas, o Centro do Rio. Salto do bonde – não poderia ser outro - 66 Tijuca - na Rua da Carioca, em frente ao Bazar Francês. Em minha mente, ecoam os anúncios que vim lendo, do Dispné-Ynhal, do Rhum Creosothado, do Lavolho, da Pasta Clin, da Cinta Elegante, do Elixir 914...O Condutor caminha com desenvoltura pelo estribo, a que se agarra com uma das mãos; na outra, um punhado de moedas, do Tostão de um centavo à de um Cruzeiro, que os mais velhos ainda chamam de "um Mil-réis"...E lá vai, envergando uma desalinhada farda azul-marinho, chacoalhando as moedas, cobrando passagens, fazendo troco e puxando as alças de lona da barra metálica que percorre todo o teto, por dentro, e aciona o grande relógio redondo que contabiliza a féria...

No compartimento envidraçado, à frente da composição, o Motorneiro, com vestimenta idêntica, aciona com habilidade as manivelas do motor e do freio, que provocam ruídos sui-generis, inimitáveis...

Considero um chope no Bar Luiz, mas prefiro andar um pouco. Desço a Assembléia, cruzo a Avenida, tomo à esquerda até o cruzamento com Sete de Setembro e Rodrigo Silva. Diante de mim, a Feira de Brinquedos – antiga Feira de Leipzig. Na vitrine, atrai-me uma miniatura de rolo compressor, importado da América; penso em adquiri-lo, fixá-lo sobre o capô de meu Consul 1952 verde-opala (ah, o velho 12-78-38...), por sobre o torpedo que o enfeita, e assim participar do corso que certamente ocorrerá em Copacabana, pela vitória do Flamengo – o Rolo Compressor - no Campeonato Carioca: o primeiro da epopéia do tri (53-54-55), bisando as glórias de 42-43-44. Mengo, mais uma paixão. Mas volto,subo novamente a Sete e entro na Masson. O vendedor já me espera, entrego-lhe um cheque do Banco da Lavoura – aquele do cofrinho metálico -, guardo no bolso interno do paletó o pequeno pacote embrulhado para presente que ele me entrega. Dobro na Gonçalves Dias; o Prêt-à-porter oferece vestidos para o reveillon; pergunto-me se não teria sido melhor ter adquirido um deles, ao invés da pequena jóia que carrego.Resisto a uma parada na Colombo, as empadinhas de camarão me tentam, mas o peixe do almoço, produzido numa pensão e levado pelo marmiteiro, ainda me pesa um pouco. À frente, na Kanitz, uma geringonça pendente do teto esparge vapores de perfume para a rua.

Enveredo pelo Largo da Carioca, miro o prédio da Exposição, olho ao acaso alguns livros à venda na Freitas Bastos e os mais recentes discos oferecidos pela Palermo: Cauby Peixoto, Ângela Maria, Ivon Curi, Carlos Galhardo, Sílvio Caldas...Mas preciso tirar o gosto do azeite Bertolli. Hesitante entre a Cavé, a Lalé, a Silvestre, a Mineira, a Bols e a Manon, decido-me pela última, onde um café expresso italiano – a grande novidade, com aquelas alavancas e o vapor saindo da máquina - me dá vontade de fumar. Atravesso o Tabuleiro da Baiana, enveredo pela Galeria Cruzeiro, a fachada em tijolos vermelhos do Hotel Avenida parece necessitar de uma limpeza. Peço na tabacaria do Bar da Brahma – o "Vermelhinho" - um maço de Continental - o azul, sem ponta; mas só há o cor-de-rosa, com ponta. Compro-o, dispensando os Petit Londrinos e Liberty Ovais que o vendedor me sugere. Fortes demais, conhecidos como arrebenta-peito.

Uma cabine pública de telefone está vazia – sorte! Cato moedas no caça-níqueis do cós da calça. Tento 38-7250. Ocupado. É a mulher combinando o biriba de hoje, imagino. Paciência! O aparelho preto, com o símbolo da CTB – um sino igual ao da Bell System americana – devolve as moedas. Tento o 52-1978, do escritório. O boy atende. Sim, há recado. É da derradeira paixão, mas ele não sabe.Ainda tenho moedas. Agora é o 38-1791. Ela atende. Tudo certo. Terei um serão comme il faut.

Decido engraxar os sapatos ali mesmo, na Galeria, sentado numa cadeira alta, enquanto o menino da Casa do Pequeno Trabalhador exerce seu ofício, batucando divertidamente com as escovas. Coisas do Rio de Janeiro...

E lá vou, Rio Branco abaixo, aspirando com sofreguidão a fumaça acre do cigarro, mirando com carinho o Café Nice, o Jockey, o Clube Naval, o Teatro Municipal, o Museu de Belas Artes, a Biblioteca Nacional, o Supremo Tribunal Federal... Penso em fazer hora nas sessões passatempo do Capitólio, ou do Cineac Trianon, este na Rua da Ajuda, mas acabo indo conferir os filmes, desde a Cinelândia até a Praça Mahatma Ghandi, do Pathé, Império, Odeon, Palácio, Plaza e Metro - Passeio.

Do Palácio Monroe, alguns Senadores já se encaminham para aquelas cercanias, juntando-se a Deputados Federais que vêm do Palácio Tiradentes, na Praça Quinze, e a Vereadores do DF, que deixam seus gabinetes na Gaiola de Ouro. Distribuem-se pela Mesbla, para compras de Natal, ou para aproveitar o ar refrigerado perfeito; ou pela Americana, para um spumoni misto – o sorvete com as três cores da Bandeira da Itália - vermelho/morango, branco/baunilha, verde/pistache; ou pelo hall do edifício Francisco Serrador, na esquina de Senador Dantas, a comprar ingressos para o próximo show de Carlos Machado, na boite Night and Day; ou pelo Amarelinho, que já fervilha, perto das esquinas de Evaristo da Veiga e 13 de Maio - aqui, os sons do Bola Preta já se insinuam.

Numa banca de jornais, leio as últimas manchetes do Correio da Manhã, do Globo, do Jornal do Brasil, do Jornal do Commercio, da Tribuna da Imprensa, do Jornal dos Sports, do Diário de Notícias, d'O Dia, d'A Noite, da Última Hora...Os pequenos jornaleiros de D. Darcy Vargas já começam a vender o vespertino Diário da Noite. Alguém a meu lado compra O Cruzeiro, Manchete, a Revista do Rádio e A Cigarra.

Atravesso a Avenida um pouco antes da esquina de Santa Luzia, em frente ao Clube Militar, cuja magnífica porta de entrada é protegida por um toldo azulado, sob o qual alguns provectos e elegantes senhores, todos de terno e gravata - Generais da reserva, por certo - conversam animadamente; penso ouvi-los mencionar algo sobre o Ministro da Guerra. Masprossigo pela Avenida e, mais adiante, na porta do edifício São Borja, nº 277, o movimento é grande: sede do PTB de Getúlio e da Rádio Copacabana, dos espíritas. No subsolo, o Dancing Avenida, o mais badalado da cidade; no térreo, à esquerda, a Casa Carlos Wehrs anuncia instrumentos e partituras musicais; à direita, o Paisano oferece a melhor comida italiana da cidade. E num dos andares mais altos... o Senadinho, onde os políticos que não fazem nada encontram as meninas que fazem de tudo. Lavo-me e penteio-me no banheiro do Paisano – o calor é brutal. Um chope é bem-vindo.

Mas o tempo passa, o Longines em meu pulso é implacável. Entro, por fim, no nº 311 - o edifício Brasília, último da Avenida, em frente ao Obelisco. Sou o único a subir, a maioria sai para o fim-de-semana. Elevador moderno, com ascensorista e intercomunicador. Da cobertura, de um sigiloso rendez-vous, miro a Guanabara. Começo pelo Calabouço, prossigo pela Beira - Mar, tentando descobrir como teria sido a Praia de Santa Luzia. Nada de aterro, ainda. Uns braços macios me enredam, um cheiro de Arpège enche o ambiente, do rádio vem a voz dos Cariocas de Ismael Neto, cantando a Valsa de uma Cidade, dele e de Antonio Maria; e logo a seguir, Copacabana, de Braguinha e Alberto Ribeiro, com Dick Farney.

A namorada me traz um uísque President, em copo alto com as marcas "for men" e "for ladies", mais um bastonete de vidro para mexer, adornado por um passarinho de porcelana. O tomara-que-caia realça o colo desnudo e bronzeado. Acendo dois cigarros à uma, passo-lhe um deles. Tragamos e expiramos profunda e lentamente. A fumaça nos envolve, trazendo certo misticismo. Ela se debruça na janela. Aproximo-me por trás e suavemente cinjo seu pescoço com o cordão de ouro que traz o pingente de seu signo – Sagitário. Ela se volta para mim, olhos semicerrados, as pontas dos dedos tocando de leve o presente. Abraço-a. Escurece, ligam-se os repuxos da Praça Paris, coloridos, em meio aos fícus recortados em formas de animais. A Light & Power começa a acender o Rio. Ao longe, o Pão-de-Açúcar monta guarda à Baía de Guanabara. Brilham o relógio azul da Mesbla e o luminoso animado da água mineral Salutaris. Visão paradisíaca, aguçada pelas longas unhas vermelhas que me roçam a nuca, enquanto me puxam para um terno beijo, amalgamando, num indescritível êxtase, todas as minhas paixões cariocas.


Autor: Gil Ferreira


Artigos Relacionados


O Cego Do Cajú

Pensamenteando...

O Salmo 23 Explicitado

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri

"papo De Jornalista" - José Neto Pandorgga

Resumo Histórico Sobre Os Médicos Sem Fronteiras

O Ciclo Do Nitrogênio E A Camada De Ozônio