A Volta Por Baixo



Dentro da espaçonave, Umberto apertava os botões apressadamente, e via a perda de controle com olhos de desespero. A Intergalaxy 2000 já vinha apresentando defeitos e falhas há algum tempo, mas desta vez, Umberto sentiu foi a sua respiração falhar: a nave estava caindo na terra.

E o maestro anuncia: - Que venha o pior!

O espetáculo no circo começava com o Palhaço Orquídea, que apanhava risos sem graça com uma brincadeira sem graça. Depois seguia o "Elefante Não-Falante", e o "Cão cadastrado", que em partes animavam as pessoas. Mas no meio de tantas risadas, sorrisos – e algumas decepções – esperavam é pelo show da bailarina.

Anastácia, era uma vez Anastácia. Uma menina doce, uma mulher amarga, e um ser humano insípido. E insípida mesmo. Morena com olhos negros, sem gosto algum. Atrevo-me a dizer que ela não chamava a atenção, por Deus, nem pintada de onça. Ela tinha 27 anos, mas não viveu nem um sequer. Sobrevivia. Suportava.

Sua apresentação ia logo começar, quando de repente em seu "camarim" ouve passos e o barulho do botão da luz.

- Anastácia! Venha, Rainha Relógio, sua apresentação vai começar! – exclamava o maestro.

Gritou até encontrar, ou melhor, não encontrar Anastácia. O maestro não sabia se ele abria primeiro os olhos, a boca ou o coração na hora do susto; não havia ninguém lá! Havia ela fugido? Ou alguém a raptou? Será que se permitiu morrer? Não tinha respostas, apenas sabia que a tensão ia subindo. Nada encontrou.

Sentada, fugida, choramingando. Este não foi o momento mais triste da vida de Anastácia, mas talvez ela nunca tenha se sentido tão perdida, mesmo sabendo inteiramente bem o caminho. Estagnada num poço de ilusões, com progresso estático em sua vida.

– Não sei de onde veio minha coragem para fugir, mas ela ainda está aqui, e me diz que tudo vai ficar bem. – dizia calmamente a Rainha Relógio.

Rainha Relógio? Rainha Relógio era seu nome artístico, por despertar calmamente nas pessoas seus sentimentos mais escondidos, ao vê-la dançar com pernas presas ao chão, ao mesmo tempo em que se mexia sem parar.

Anastácia correu, correu, até achar um arbusto para se esconder. Não sabia bem de que ou de quem se escondia, mas precisava se manter distante, sem mais. Talvez fosse do próprio medo. Na tentativa de se encontrar, por caminhos jamais conseguidos. E próximo a este arbusto, uma sombra se aproxima:

- Que o Senhor me proteja! – sussurrava a moça para si mesma, aflita por pensar que poderia ser o maestro.

A adrenalina, para a ciência, é um hormônio liberado por glândulas supra-renais, na hora do susto. Mas o susto de Anastácia não era de um luxo tão grande, que nos seus rins só existia a sensação de ácido sulfúrico causando lágrimas.

A sombra se aproximava, e Anastácia sentia-se insegura. De repente, avista um brilho. Uma coisa brilhante vinha se mexendo, indo para sua direção. Ela não correu, continuou parada ali, esperando a coisa ficar mais nítida para seus olhos. Era um corpo humano, pelo menos isso ficou claro.

E Anastácia se aproximou da "coisa", e viu uma roupa de astronauta. Não sentiu mais medo, apenas curiosidade.

- Como é seu nome? De onde tu vens? Que fazes aqui? Por quem você está procurando? – questionava a moça sem parar.

- Meu nome é Umberto. Venho do espaço e minha nave caiu... – antes que ele pudesse continuar, Anastácia continuou o interrogatório: - Você quer sentar? Quer companhia? Tire este capacete! De onde vens mesmo?

- Venho do espaço. Minha nave caiu absurdamente na terra, aqui por perto. Preciso de um telefone, de ajuda, para me contactar com a NASA!

- Telefone? NASA? Estamos em Ashkhabad, Turcomenistão! Não há nada que te faça manter contato com os States querido. A única coisa que você pode fazer por aqui é falar com o maestro do circo que eu trabalho, mas fugi de lá há alguns minutos, e ele deve estar altamente furioso comigo. Mas se quiser, posso lhe mostrar aonde fica, e você vai lá, sozinho.

- Tudo bem, leve-me até lá. Talvez o tal maestro dê um jeito.

E foram andando, lado a lado. Anastácia não parava de olhar para Umberto. Cada vez em que ela se perdia em seus pensamentos, era porque estava pensando nele. Ela via nos olhos azuis dele a aflição, e também segurança. Os cabelos claros e raspados dele faziam ela pensar, em como a beleza é fútil ao lado dos sentimentos que surgem em meio à solidão.

Espere um momento. Se ele é norte-americano, e ela uma "turcomana sem cultura", como se entendiam falando línguas diferentes? Não espere tanto!

Pois bem, Anastácia levou o astronauta esquisito até perto da entrada do circo. Quando ela ia se despedir, acenando a mão e estendendo-a até ele, Umberto segurou a mão dela e teve um insight:

- Quem acreditará em mim, aparecido do nada com esta roupa estranha?

- É verdade, astronauta fantasma – disse ela morrendo de rir.

Após o sarcasmo dela, os olhos dele continuaram fitando sua mão, que ainda não havia soltado:

- Mas e você, por que fugiu?

A moça respirou bem fundo e sorriu.

- Pra você que vê tudo de longe, a Terra parece bonita.

- Mas tenho meus deveres como humano, e minha promessa de astronauta: "Se me perder, começar a procurar por mim mesmo".

Ela continuou sorrindo, e ele ia perdendo a esperança.

- Espero que percebam minha falta, tudo o que perdi. Mas que maldita vida.

Continuaram conversando por muito tempo, tentando fazer daquele dia um conto de verão sem fim. Falaram da vida, da morte, dos amores, das decepções, do emprego, e da falta de emprego. Ele não queria falar das dores, ela perguntava demais. Ela arriscou que Umberto tivesse uns 22 anos, ele arriscou que ela tivesse vergonha de perguntar. Onde acaba esse conto de uma história sem fim?

Bem, depois de uma longa conversa, Anastácia quase gritou a quase óbvia ideia:

- Vamos ao circo. Lá você busca ajuda, eu explico quem você é e me explico por ter ficado tanto tempo fora. Mais do que opróbrio ele não pode nos causar. O maestro é bom, o maestro é bom. – e repetiu essa última frase nove vezes, convicta de uma coisa da qual não tinha conhecimento algum.

Ela olhava pra ele, e não sabia muito bem como transpor o sentimento tanto de novidade, como de estranheza. Anastácia ficava confusa com a presença do rapaz, mas a presença também a tirava da solidão. E essa presença oculta dele, fez ela ter coragem de voltar no circo. Isto me prontifica a dizer, que, ou será uma bela amizade ou um romance dos mais enigmáticos. Mas não foi nada disso.

Voltaram para o circo, e durante a apresentação da Mulher Barbatana, o maestro abriu os olhos do tamanho da lua e fez com que toda a banda desafinasse completamente.

- Anastácia, você está louca? - Gritaram todos, pensando o tempo que o fizeram perder tanto procurando ela, tanto deixando o público frustrado.

Correram em volta de Anastácia e a questionaram de todas as formas possíveis, chegando a machucá-la. O público deixava o circo com medo e curiosidade. Mas entra Umberto em ação.

- Parem por aí, bando de usurpadores dessa pobre moça, vocês não veem nos olhos dela, a qual situação ela se encontra?

- E quem é você? Com essa roupa de festa a fantasia para crianças - Perguntou o maestro furioso achando tempo até para escárnio.

- Acabei encontrando essa menina, e ela me disse que aqui eu poderia pedir... - Nem deu tempo de terminar a frase, o maestro já tinha virado as costas, e atingiu Anastácia com seu olhar sombrio. A prenderam em 4 pessoas e levaram-na para o palco.

Umberto saiu correndo atrás deles, mas o palhaço o atingiu com um chute, que não conseguiu suportar, por estar muito tempo sem comer. O palhaço o amarra em uma cadeira, e todas as esperanças que ele já teve em sua vida começam a perder o sentido.

Pode parecer estranho agora, depois de sentimentos tão comuns apresentados aqui, que o ódio apareça nas pessoas que deveriam dar lições de amor e felicidade. Mas a vida é assim, meus olhos incolores conseguem ver.

O porquê de tanta estranheza está escondido dentro da biografia de Anastácia, ou Sophia McPherson.

Janine e Peter McPherson caminhavam sobre uma movimentada rua de Sioux Falls, no início de janeiro. Passando por uma loja de artigos para banheiro, o lado capitalista de Peter o fez parar para ver a vitrine.

- Janine, venha ver! Que incrível, banheiras com 50% de desconto, venha Jan!

- Espere querido, deixe-me encostar o carrinho do bebê aqui. – disse Janine com seu jeito doce e desajeitado, enquanto deixava Sophia praticamente sozinha.

Por uma assombrada concidência, um gordo senhor, com semblante frustrado, passava procurando por novas atrações para seu circo – e para sua vida. Indo juntar seu chapéu caído do chão, viu a linda Sophia ali.

Não vou gastar palavras contando como foi essa tragédia. O que posso dizer é que, uma companhia aérea do país lucrava ali uma passagem para o Turcomenistão – um adulto e um acompanhante de colo.

Mas, voltando para o palco, a Rainha Relógio muito linda, mesmo borrada de tanto chorar, retira do chão uma lâmina e corta o pescoço do maestro, causando a ele uma morte "justa", por todos os anos que ele a fizera sofrer.

Umberto conseguiu escapar, e apareceu no meio do palco. Tarde demais. Vira Anastácia jogada no chão, com sangue entre o tórax. Proferiu berros, e um choro ensurdecedor sem nem saber o porquê desse sentimento de uma ou duas horas. Era o amor.

O amor em seu ideal platônico, não tem como base um interesse; seja ele financeiro, sexual, etc. Para Platão, a definição de amor é o que chamamos hoje de admiração. Você ama uma pessoa por seu interior, não importando se ela está ou não ciente da situação. É o mais veloz dos amores, podendo surgir em minutos; mas é o menos fugaz, eu diria.

Mas talvez Platão não o entenderia agora. Ele chorava. Chorava feito louco. Chorava feito uma criança prestes a entrar em seu primeiro dia na escola. Chorava como se não houvesse amor à sua própria vida. Chorava, por não ter cumprido sua promessa de astronauta. Chorava por não ter conseguido responder sobre as questões a que era submetido, ele nem sabia de quem vinha a pergunta. Choro. Adrenalina. Desespero. E a esperança?

- Mataram Anastácia! Meu Deus que está no céu! O que eu fiz? Meu Deus que está no céu! – gritava assim o astronauta, juntando religião com necessidade, o que é comum.

Mas Anastácia coitada, conseguiu ainda ter um último momento, momento que pareceu durar horas, ficou olhando fixamente os olhos claros de Umberto e disse as últimas frases de sua vida.

- Fuja daqui - disse ela já enfraquecida.

- Eu me encantei por você, como há anos não acontecia comigo – disse o astronauta, ainda choramingando.– Que diabos, não morra! Eu amo você!

Anastácia apenas sorriu, e fechou os olhos de uma forma como se tivesse fechando um livro que se gostava muito de ler, calmamente e com remorsos.

A polícia chegou 2 minutos depois, tornando Umberto o principal suspeito pelos dois homicídios, sendo assim preso e deportado, e nunca mais visto naquela cidadezinha.

Essas dores, como as que eles sentiram, resultadas de corações partidos, são muito familiares a todos. Mas uma dor nunca se reverberou com tamanha força como aqui, em mim. A dor de ter que aceitar essa realidade, sem distorcê-la, sem tentativas de final feliz. A dor de não querer aceitar isso. E não aceitar a realidade por ela parecer injusta. Você já parou para pensar, em quantas vezes é injusto com sua própria realidade?

Mas não falo dessas dores. Falo da dor que não é resultado de nada, que ninguém nunca viu, em sua forma mais pura e sensata. O ser humano não se permite cair tanto.

Uma dor inédita, choro, desesperança, amor, traição, roubo, desespero... Você já não viu isso tudo antes? Mas, talvez esta não seja uma estória sobre nossas vidas.


Autor: Maria Elisa Conninck


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