O ABORTO RETIDO EM ''LUCIOLA'' DE JOSÉ DE ALENCAR



As leituras clássicas na maioria das vezes oferecem algo a ser decifrado e explorado. São livros que são estudados por milhares (porque não dizer por milhões) de pessoas todos os anos e no entanto, não perdem o fascínio e o carisma que exercem sobre seus leitores. Assim sendo, esse trabalho é uma tentativa de comparação entre a protagonista (Lucia) da obra Lucíola de José de Alencar e da protagonista (Marguerite Gautier) em A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho. As personagens dividem em partes, algumas características entre si. Entretanto, o romance de cada autor finaliza de formas diferentes. O intuito neste artigo é enfatizar a personagem Lucia em Lucíola, cujo foco principal é o aborto retido sofrido pela protagonista, tendo como conseqüência, sua morte.
Palavras chaves : Lucíola, A Dama das Camélias, aborto retido

1INTRODUÇÃO

Em alguns clássicos da literatura brasileira ou mundial, há espaços para reinterpretações na medida em que o tempo transcorre e novas mudanças na perspectiva de mundo, da vida e experiência dos leitores. Com isso, as leituras passam a ter uma importância diferente em suas mentes, não mais como releitura, mas como uma nova leitura, geralmente por conta dessa mudança deenfoque temporal. As leituras clássicas na maioria das vezes oferecem algo a ser decifrado e explorado. São livros que são estudados por milhares (porque não dizer por milhões) de pessoas todos os anos e no entanto, não perdem o fascínio e o carisma que exercem sobre seus leitores.Assim sendo, esse trabalho torna-se uma tentativa de comparação entre a obra Lucíola de José de Alencar e A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho. O intuito é enfatizar a personagem Lucia em Lucíola, pois o objeto de estudo é maior nesta obra, que em A Dama das Camélias.

Ao falar-se sobre o autor José de Alencar, pode-se citar algumas fases pelas quais o autor foi interpretado. Os críticos em geral enquadram Lucíola na série - Perfis de mulher - (Cinco Minutos, A Viuvinha, Lucíola, Diva, A Pata da Gazela, Sonhos d´Ouro, Senhora e Encarnação) e segundo MENDES (1965, p. 28) são "...romances em que estuda caracteres femininos, torturados por contradições e antagonismos psicológicos".Também são denominados urbanos, pois são obras que falam sobre a vida burguesa do século dezenove, do centro da cidade do Rio de Janeiro, onde o romance se desenvolve, cujas pessoas eram frequentadoras de teatros, passeadoras na Rua do Ouvidor e moradoras dos bairros. O autor descreve algumas ruas da cidade, o convívio social, danças e algumas cenas cotidianas da cidade.O livro Lucíola tem início com o encontro de Paulo, jovem chegado do interior e Lúcia, cuja profissão de cortesã, se encaixa na face obscura da burguesia. Ela detém em seu leito, os mais nobres cavalheiros da sociedade, que ao anoitecer, transformam-se nos mais vis e desprezíveis seres, trocando muito dinheiro por favores sexuais. Lúcia por sua vez, aproveita-se da juventude e beleza e de seus dotes físicos, para exercer a sua profissão. Ao comparar-se a protagonista de Alexandre Dumas Filho , Marguerite Gautier em A Dama das Camélias com a protagonista de Alencar, nota-se que ambas dividem em partes, algumas características tais como: fineza, delicadeza e sedução. Porém, a heroína romântica Lúcia é possuidora de uma pureza da alma, que não é maculada pela carne pecaminosa, mesmo sendo ela a mais pérfida prostituta. Comenta PROENÇA sobre esse fato "Por isso, mesmo nas horas em que mais lhe esplende a glória da cortesã, o romancista a veste simbolicamente de branco" (1966 p. 88). A história é contada em flash-back, porque o narrador-personagem Paulo Silva, entrega cartas no início do romance, a uma senhora denominada simplesmente de - G.M.Ou seja, "G.M."é um mascaramento utilizado pelo autor José de Alencar transformando em narrador, Paulo, o protagonista da história. Assim, Alencar conta a história através do narrador Paulo.

2Comparando

A Dama das Camélias foi escrito em 1847 e Lucíola em 1862, ou seja, ambos foram criados no século dezenove e fixados na época romântica. São livros comentados e estudados por vários estudiosos, os quais foram criticados e estudados, tanto no Brasil, quanto em outros países e enquadram-se perfeitamente na atualidade, quando trata-se da questão sexualidade.No caso do livro Lucíola, a protagonista (Lúcia) passa por uma transformação comportamental generalizada na seqüência da trama: da vilã libertina e desafiadora para os moldes da época, surge a heroína, subordinada, vítima da injustiça da vida. Alencar com isso fez com que a dama criada por ele seja aceita aos olhos e comportamento dos leitores e leitoras, para os quaisse dirige, idealizando uma mulher digna do romantismo da época em que foi criada. ANTONIO CANDIDO explica porque Alencar escreveu dessa forma "...o Romantismo foi no Brasil um vigoroso esforço de afirmação nacional; tanto quanto mais quanto se tratava aqui, também, da construção de uma consciência literária" (1980, p. 116). Alencar foi acusado de plágio por alguns críticos quando Lucíola foi comparado a A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho. Os dois romances têm em comum a figura da cortesã rica e requintada, ambas fazendo parte da corte e sendo figuras visadas da sociedade da época. Muito embora o tema dos livros aparentemente sejam semelhantes, diferenciam-se pela conduta das personagens e o final trágico de cada uma delas. Marguerite Gautier, a personagem principal de A Dama das Camélias, se vê coagida a se afastar de Armand Duval, seu par romântico da história, pelo pai do rapaz, por colocar em jogo a felicidade da irmã de seu amante. Marguerite então dá continuidade a sua vida de cortesã, mantendo casos com vários homens, que lhes pagam e lhe proporcionam conforto e comodidade. No caso de Lucia é bem diferente, ela quer se tornar digna de Paulo, tentando através do amor, livrar-se das máculas de seu passado. E as histórias giram em torno dos romances trágicos, que seus autores construíram. Mas há um ponto bastante parecido entre as duas protagonistas, que é a questão saúde. Marguerite Gautier, como a maioria das prostitutas da época, tem problemas pulmonares, o que futuramente ocasionará sua morte. (DUMAS, 1997 p. 25). Maria da Glória (Lúcia) personagem principal de Lucíola, não tem problemas de saúde, mas devido a um aborto retido[1], acaba também por falecer no final da história. A primeira sem chance de cura (naquela época), porque certamente em nossos dias, com o avanço da medicina, problemas de pulmão tal como tuberculose são perfeitamente tratados pela ciência, através de vacinas, medicamentos e controle periódicos pelos órgãos de saúde. A segunda, Lúcia, a morte é fruto da própria decisão da protagonista, que retém o feto sem vida dentro do útero, porque se acha indigna de ser mãe.

3 Analisando osfatos em LUCIOLA

Retoma-se o enredo de Lucíola, que fixa-se em mostrar o envolvimento de Paulo Silva (narrador-personagem) moço de vinte e cinco anos, pobre,interiorano vindo de Pernambuco e que tem por metaestabelecer-se na cidade do Rio de Janeiro, com Lúcia, uma das cortesãs mais bonitas, cara e requisitada do local. Embora aparentemente Paulo não se intere de imediato sobre a vida profissional da moça, envolve-se sentimentalmente com ela. Alencar começa narrando o primeiro encontro dos dois, em uma festa dedicada a Nossa Senhora da Glória, que metaforicamente direciona-se a heroína da história. Só se compreende o fechamento desse pensamento, ao final do livro, quando Lúcia revela seu nome verdadeiro (Maria da Glória) e em que dia ela nasceu (no dia de Nossa Senhora da Glória). Paulo encanta-se com Lúcia, porém, seu colega Sá o desilude, quando diz "Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita..." (ALENCAR, 1993 p. 15) . Esse é o julgamento de toda a sociedade, na voz do personagem. Os comentários sobre a protagonista, que vêm até ele, não são dos mais agradáveis. Tida como excêntrica e incompreensível, não costuma prolongar seus relacionamentos com homem algum. Não admite submeter-se a nenhum deles e todos os bens que consegue, inclusive roupas, transforma-os imediatamente em dinheiro. Pertencente a classe das prostitutas de luxo, só recebe presentes caros, veste-se com vestidos e jóias caríssimos e frequenta lugares privilegiados.Paulo não é abastado. Tem uma vida simples e tem por certo que, Lúcia lhe custará muito caro.O protagonista envolve-se em princípio com Lúcia, como outro homem qualquer a procura de uma prostituta, para satisfazer seus desejos. Mas, com o passar do tempo, Lúcia revela-se diferente da forma com que os homens a descrevem ePaulo depara-se com sentimentos conflitantes,indeciso e desconfiado acerca dessa mulher e ao mesmo tempo, atraído por ela. Totalmente a mercê de sentimentos incompreensíveis, Paulo envolve-se cada vez mais com a bela mulher, embora casamento não seja uma das alternativas para firmar um compromisso com Lúcia. Lúcia por sua vez, corresponde à corte do protagonista, mas com o desejo secreto, de que este case-se não consigo mesma, mas com sua irmã que representa toda a virtude e pureza que elanão possui. Uma idéia um tanto quanto bizarra, se levar-se em consideração que a irmã teoricamente, seria a cunhada. Poder-se-ia dizer que Lucia, além de desempenhar dois papéis controversos de personalidade, ainda sofria de uma certa distorção de valores familiares, aos olhos de quem lê. Nomundo em que vive, apesar de fazer parte da burguesia, parece ser perfeitamente "justificável" aos olhos do autor, que seus valores fossem corrompidos. Afinal,ela era uma cortesã.

A partir do capítulo dezesseis de Lucíola, começam alguns sinais de mudança comportamental de Lúcia em relação à saúde e Paulo se questiona "Á noite, quando voltei, queixava-se de uma indisposição" e ainda "Estava realmente doente; respeitei-a". (idem, 1993 p. 96). Paulo pergunta a uma senhora chamada Jesuína, ajudante no cuidado da moça, qual é o motivo da doença e não obtém resposta. O médico a havia visitado, entretanto não obtém resposta sobre a doença e nem sobre as recomendações médicas. Isso o irrita profundamente. Pede para que Lúciamande embora a serviçal. Mas, o passado da moça a condena e seu amante começa a se distanciar, tomando uma atitude totalmente oposta à primeira, despreocupadamente começa a escassear as idas até a casa de Lúcia, ficando mais de quinze dias sem vê-la. Ele reflete consigo mesmo que "Tinha aproveitado a minha liberdade para me preparar à vida séria." (ALENCAR, 1993 p. 101). Estava dividido e confuso em relação aos seus sentimentos para com a protagonista.Não cogitava ele, casar-se com Lúcia, embora estivesse apaixonado por ela. Lúcia então vai à casa de Paulo, na tentativa de provar sua mudança de caráter, o que fica claro aos leitores, a visão da super mulher comportada e fiel na concepção romântica. Os valores éticos e morais masculinos nunca são questionados, mas os femininos sempre são sufocados e reprimidos em detrimento dos "encantos" relacionados ao lar. Lúcia então, mostra-se excelente cozinheira, dona de casa esmerada e sobretudo uma amante engraçada e divertida. Dentro desse pensamento romântico e mesmo possuindo todas as qualidades para fazer um homem feliz, acha-se incapaz de ser mãe, por questões de consciência.Lúcia – o anjo caído de Alencar - dá alguns sinais do que sentia: "Alguns espinhos que cercam a rosa, valem o veneno de certas flores? Um voto é coisa santa; mas a dor da mãe que mate seu filho é horrível".( idem, p. 105).Essa frase foi dita por ela a esmo e Paulo não entende o que ela quer dizer com isso, uma vez que conversavam sobre virgindade e então em seguida pune-se a si mesma dizendo: "...poderia perder a minha alma para dar-lhe a virgindade que não tenho; mas o que eu não posso é separar-me deste corpo!" (ibidem, p. 106). Lúcia se auto condena, flagelando-se dentro do seu próprio julgamento, sem dar chances a Paulo de compartilhar sobre a questão.

As mudanças no corpo de Lúcia começam a ficar evidentes e Alencar é controverso nesse momento, quando coloca sua heroína, uma mulher experiente, como não se dando conta de que poderia estar grávida. Apesar de todos os indícios e pistas que ela mesma aponta para que Paulo enxergue as mudanças visíveis, o autor tenta firmar a imagem da protagonista, como uma pessoa com resquícios de ingenuidade e imaturidade. Lúcia julga-se indigna de gerar uma criança, porque a concepção representa sua redenção. Ao tornar-se mãe, a mulher metaforicamente se compara a Maria mãe de Cristo, aquela que propiciou a vida e consequentemente atrela-se a um ato singelo, embora na lógica crua e nua, seja apenas consequência do ato sexual sem métodos contraceptivos entre dois indivíduos férteis. Portanto, a heroína se julga indigna e não passa por sua cabeça que pode acontecer-lhe, tal graça divina. Então, a partir desse momento, podem-se notar os problemas psicológicos que começam a aflorar em Lúcia. Percebe-se a grande vontade que ela tem de ser mãe, mas essa probabilidade lhe parece tão assustadora, que começa a ficar abalada e com problemas de saúde. Reflete intranqüila "Quando me lembro que um filho pode gerar-se das minhas entranhas, tenho horror de mim mesma!" (ALENCAR, 1993 p. 110). Recorre à religiosidade , que já fazia parte do seu cotidiano, como se pode ler no Capítulo XI "Às vezes lia para ela (Paulo) ouvir algum romance, ou a Bíblia, que era o seu livro favorito".(idem p. 66). Provavelmente dentro da Bíblia, deve ter lido versículos que a condenavam, como por exemplo: "...pois cova profunda é a prostituta, e poço estreito a adúltera" (BÍBLIA, 1969, Provérbios 23:27). E outras, devem tê-la confortado: "Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra". (BÍBLIA, 1969, João 8:7)Lúcia totalmente apegada a religiosidade, muda seu quarto que outrora fora luxuoso e extravagante. É substituído por outro simples e que se tornou um local de reflexão espiritual para Lúcia. A heroína impõe para si uma sentença bastante peculiar, como salienta Neusa Pinsard Caccese, ao comentar no prefácio da nova edição de Lucíola de Alencar

É um processo de redenção , que se fará pela negação do próprio corpo: desde que conhece Paulo, Lúcia se recusa aos outros homens e, gradativamente, irá, também, se recusando a ele, até a abstenção total e a proibição de um simples beijo. Para ela, só assim o espírito pode-se fortalecer; e é possível renascer, da Lúcia mortificada, a Maria da Glória íntegra e angelical. (Apud ALENCAR, 1994 p. 5)

E essa atitude da protagonista é perturbadora, uma vez que está decidida a modificar sua história e se mortificar. Entretanto, apesar de sua mudança interior, Lucia ainda é julgada

Lúcia /Maria da Glória consegue purificação interior e é feliz por isso, mas seu erro não pode ser esquecido e a sociedade não perdoa: não basta a marginalização que se impõe, ao refugiar-se com a irmã num recanto afastado (sua proximidade é uma afronta para a comunidade). (idem, p. 5).

CACCESE (1994) ,refere-se a um determinado momento, em que Lúcia muda-se juntamente com a irmã, para um lugar mais afastado. A fim de se redimir. Todos esses fatos ocorreram em poucos meses, como o próprio Paulo narra para a pseudo-autora G.M. "Se não fosse a originalidade dessa fase de uma vida que em quatro meses passara aos meus olhos por tão profunda revolução, não teria nada que lhe contar, e não valeria a pena revolver o rescaldo de minhas reminiscências". (ALENCAR, 1993 p. 126).É intrigante como Lúcia se mantém arredia e sombria para Paulo e o surpreende quando abalada e fraca de saúde,anuncia a gravidez

Um filho! Mas é um novo laço e mais forte que nos prende um ao outro. Serás mãe, minha querida Maria? Terá mais esse doce sentimento da maternidade para encher-te o coração; terás mais uma criatura com quem repartir a riqueza inexaurível de tua alma! (p. 134).

Paulo então, se dá conta da importância da concepção de um rebento, haja vista o laço que fora criado entre os dois, mesmo sem casamento, para sempre. A futura mãe estava sendo acompanhada por um renomado médico da corte, que segundo o narrador "um dos mais hábeis parteiros", disse-lhe que seu estado de saúde estava perfeito e não havia risco algum de vida, não inspirando maiores cuidados. Porém, ela insiste que seu filho está morto "Era o primeiro! Mas o tato das entranhas maternas, sejam elas virgens ainda, não engana. Nosso filho, Paulo, o teu, porque ele era mais teu do que meu já não existe" (p. 135).Geralmente o abortamento se dá por várias razões, que não são descritas no romance. Alencar apenas nos diz que Lúcia "...estava ameaçada de um aborto, resultado do choque violento que sofreu, quando conheceu que se achava grávida". (idem p. 135).Entretanto não se pode comprovar que meios psíquicos, possam fazer com que o aborto ocorra, conforme REZENDE nos diz: "Em extenso trabalho sobre a responsabilidade criminal nos abortamentos, recorrendo, intencionalmente ou não, a meios psíquicos, Benson & Collins (1961) concluem pela impossibilidade de asseverar-se sua etiologia" (2002, p. 497). Quando há morte intra uterina do feto, denomina-se abortoe não mais que em quatro semanas, deve haver expulsão do concepto. Se caso não haja o abortamento, então denomina-se aborto retido.

O estado de Lúcia se agravou. Acamada, a febre aumentou gradativamente e durante três dias, não cedeu. O médico novamente entra em ação e lhe prescreve um remédio: "Para aliviá-la do seu incômodo. Logo que lançar o aborto ficará inteiramente boa" e então Lúcia responde: "Lançar!...Expelir meu filho de mim?" (ALENCAR, 1993 p. 135). No século dezenove, os cuidados com problemas relacionados ao parto, eram diferentes de como são em nossos dias.O médico como pudemos constatar, não a internou em um hospital, onde teria todos os meios possíveis na época para confirmar a possibilidade de ter havido morte fetal no caso de Lúcia. O método que o médico provavelmente deve ter utilizado foi o "ausculta"[2] das batidas do coração, bem como a cessação dos movimentos do bebê e concluir que, a protagonista "diagnosticou-se" corretamente. Entretanto, esse acompanhamento deu-se em domicílio e mesmo com todo o avanço da ciência, esse fato ainda ocorre em certas cidades do interior.

No caso da protagonista, não houve um aborto provocado, ao que se nomeia de criminoso em que a gravidez é interrompida forçosamente. Houve indícios de aborto espontâneo sem a expulsão do feto feita pelo corpo naturalmente. Lúcia é acompanhada por um dos profissionais mais habilitados da época e que, provavelmente optou, no caso desta paciente em especial, em administrar uma substância química para provocar o abortamento. Segundo ALVES "Os abortivos químicos são numerosissimos.As substâncias inorgânicas, fósforo, arsênico, chumbo, mercúrio, ferro, cobre, ácidos, sais etc., e as orgânicas de origem animal ou vegetal". (1967 p. 296). Não podemos contudo afirmar, qual dessas substâncias poderia o médico ter administrado para a paciente, no entanto, fica explícito que o objetivo era expelir o feto. Ele tomou a decisão correta quando suspeitou que pudesse estar em risco a vida de Lúcia. Conforme explicação de REZENDE "Diagnosticada a morte do ovo, deve ser o útero evacuado".(2002, p. 732).A retenção do feto poder morto poderia trazer complicações para a paciente, como por exemplo a infecção e morte.No entanto, há de se deixar claro que, é considerado crime na Legislação Brasileira,a prescrição de remédios por pessoa não qualificada para indução do esvaziamento uterino.

Contudo,por estar no século dezenove e se tratar de uma heroína romântica, o autor propõe um desfecho trágico para Lucíola"Sua mãe lhe servirá de túmulo".(ALENCAR, 1993 p. 135). Com essa afirmação, a parturiente nos deixa claro que está ciente das complicações que tem e outras, advindas de seu ato de não permitir o esvaziamento do útero.O feto estando morto intra uterino, começara a degenerar-se e conseqüentemente, afetará a saúde da mãe. Obviamente que a consequência deste ato é uma infecção generalizada, complicando todo o funcionamento do organismo. Fica claro para o leitor, que Lúcia escolhe a morte, mas não admite o fato. Diz: "Haveria sacrifício que eu não fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade? Mas Deus não quis. Sinto que a vida me foge!" (p. 136). Com estas palavras, ela afirma que foi Deus quem quis que acontecesse isso em sua vida, como se fosse um castigo pelos seus pecados. Interessante afirmar, que apesar de todos os cuidados médicos, Lúcia se recusa a tomar o remédio prescrito pelo médico.Provavelmente tenha lido na Bíblia: "Dá-lhes uma madre que aborte e seios secos". (BÍBLIA, 1983, Oséias, 9:14).E por isso, culpa o Criador pela morte do filho. A protagonista estava perturbada psicologicamente, repartida entre a vida e a morte, porque deseja ser casta, como fora outrora na meninice, admitindo essa como a única forma viável de ser digna para ter um filho. Mas, agora com seu concepto morto dentro de si a saída que encontra para anular as máculas de seu passado, é morrendo. Paulo nos diz: "A instâncias minhas bebeu finalmente o remédio, que nenhum efeito produziu" (ALENCAR, 1993 p. 136). E finalmente, depois de um sofrimento digno de muitos santos cristãos, em um ato de penitência imenso (inexplicável teoricamente), Lucíola solicita a Paulo que chame um padre para confessar-se, pois sentia que sua hora era chegada e também pede que cuide de sua irmã. A noite é agonizante e mostra-se inteiramente apaixonada por Paulo, mesmo nas suas últimas horas. Pede a ele que abra a janela e se vai romanticamente ao encontro da purificação

Impõe-se a destruição total daquele corpo que ela já havia conseguido entorpecer, numa antecipação do castigo merecido, e com um sentido evidente de autopunição: Lúcia morre por causa do filho de Paulo, fruto do amor carnal, proibido e condenado pela sociedade e por ela mesma. E é através da morte que seu objetivo maior será atingido: a destruição do corpo implica a sobrevivência e a supremacia do espírito. A redenção alcançada. (Apud CACCESE, 1984 p. 09)

Em suma, uma cortesã das mais requisitadas do Rio de Janeiro e ao término do livro, apenas uma mulher verdadeiramente apaixonada, que receia não ter dignidade suficiente para ser mãe.

4Conversando sobre sexo

Ao se falar de tuberculose em a A Dama das Camélias, no período em que foi escrita, a medicina ainda não havia evoluído e não havia formas de controlar a tuberculose, como na atualidade. Consequentemente, pouco havia para ser feito , e salvar a vida de Marguerite.Em contrapartida, o tema aborto retido em Lucíola, ainda provoca em determinadas pessoas o sentimento de não aprovação, de pecado e discussão. A protagonista, mesmo sentindo que o feto estava sem vida, preferiu recusar a medicação prescrita pelo médico, a expulsar a criança de seu corpo.Apesar de ser um tema que é do conhecimento da maioria das pessoas, dois séculos depois, ainda é tratado como um temapolêmico.

Além de polêmico é de difícil discussão,mesmo vivendo-se em um mundo globalizado, em que são debatidos vários temas na questão sexualidade. Precisamente na Genética, na qual nos últimos anos, houve várias descobertas importantes. Pode-se citar os bebes de proveta, que completaram três décadas desde a primeira inseminação artificial. A descoberta do genoma cujo conhecimento da seqüência do DNA humano salva muitas vidas, os transplantes de órgãos e de medula óssea, os clones, pesquisas com células tronco e muitos outros. Na área tecnológica, iniciou-se o advento da Internet. O ser humano em geral detentor do conhecimento da informática, conecta-se instantaneamente com outras cidades, estados e países. O planeta em constante evolução com novas descobertas é bombardeado por informações, nãosó da Internet, mas pelos programas das TVs a cabo, torpedos que podem ser enviados diretamente para celulares e também por meios convencionais como jornais, revistas e outros. Contudo, mesmo com todas as questões científicas avançadas ocorridas na atualidade e de toda uma nova visão da sociedade em relação à cultura, nossos adolescentes e jovens, procuram meios de se intei,rar sobre assuntos, que aparentemente mostram-se polêmicos e problemáticos para solução.

Nesta nova estruturação de família, os modelos de união estável mudaram. Na década de oitenta, quando o divórcio foi estabelecido no Brasil , houve o nascimento de novos núcleos familiares. Após esse advento, as mulheres em geral tiveram a chance de ocupar papéis de destaque em carreiras que antes, pertenciam aos homens. Começaram a votar e ocupar um outro papel dentro da sociedade. Com essa evolução natural da família, constituição básica formada por casais estáveis, foi trocada pelos pais que se divorciam e se casam diversas vezes. Estes têm filhos em diversos casamentose no final das contas, todos os filhos, tias, avós etc, acabam formando uma grande família. Sem falar é claro, na união estável entre pessoas do mesmo sexo, que também podem optar em ter filhos adotivos ou não. No entanto, a curiosidade natural do jovem, parte integrante dessa fase em todos os indivíduos, é estimulada pelos meios de comunicação citados. Na procura pelo conhecimento e descobrimento, o jovem ainda depara-se com alguns temas que, apesar de aparentarem corriqueiros, tornam-se antagônicos, pois esses mesmos pais que apregoam globalização, aceitação do outro, o não preconceito e tantos outros assuntos polêmicos, possuem um bloqueio. Sabe-se em tese que nem sempre o jovem conversa sobre esses aspectos com seus pais, embora não se esteja discutindo aqui, se a educação proporcionada por estes é adequada ou não. Os jovens intimidam-se por várias razões sejam elas questões pudicas, religiosas ou outras, e, portanto os educadores devem colocar o conhecimento paraelucidá-los, mantendo o respeito às crenças e valores das famílias dos educandos. É indiscutível que a mentalidade da escola está mudando e muito. Ao reportar-se aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) amparados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), sabe-se que os professores têm como um de seus objetivos disciplinares, o ensino da sexualidade aos alunos. A orientação do MEC é o esclarecimento aos alunos sobre doenças sexualmente transmissíveis, dentre elas a AIDS (Síndrome da Deficiência Imuno Adquirida), relação sexual, gravidez, masturbação entre outros. É óbvio que no tempo em que Alencar escreveu essa obra, AIDS nem era cogitada como doença sexualmente transmissível e muitos valores da época fazem parte do passado. Entretanto, mesmo tendo esse lapso de tempo, a literatura pode ajudar, como matéria interdisciplinar, trabalhando e aplicando em sua realidade, conhecimento dos profissionais da saúde. Os professores conscientes de seu papel como educadores, devem estar permanentemente preocupados com o fator saúde dos alunos, integrando-os de maneira elucidatória e esclarecendo-lhes questões morais e relevantes para o bem estar corpóreo e mental, colaborando no crescimento cognitivo e no aspecto preventivo por parte do aluno. É do conhecimento de todos que embora o aborto seja liberado no Brasil, em apenas alguns casos específicos e com a anuência da lei, o número de abortos executados em clínicas clandestinas é muito maior do que mostram as pesquisas. O Código Civil Brasileiro garante à mulher uma condição mais equiparada ao homem, mas não garante a ela, escolha nesse sentido em relação ao seu próprio corpo. Ainda são muitos os preconceitos enfrentados pelas mulheres e não se tem intenção de entrar na discussão propriamente dita, por se tratar de um assunto muito extenso. (Isso deixo para as (os), que se especializaram em discorrer sobre assuntos envolvendo direitos e deveres das mulheres). Entretanto, se em nossos dias a condição ainda é desfavorável, imagine-se a um século e meio atrás, quando Alencar escreveu esse livro. Claro que não se está estimulando a prática da prostituição, como meio de sobrevivência, nem tampouco levantando bandeiras a favor ou contra abortos. No caso de Lucíola, Alencar dá uma saída romântica e melodramática para apoiar o por quê de Lúcia se prostituir.Separando a atriz que se deixa ver nua frente a todos em uma orgia, da menina que teve de se prostituir para cuidar da família. É claro que esse jogo psicológico foi muito eficaz, para que não chocasse as mulheres da época, dando a meretriz, uma conotação sentimental e depois fazendo com que a protagonista se regenerasse. Com essa técnica Alencar consegue que o livro seja lido por homens e por mulheres, sem que Lúcia seja julgada por isso (ao menos pelos leitores da época). O julgamento é a própria Lúcia quem faz. Por ser objeto sexual no passado, julga que deva ser vista apenas como tal e jamais ter a possibilidade de ser amada. Comprova-se isso no decorrer da trama, pois ela jamais obriga Paulo a ficar e só diz que o ama, quando está para morrer. A trama é relatada conforme moldes da época, mas ainda é bastante atual.Fica demonstrada a riqueza de nossa literatura nacional, uma vez que ainda existem assuntos que não se esgotam dentro dela, e que por falta de conhecimento, ou mesmo até por falta de interesse, não são estudados dentro das escolas com mais assiduidade. É sabido que a AIDS está matando cada vez mais jovens, na faixa entre quatorze e dezenove anos. Aborto também mata e sua taxa de incidência, como se disse anteriormente vem aumentando em dados alarmantes. E por que atualmente, apesar de toda a mídia, ainda morrem tantos? É necessário um trabalho mais dinâmico e esclarecedor nas escolas, colégios e universidades.

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[1] Aborto retido será explicado na continuidade do desenvolvimento do artigo.

[2] Método de diagnóstico baseado em ouvir os ruídos dos pulmões e do coração. (MELHORAMENTOS, p. 52).


Autor: Raquel Bittencourt


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