A IDÉIA DE DEUS EM DESCARTES E HUME - UMA TENTATIVA DE COMPARAÇÃO



René Descartes (ou Renato Cartesius, como ele assinava, em latim) nasceu em La Haye, Tourenne, em 1596. Sendo de família nobre, foi enviando para um colégio jesuíta em La Flèche, uma das mais célebres escolas da época. Recebendo a melhor formação filosófica possível dentro das bases escolástica e humanista, com abertura também para o estudo das descobertas científicas da época e da matemática, nem por isso Descartes deixou de se sentir insatisfeito, pois achava a orientação tradicionalista da escola em gritante contraste prático com a visão de mundo que surgia do desenvolvimento científico (especialmente em Física e Astronomia) que pipocava em toda parte. O que mais o incomodava era a ausência de uma metodologia que abraçasse as idéias e as harmonizasse com uma práxis que conduzissem o estudioso numa forma que lhe possibilitasse guiar-se na "busca da verdade". O ensino de filosofia, em La Flèche, que era ministrado tendo por modelo a escolástica medieval, que levava o espírito dos estudantes para o passado, freqüentemente deixando-o lá. O resultado era uma falta de preparo e de adaptação para os problemas da época. Isto levou Descartes a um incômodo impasse. Para ele o estudo intensivo de uma visão de mundo já ultrapassada seria como viajar. "Mas quando dedicamos tempo demais a viajar, acabamos nos tornando estrangeiros em nosso próprio país, de modo que aquele que é por demais curioso das coisas do passado, só valorizando o que já foi, na maioria das vezes torna-se muito ignorante das coisas presentes" (Descartes). E o "presente", na época de Descartes, era o do desenvolvimento do empirismo, da técnica da fabricação de relógios e outros instrumentos, do desenvolvimento da mecânica, do questionamento do poder clerical, do comércio, do florescimento do capitalismo. Mais do que tudo, era a época de um novo alvorecer: a época da Revolução Científica, cujos principais expoentes até então foram Nicolau Copérnico, Johannes Kepler e Galileu-Galilei.

A influência destes na obra de Descartes é visível. Depois de ter obtido o bacharelado em Direito, pela universidade de Poitiers, Descartes sentiu-se ainda mais confuso e decide se dedicar às armas e alista-se, em 1618, nas tropas de Maurício de Nassau (o nosso conhecido que governou Pernambuco durante a ocupação holandesa na região Nordeste), que na ocasião combatia contra os espanhóis pela liberdade da Holanda. Por esta época, conhece um jovem físico e matemático, Isaac Beeckman, que o estimulou a estudar física. Aos 23 anos de idade, Descartes estava em Ulma, ao lado das tropas de Maximiliano da Baviera, quando, entre 10 e 11 de novembro de 1619, ele relata ter tido uma "revelação" ou iluminação intelectual, que iria marcar toda a sua produção a partir de então. Numa noite, após horas de reflexão sobre todo o conhecimento que havia adquirido até aquele dia, ele caiu numa espécie de transe sonambúlico e, então, teve um lampejo súbito onde via, ou melhor, percebia "os alicerces de uma ciência maravilhosa" que prometia ser um método para a unificação de todo o saber e que desenvolveria em sua produção, tendo sido cristalizada, em parte, em seu clássico "O Discurso do Método". A visão de Descartes despertou nele a crença na certeza do conhecimento científico por meio da matemática.

A certeza cartesiana é matemática. Descartes acreditava, partindo de Galileu, que a chave para a compreensão do universo era a sua estrutura matemática. Seu método, pois, consistia em subdividir qualquer problema a seus níveis mínimos, separando as peças que constituem o todo, reduzindo tudo até seus componentes fundamentais para, a partir desse nível, se perceber suas relações.

A obra mais famosa de Descartes, Discurso do Método, além de uma sumária exposição do método, ou das principais regras do método. Esse discurso está dividido em seis partes. Na primeira, encontrar-se-ão diversas considerações atinentes às ciências. Na segunda, as principais regras do método. Na terceira, algumas das regras da Moral que tirou desse método. Na quarta, as razões pelas quais prova a existência de Deus e da alma humana, que são o fundamento de sua metafísica. Na quinta, a ordem das questões de física que investigou, e, particularmente, a explicação do movimento do coração e algumas outras dificuldades que concernem à Medicina, e depois, também a diferença que há entre nossa alma e a dos animais. E, na última, que coisas crê necessárias para ir mais adiante do que foi na pesquisa da natureza e que razões o levaram a escrever.

Na Quarta parte do discurso, que é um resumo das Meditações Metafísicas, Descartes pretende provar a existência de Deus e da alma humana, estabelecendo, com essas provas, os fundamentos de sua metafísica. No primeiro parágrafo desse texto, o filósofo nos diz o seguinte: "Julguei necessário fazer o contrário (do que fiz em relação a moral) e rejeitar, como absolutamente falso, tudo o que pudesse ser objeto da menor dúvida, a fim de verificar se, depois disso, não me restava, em minha certeza, alguma coisa totalmente indubitável" Observa em seguida, que os sentidos nos enganam e nos fazem perceber coisas, não como realmente são, mas como nos parecem ser.

Mas, diz então Descartes, "ao pensar que tudo era falso, era necessário que, eu que pensava, fosse alguma coisa; e observando que essa verdade: Penso, logo existo era tão firme e tão certa, que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de abalá-la, julguei que poderia recebê-la como o primeiro princípio da filosofia que eu procurava".

Descartes entendeu, assim, que era "uma substância cuja essência, ou natureza, consiste em pensar" e que "para ser, não precisa de lugar algum, nem depende de coisa alguma material". Em conseqüência, o eu, a alma, que permite ao filósofo ser o que é, um pensador, é inteiramente distinta do corpo, cujo conhecimento é mais fácil que o do corpo, pois mesmo que deixasse de existir, a alma não deixaria de ser o que é.

Conclui, então, que, assim como o mais perfeito não pode ser conseqüência do menos perfeito, e, nada poder provir, tal idéia, do ser perfeito, ou da perfeição do ser, só pode ter sido posta em nós por uma natureza mais perfeita do que a nossa, e que inclui todas as perfeições, quer dizer, Deus. Em conseqüência, conclui: "...é para mim tão certo que Deus, que é esse ser perfeito, é ou existe, quão certa poderia ser qualquer demonstração da geometria."

A regra, de acordo com a qual as coisas concebidas clara e distintamente são todas verdadeiras, só pode ser garantida pela existência de Deus, ser perfeito, do qual recebemos tudo o que se acha em nós.

A concepção de mundo e de homem de Descartes se baseia na divisão da natureza em dois domínios opostos: o da mente ou espírito (res cogitans), a "coisa pensante", e o da matéria (res extensa), a "coisa extensa". Mente e matéria seriam criações de Deus, partida e ponto de referência comum a estas duas realidades. Para Descartes, embora muitos adeptos do racionalismo tentem passar por cima deste ponto, a existência de Deus era essencial à sua filosofia científica, embora seus seguidores de séculos posteriores fizessem de tudo para omitir qualquer referência explícita a Deus, mas mantendo a divisão cartesiana entre as duas realidades: as ciências humanas englobadas na res cogitans e as naturais na res extensa.

David Hume nasceu na Escócia, em Edimburgo em 1711. Hume pertencia a uma família abastada. Fez bons estudos no colégio de Edimburgo - um dos melhores da Escócia, em seguida transformado em universidade -, cujo professor de "filosofia", isto é, de física e ciências naturais, Stewart, era um cientista discípulo de Newton. O jovem Hume, que sonha tornar-se homem de letras e filósofo célebre, rapidamente renuncia aos estudos jurídicos e comerciais, passa alguns anos na França, notadamente em La Flèche, onde compõe, aos vinte e três anos, seu Tratado da Natureza Humana, editado em Londres, em 1739. A obra não foi bem aceita. Esse fracasso deu a Hume a idéia de escrever livros curtos, brilhantes, acessíveis ao público mundano. Seus Ensaios Morais e Políticos (1742) conhecem vivo sucesso. Hume se esforça por simplificar e vulgarizar a filosofia de seu tratado e publica então os Ensaios Filosóficos sobre o Entendimento Humano (1748), cujo título definitivo surgirá em edição seguinte (1758): Investigação sobre o Entendimento Humano. A obra obtém sucesso, mas não deixa de inquietar os cristãos, e Hume vê lhe recusarem uma cadeira de filosofia na Universidade de Glasgow. Ele acabará por fazer uma bela carreira na diplomacia. De 1763 a 1765 ele é secretário da Embaixada em Paris e festejado no mundo dos filósofos. Em 1766 ele hospeda Rosseau na Inglaterra, indispondo-se com ele em seguida. Em 1768, ele é Secretário de Estado em Londres. Nesse meio tempo, publicou uma Investigação sobre os Princípios Morais (1751), uma volumosa História da Inglaterra (1754-1759) e uma História Natural da Religião (1757). Somente após sua morte (1776) é que foram publicados, em 1779, seus Diálogos sobre a Religião Natural.

Grande parte dos teólogos e filósofos dos séculos XVII e XIII afirmavam - ecoando São Tomás de Aquino - que há somente duas maneiras de se justificar doutrinas religiosas ou posições teológicas: através de um apelo à razão humana ou através de um apelo à revelação (isto é, basicamente, um apelo à Bíblia). John Locke, por exemplo afirmou isto, defendendo sua posição no livro IV de Um Ensaio acerca do Entendimento Humano. Estas duas maneiras, porém, se reduziam, basicamente, a uma só, a primeira, para grande parte dos filósofos e teólogos deste período pela seguinte razão: se alguém procura justificar uma doutrina religiosa ou uma posição teológica através de um apelo o fato de ela ver sido revelada por Deus na Bíblia, pode se muito bem redargüir afirmando não haver razões para aceitar a Bíblia como revelação divina. Para que o apelo à Bíblia possa ser persuasivo, é necessário que seja acompanhado de argumentação que mostre ser a Bíblia realmente revelação divina ("a palavra de Deus", como se costuma dizer).

A resposta geralmente dada no período em questão, a este tipo de problema, afirmava que o caráter revelacional da Bíblia, sua origem divina, era comprovada ("garantindo", dizia-se) pelos inúmeros que supostamente acompanharam estas revelações. Já São Tomás quatro séculos antes afirmava que "a autoridade da escritura é divinamente confirmada por milagres" (Summa Contra Gentiles, I: 9: 2), e John Locke reitera: "Os santos de antigamente ao receberem revelações divinas, ... receberam também sinais externos que tinham o propósito de convencê-los de que Deus era o autor destas revelações" (Ensaio, IV; 19: 15). Na ausência destes, sinais nada poderia servir para distinguir revelações divinas de fantasias alucinatórias. Obviamente, Locke está pressupondo que a crença na ocorrência desses milagres seja racionalmente justificável. "A razão", afirma ele "deve ser nosso juiz supremo e nosso guia em tudo" (Ensaio, IV: 19: 14) - , pois de outra forma o argumento não seria muito convincente.

Foi com este cenário em vista que Hume escreveu sua obra de crítica à religião. Sistematizando os resultados desta crítica teremos:

1) Em primeiro lugar Hume apresentou um argumento objetivamente mostrar a irracionalidade de crença na ocorrência de milagres, eliminando assim a suposta justificação racional para aceitação da Bíblia como revelação divina;

2) Em segundo lugar Hume procurou mostrar que os tradicionais argumentos para existência de Deus (o argumento ontológico, o cosmológico, e o teológico, ou do desígnio) eram inconvincentes e que, portanto, não existia justificação lógica e racional para se acreditar que Deus - O Deus do cristianismo tradicional - existisse: a crença em sua existência seria, portanto, gratuita. É interessante notar que nem Locke nem outros defensores do cristianismo deste período, atentaram à natureza circular desta argumentação: a ocorrência de milagres atesta, segundo eles, a genuinidade da Bíblia como revelação divina; com tudo só sabemos da ocorrência desses milagres através de relatos encontrados na própria Bíblia!

3) Em terceiro lugar ao discutir o problema do mal Hume sugeriu que a existência do sofrimento no mundo é incompatível com a existência do Deus do cristianismo tradicional, isto é, com a existência de um ser que tudo sabe e pode e que também é infinitamente bom. Se este argumento for aceito a crença em Deus deixa de ser simplesmente gratuita e torna-se irracional a menos que se negue a existência do mal e do sofrimento do mundo. Assim sendo, após tentar destruir os argumentos para existência de Deus, Hume apresenta um argumento para não existência desse mesmo Deus.

O problema do mal, como ele é colocado no capítulo X dos Diálogos, se apresenta, de forma sistematizada, da seguinte maneira:

(1) Deus é um ser onipotente, onisciente infinitamente bom;

(2) Um ser onipotente e onisciente pode eliminar todo mal e sofrimento do mundo, e sabe como fazê-lo;

(3) Um ser infinitamente bom deseja eliminar todo o mal e sofrimento do mundo;

(4) Se Deus existe, não há mal e sofrimento no mundo;

(5) No mundo há mal e sofrimento;

(6) Conseqüentemente Deus não existe.

Qual o significado desta crítica à religião para a história do pensamento cristão? Hume é a primeira figura de destaque na história intelectual moderna a fazer um ataque devastador à religião e à teologia. Embora mesmo alguns teólogos (como, por exemplo, William de Ockham e Martinho Lutero) houvessem, antes de Hume, afirmado que doutrinas religiosas e posições teológicas não podem ser justificadas racionalmente, e embora os Deístas do século XVIII houvessem rejeitado a racionalidade da crença na revelação, nunca uma figura de destaque na história intelectual moderna havia, sistematicamente rejeitado ambas as maneiras tradicionais de se justificar doutrinas e posições religiosas, razão e revelação, concluindo não só que inexistem razões para se crer nas principais doutrinas do cristianismo mas afirmando também existirem razões para não se crer nelas. Se alguém discorda da posição de Hume, esta pessoa precisa refutar suas críticas, como teólogos católicos romanos têm tentado fazer, ou então, como teólogos protestantes liberais têm feito, procurar uma nova maneira de se encarar a religião tirando a ênfase de seu aspecto cognitivo e a colocando em seu aspecto moral ou experiencial. Por causa disto, a crítica de Hume à religião se coloca em uma das mais importantes marcos na história do pensamento moderno.


BIBLIOGRAFIA

1) SOUZA, Hélio José dos Santos. HUME E A CRÍTICA À RELIGIÃO NATURAL, Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 4, n. 2, 2004,

2) HUME, D. Investigação acerca do entendimento humano. In: Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1989.

3) DESCARTES, René. Discurso do Método. In: Os Pensadores. Nova Cultural. RJ, 1996.

4) GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia. Cia. das Letras. São Paulo, 1998


Autor: Ana Carolina Dias Espelho


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