Corpo E Mente: Passado Versus Presente



Corpo e Mente: passado versus presente
Por Ricardo Corrêa Peixoto

“O intelecto humano não é luz pura, pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde se poder gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreria a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e efêmeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as fórmulas pelas quais o sentimento, quase sempre imperceptivelmente, se insinua e afeta o intelecto.” (Francis Bacon)[1]


Ao nos depararmos com as superposições ou justaposições de diferentes tempos históricos e suas mentalidades adjacentes, por vezes antinômicas pela busca de tornar cognoscíveis os inúmeros contra-sensos. Partindo da história das mentalidades ou ainda de uma produção historiográfica, cujo cerne está no inorgânico, onde o passado é negado aos olhos mas é corroborado pelos corações e mentes, a partir daí empreende-se uma espécie de arqueologia da mente humana, que se apresenta como uma dimensão imensurável e, por conseguinte, engendra o perigo iminente de anticientificidade, o que pode condenar ou não essa historiografia que se baseia em fontes psíquicas, imateriais e, porque não, metafísicas.
A partir dessas premissas, nos deparamos ironicamente com o homem em toda a sua excentricidade, inquietação, ávido por encontrar sentido para sua vida e/ou existência aparentemente sem propósito, apegando-se as suas verdades efêmeras, concepções paradigmáticas que ousam por um certo tempo explicar o mundo, teocentrismo, racionalismo, holismo, religião, ciência, enfim, todas essas mudanças bem mais parece uma corrida desesperada por algo convincente. Ensandecidos dentro de mundo repleto de regras, exigências, símbolos, arquétipos, ou seja, construtos artificializados e mutáveis, mas que respondem pelos substratos que alicerçam nossa frágil sociedade e todo seu conglomerado de instituições, que numa batalha inexcedível busca exorcizar seus demônios que a história mostra sem nenhum sarcasmo que eles atendem pelo nome de homo sapiens.
Por isso mesmo, somos levados a estabelecer uma série de relações e preencher inúmeros requisitos para estar em consonância com os ditames criados por nós mesmos, a fim de ser aceito, de estar apto, trazendo assim uma sustentabilidade e exeqüibilidade para o sistema. Como diria Arthur Schopenhauer, “a nossa vida são como imagens em um mosaico tosco”. Assistimos as leis serem mudadas, as paisagens, a arquitetura, via de regra, achamos grotesco o antigo, os cortes de cabelo, as roupas, os sapatos, estilos musicais, os padrões estéticos, esses últimos que de maneira precípua vem gerando toda sorte de doenças psicossomáticas, como bulimia, anorexia e toda sorte de crises existenciais que grosso modo, não passam de esquizofrenias sociais compelidas pela modernidade e seus rígidos padrões de beleza, erigindo por assim dizer, uma segregação e/ou racismo estético.
Por outro lado, outras coisas permanecem perenes, quase intactas em nossas idiossincrasias e, por conseguinte, julgamentos, nossos limites do aceitável, entretanto, ainda achamos inconcebíveis inúmeros delitos e os punimos, seja pelo encarceramento e/ou alienação, alijamento do convívio social ou mesmo pela pena de morte, que seria a recusa definitiva da sociedade ao direito a vida do infrator, por entender que não há retratação, enfim, atos como assassinato, estupro, seqüestro, pedofilia, tráfico de drogas, são dogmaticamente inaceitáveis, entretanto, outros delitos começam a ser descriminalizados, abrandados a partir de novas racionalizações e pressupostos, que mui lentamente vão sendo maturados na idiossincrasia social, como é o caso do usuário de drogas que no Brasil já recebe punições mais tênues, por hoje entendermos que se trata muito mais de uma patologia do que de uma simples sublevação da lei, já em outros países como a Holanda o uso de drogas é permitido e regulamentado, o que evidencia a inexistência de homogeneidade moral no mundo, denunciando nossa incapacidade de entender o homem que metamorfoseia-se no tempo e no espaço.

Parece eternamente improvável que a humanidade de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda por uns breves momentos, estão e têm estado entre os principais apetites da alma.[2]


Um exemplo clássico de um braço do passado no presente são os tabus, que permanecem em silêncio por muito tempo até conjugarmos a devida capacidade de vencer as formas espectrais que nos constrangem.

“Quebrar tabus” exige ousadia para dizer o não dito; da mesma forma como requer prudência e coragem para mostrar a verdade a o olho desarmado. E tudo que é ousado, por si só, está fora de lugar, pois implica desacato e atrevimento. Atrevimento para expor aquilo que, por uma questão moral, jurídica ou política, não deveria ser dito. Daí a quebra de tabus revelar silêncios propositais da História que, por si só, também são história...[3]

Se nos propomos a decifrar ao menos fragmentos de nossa história mental, trazendo a lume memórias rarefeitas, esquecidas nos corações e mentes não só de grandes personalidades que dispõe dos meios materiais para oficializar suas leituras da história, mas outrossim, de gente simples, que apesar de não dominar os substratos científicos e acadêmicos, são pessoas que a sua maneira racionalizam e interagem intuitivamente com essa história, ou seja, sem abarcar as incontáveis possibilidades de resgatar o passado estaremos aprisionados não a História, mas, a uma fábula ritualizada e chancelada por apriorismos que negligenciam as pérolas escondidas nos intelectos simples, circunscrevendo nosso diálogo entre as temporalidades.
Acontecimentos como as cruzadas medievais e seus imperativos, cujas forças motrizes, tiveram origem na mentalidade religiosa, concomitantemente com os interesses comerciais, somadas as questões demográficas da época, respondendo assim pelo ideário dessas ações legitimadas por uma mentalidade em comum. Podemos verificar a simbiose entre o arcabouço ideário e a forma com que uma dada sociedade se relaciona com o mundo físico, a exemplo disso temos os modos de produção, como o feudalismo, bem como o capitalismo que lentamente fora gerado das ruínas feudais, iniciado pelo mercantilismo. A inquisição chancelada pela igreja, que pregava o amor e o perdão, mas, que matava em nome da fé, enfim, os anacronismos e antíteses em todos esses períodos se caracterizavam por mentalidades com certo nível congruência, simetria ao sistema, se não de maneira plena, mas, em caráter hegemônico, tanto que fora exeqüível. Todas as utopias sociais e devaneios são igualmente valiosos para um mapeamento sobre aquilo que exaspera, que busca uma dada sociedade, aquilo que lhe afligi, seus incômodos.
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De fato utopia é a negação de um presente medíocre e sufocante, é o espaço futuro sem limites, sustentado pelo desejo, é sonho apaziguador de regresso a perfeição das origens, é reencontro do homem consigo mesmo. [...] De qualquer maneira, a imaginação utópica é um produto da História que nega a História [...] A utopia é nostálgica, busca a harmonia edênica, é portanto um mito projetado no futuro.[4]

Quando Max Weber aborda a questão da congruência entre mentalidade religiosa e modos de produção, em sua obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, que sumariando liga a práxis religiosa à forma pela qual uma sociedade produz suas condições materiais de sobrevivência, o feudalismo em consonância com catolicismo, que legitimava a ordem estabelecida, condenava a usura, incentivava o ócio, por assim dizer, e principalmente negava uma ascensão na hierarquia social, prometendo então uma recompensa pós-vida. O capitalismo já em uníssono com protestantismo teria como substrato o ascetismo, a usura agora seria permitida, uma ascensão social aceitável e o dogma do trabalho para colher ainda em vida as bênçãos divinas. Coincidência ou não as religiões apesar de todo seu apelo transcendental, meta-humana, invariavelmente se portou ao longo da história em cumplicidade com o universo secular, como diria Mikhail Bakunin:

Numa palavra, não é nada difícil provar, com a história na mão, que a Igreja, que todas as Igrejas, cristãs e não cristãs, ao lado de sua propaganda espiritualista, provavelmente para acelerar e consolidar seu sucesso, jamais negligenciaram de organizar grandes companhias para a exploração econômica das massas, sob a proteção e a bênção direta e especial de uma divindade qualquer; que todos os Estados que, em sua origem, como se sabe, nada mais foram, com todas as suas instituições políticas e jurídicas e suas classes dominantes e privilegiadas, senão sucursais temporais[...] No que diz respeito a isto, o protestantismo é muito mais cômodo é a religião burguesa por excelência. Ela concede de liberdade apenas o necessário de que precisa o burguês e encontrou o meio de conciliar as aspirações celestes com o respeito que exigem os interesses terrestres. Assim, foi sobretudo nos países protestantes que o comércio e a indústria se desenvolveram.[5]

O passado e presente se confundem nas mentalidades, o que soa inverossímil, híbrido e anômalo, entretanto a inteligibilidade dos fenômenos sociais e humanos, os costumes, idéias, enfim, esses aspectos situam-se numa área de entroncamento onde diálogos precisam invariavelmente ser feitos, precisamos mapear e encontrar o exato ponto de junção, o amálgama entre o inconsciente e o intencional, o individual e o coletivo, o público e o privado. Dessa maneira teremos senão a verdade histórica, mas ao menos não seremos reféns de prolixas dissertações demasiadamente intelectualizadas, garbosas, mas despidas de espírito e verossimilhança. Não podemos incorrer no erro de dar primazia aos comportamentos da elite ou do proletariado, ou mesmo atribuir proeminência a um determinado agente histórico e sim encontrar o que há em comum entre os diferentes estratos sociais, a simetria idearia entre os pólos, aquilo que faz com que coexistam numa mesma realidade histórica, mesmo diante de um confronto patente.
A mentalidade permeia as formas surdas e mudas das ações, aquilo que parece improviso, insólito, realizado mecanicamente, tudo isso na verdade representa as pulsões domesticadas, a reprodução de uma herança muitas das vezes imperceptível, resultado de uma infusão de idéias que passam a ser internalizadas, levadas a uma dimensão bem próxima do inconsciente. Essas estruturas são as que mudam mais lentamente, o que gera constantemente uma dissonância com a realidade histórica concreta.
Sendo assim a mentalidade corresponde a uma idiossincrasia coletiva, ou seja, a forma pela qual uma sociedade se percebe e se relaciona com seu entorno, com sua realidade, como ela explica e entende o que acontece a sua volta, como ela enfrenta o inteligível e o ininteligível, o sagrado e o profano, o que é moral e que não é, o que é condenável e o que é permitido, questões como sorte, azar, o mau olhado, as superstições, nossas preces para São Jorge ou para Ogum. O coletivo com suas leis, seus instrumentos de coerção, suas sentenças, sua relação com a morte, sua música, seus ritos, sua ambiência, mitos, todos esses e outros tantos infindáveis aspectos nos permitem mapear o universo mental da humanidade. Enfim um emaranhado de conexões que consubstanciamos a fim de perceber maiores esperanças, sem que de fato tenhamos alguma garantia de sucesso, mas que ao menos nos proporciona uma certa segurança.
Temos outrossim a coexistência de diferentes mentalidades numa dada época, uma espécie de antinomia ou anomalia sistêmica que gera conflitos devido à incongruência de ações e reações com a realidade histórica. Isso fica evidente ao abordarmos a doença do nosso século, o estresse, gerado por uma frenética vida imposta pela cada vez mais exigente e concorrida vida moderna, comprometendo o lazer, o enlace familiar, as relações altruísticas, causando uma grave crise identitária e existencial.
A consecução epistemológica das mentalidades deve ser cuidadosa para evitar anamorfoses apriorísticas, uma vez que não se trata de um mero reflexo mecânico engendrado por implacáveis corpos de idéias, muito menos imposições, mas, são a construção e desconstrução de teorias, normas, enfim, a mentalidade é forjada pelo confronto, por uma equação em desequilíbrio que teima por se equilibrar, que esta ligada ao social mas não de maneira subjacente, não como apêndice, não é gerada por um indivíduo por mais proeminente que este seja, a mentalidade é obrada pela coletividade, porém não necessariamente há um consenso, cada grupo mesmo vivendo num mesmo tempo possuirá diferentes nuances, entender a mentalidade é olhar por de traz do espelho, é procurar o anverso do avesso, entendendo de uma vez por todas que o passado pode estar separado do presente pelo tempo, mas seus inexoráveis enclaves fantasmagóricos nos assombrarão no corpo e na mente, nos possuindo e manifestando-se em forma de medo, medo do novo.

Notas:

[1] BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza. São Paulo. Abril Cultural, 1979, p. 15.

[2] HUXLEY. Aldous. As Portas da Percepção. Tradução Oswaldo de Araújo Souza. São Paulo. Globo 2002, p. 5.

[3] FERRO, Marc. Os Tabus da História. (tradução Maria Ângela Villela). Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p. 7.

[4] FRANCO JUNIOR, H., As Utopias Medievais. São Paulo: brasiliense,1992, p. 12,13.

[5] Deus e o Estado, cujo título não foi de autoria de Bakunin, recupera a primeira, de 1882, organizada por Carlo Cafiero e Elisée Reclus, publicada em Genebra pela Gráfica Juraciana. No livro Bakounine – combats et idées, lançado pelo Instituto de Estudos Eslavos, Paris, 1979, p. 242.


Autor: ricardo peixoto


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