Abandono Afetivo e Responsabilidade Civil: Utilizar Com Moderação



Abandono Afetivo e Responsabilidade Civil: utilizar com moderação.

Laura Affonso da Costa Levy[1]

Sumário

1. Notas Introdutórias. 2. A evolução histórica da família e sociedade. 3. Breves considerações legislativas brasileiras. 4. Análise Crítica. 5. Considerações Finais.6. Referências Bibliográficas.

Resumo

Partindo-se das questões referentes à responsabilidade civil pelo abandono afetivo, sem a intenção de exaurir o tema, o presente estudo tem por finalidade abranger a historicidade da sociedade quanto família, refletir sobre a legislação brasileira no que concerne à responsabilidade civil e realizar uma análise crítica com relação aos entendimentos hoje existentes na doutrina e jurisprudência. Para tanto, será utilizado como material de apoio algumas valiosas obras que abrangem tal temática, tanto da área jurídica quanto da área da psicologia. Assim, traremos questões de relevante interesse que, sobremaneira, contribuem para a discussão da responsabilidade civil pelo abandono afetivo. Desta forma, diante dos novos rumos do direito se passará a confrontar questões de absoluto interesse ao mundo do Direito de/da Família.

1. Notas Introdutórias

A família foi, é, e continuará sendo o núcleo básico e essencial da formação e estruturação dos sujeitos, e, consequentemente, do Estado. Desta forma, é uma construção que está estruturada no afeto, no amor, na compreensão, nas atitudes solidárias e no reconhecimento.

Essa idéia de família nada mais é do que o reflexo do fim das famílias patriarcais de 1916, daquela família fundada pelos laços de sangue e comandada pelo pai poder. Ainda, são reflexos das transformações da sociedade, dos grandes avanços e das conquistas de longos anos, que hoje são comemoradas por todos os operadores do Direito.

Assim, família se constitui por diversos fatores e é capaz de ter múltiplos envolvidos, pois hoje existe uma estrutura multi facetada, quando tratamos de famílias uniparentais, homoafetivas, pluriparentais, etc., demonstrando o caráter eudonista, presente na nossa atualidade e justificada exclusivamente na busca da felicidade e na realização pessoal de seus indivíduos.

A sociedade brasileira vive hoje o fenômeno das famílias recompostas e reconstituídas, formadas, justamente, por pessoas que estão ligadas pelo amor.

Esses fatores somados, que constituem a família, é que garantem o desenvolvimento da esfera familiar. Assim, a presença do afeto, do carinho, da compreensão, da atenção, da disponibilidade, do cuidado, do alimento, é que são capazes de dar ensejo a presença de uma estrutura familiar propriamente dita, independentemente de quem são, e de quantos são, os indivíduos envolvidos.

Desta forma, é na família que a pessoa se completa, se perfaz, que o eu se transforma em nós. Assim, são com pequenos e inúmeros grãos de areia que se faz um grande castelo. Mas, esses mesmos grãos de areia, que são capazes de formar um lindo castelo, não podem acabar se transformando em um monstro.

Por esse motivo, a temática do abandono afetivo e das reparações por esse abandono deve ser encarada com muito cuidado e com a máxima atenção pelos operadores do Direito. Não se pode monietarizar o amor, nem mesmo as relações humanas.

No presente artigo, temos a intenção de debater certos pontos importantes quanto ao novo entendimento de reparações imateriais por distanciamento afetivo. Para tanto, se fará uma breve análise histórica da sociedade, adentrando, logo em seguida, nas esferas legais e encerrando com uma análise crítica quanto ao tema.

2. A evolução histórica da família e sociedade

Tanto é notória a evolução social dos últimos séculos, quanto a evolução da família, ou do sistema familiar. Assim, não se pode tratar da alteração das questões familiares, da ruptura dos vínculos sanguíneos em prol dos vínculos afetivos, sem analisarmos as diferenças que ocorreram no consumo, no mercado e na política.

Como forma de adentrarmos ao tema, iremos nos reportar ao livro de Luc Ferry, Famílias, Amo Vocês: política e vida privada da era da globalização[2].

O autor nos remete e nos proporciona uma necessária reflexão sobre a importância da família e, conseqüentemente, do Direito de Família no mundo contemporâneo. Desta forma, pode ser considerado como uma importante reflexão sobre a política no momento atual, uma vez que as noções de esquerda e direita estão se desfazendo e se diluindo diante de um mundo globalizado e marcado pelo hiperconsumismo.

No momento em que as tradicionais noções de política estão sendo consumidas pelo mundo globalizado, a História e a Política hoje se escrevem e se inscrevem a partir da vida privada. E esta começa e termina na família.

A partir do momento em que as pessoas passaram a se casar por amor, a família foi deixando de ser, essencialmente, um núcleo econômico e reprodutivo. Assim se fez a "desconstrução" da família patriarcal, tradicional e hierarquizada. E foi, então, que o afeto tornou-se um valor jurídico.

As nostalgias das antigas utopias, as noções de esquerda e direita, aos poucos estão sendo substituídas pelas noções de limite entre público e privado, obviamente comandados por uma economia de mercado globalizado. Assim, o único laço social que realmente se aprofundou, se intensificou e se enriqueceu foi o que une as gerações, ou seja, a família hoje é mais autêntica e menos hipócrita. E é aí que realmente subsistem e se aprofundam os valores que realmente nos interessam, especialmente o da solidariedade.

A revolução silenciosa da família, através dos novos arranjos que ainda estão em curso, são os reflexos dessa abertura de mercado, da era globalizada e de uma política atual mais voltada para o indivíduo.

Nesse sentido, o amor e a autonomia privada tem sido fonte de ampliação dos horizontes, pois nunca se demonstrou tanta preocupação com o outro e o seu bem-estar como nas sociedades atuais.

As contribuições de Luc Ferry, filósofo e ex-ministro da educação da França, nos esclarecem algumas questões. A família é base de uma sociedade. Sem família não é possível nenhum tipo de organização social ou jurídica. É na família que tudo principia. É a família que nos estrutura como sujeitos e encontramos algum amparo para o nosso desamparo estrutural. Apesar da variedade e diversidade de cultura, religião, credos e valores morais, devemos pensar a família como um resultado da cultura e não apenas da natureza. Assim, deve ser vista como uma estrutura que sofre influência do meio no qual está inserida e que se transforma com o passar dos séculos e pelos anseios do homem.

O Direito deve apenas traduzir a realidade fática, sob pena de reduzir-se a um mero tecnicismo vazio. As constituições democráticas atuais reconhecem as diversas formas de famílias, das tradicionais às mais diferentes, ou seja, daquelas constituídas pelo casamento, pelas uniões estáveis ou monoparentais.

Nesse mesmo momento se dá a era da despatrimonialização do Direito Civil, que elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento das constituições democráticas, toda a ordem jurídica deve ter seu foco na pessoa, em detrimento do patrimônio, que antes comandava todas as relações interprivadas. A Família, afinal, é lugar privilegiado da realização da pessoa, pois é aí que se inicia e se desenvolve todo o processo de formação da personalidade do sujeito. A Família deixou, portanto, de ser um núcleo econômico e de reprodução para ser o espaço do amor e do afeto.

Desta forma, ao mesmo passo que a humanidade abriu suas fronteiras, reposicionou seu pensamento quanto ao capital econômico, proporcionou avanços na seara do consumo, inclusive favorecendo para que nascesse a era do hiperconsumismo, deu um passo contrário quanto às famílias e os relacionamentos interpessoais. Nesse sentido, os casamentos arranjados, a desvalorização do sujeito, a monetarização das trocas afetivas, deram espaço para uma relação baseada na compreensão, no amor, no carinho, no cuidado, na presença e no companheirismo.

3. Breves considerações legislativas brasileiras

A Constituição de 1988 oferece um amparo à família, criança, adolescentes e idosos, consubstanciados entre os artigos 226 e 230. Garante direitos inerentes ao ser humano e ligado com os direitos fundamentais também consagrados na nossa Carta Magna.

Nossas legislações infraconstitucionais também garantem a proteção dos enlaces que envolvem o direito das famílias. Assim, alterações que vieram em nosso Código Civil, apesar de existirem inúmeras lacunas e deixar de ter observado questões de suma importância, acabaram por contribuir para ampliar o escopo de direitos e garantias. Assim, como a Lei da Criança e do Adolescente, do Idoso, do Divórcio, da Investigação de Paternidade, enfim, textos legislativos que inovaram e que possibilitaram um novo olhar sobre as relações de afeto e de família.

No momento atual, uma nova discussão vem à tona entre os operadores do Direito. Discussão essa salutar, que proporciona valiosos posicionamentos e renovações no campo do direito de família, de caráter tão transformador.

Assim, a discussão quanto ao Projeto de Lei 700/2007, de autoria do Senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), que caracteriza o abandono moral dos filhos pelos pais como ilícito civil e penal. A proposição modifica o Estatuto da Criança e do Adolescente ao acrescentar na lei a obrigação parental de assistência moral que permita o acompanhamento da formação psicológica, moral e social da criança. Em casos de negligência, o pai ou mãe pode ser preso (a) e ainda pagar indenizações.

A tese do abandono moral, abandono afetivo ou abandono paterno-filial, também denominada de teoria do desamor, tem sido discutida amplamente pelas páginas da doutrina brasileira, tanto por autores que se dedicam à responsabilidade civil, quanto entre os familiaristas.

Inicialmente, iremos analisar elementos que compõem a responsabilidade civil, o instituto dessa responsabilidade e as peculiaridades quanto às regras que regem o Direito de Família.

A Constituição Federal no artigo 227 dispõe sobre direitos da criança e do adolescente, colocando dentre esses o direito à convivência familiar, atribuindo-o como dever da família, da sociedade e do Estado. No mesmo sentido discorre o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente.

         Atente-se para o fato de tratarem esses dispositivos de dever da família, da sociedade e até mesmo do estado e não apenas de dever dos pais. Essa ressalva é importante, pois, como abordado anteriormente, atualmente admite-se diversas formas de entidades familiares, como, por exemplo, a formada por irmãos. Desse modo, as obrigações disciplinadas nesses artigos também são atribuídas a esses membros.

   A convivência familiar assegurada é aquela espontânea, baseada no afeto, salutar para os seus componentes, principalmente para as crianças. Ao colocar a convivência familiar como dever da família, não desejou o legislador impor uma relação que não existe. Não se pode aqui olvidar que a família hodierna é aquela construída a partir da afetividade, sendo a convivência familiar fundamental para a formação da criança.

O descumprimento desse dever de convivência familiar deve ser analisado pela seara do direito de família, sendo o caso para perda do poder familiar, uma vez que reste configurada a falta. Esse entendimento defende o melhor interesse da criança, pois um pai ou uma mãe que deixa de conviver com o filho não merece ter sobre ele o poder familiar. Não seria a indenização pecuniária que o faria agir diferente.

A doutrina diverge quando a aplicabilidade ou não da responsabilidade civil no direito de família. Adepto pela impossibilidade é Lopes (2006, p. 54): "Filio-me ao entendimento que a violação aos deveres familiares gera apenas as sanções no âmbito do direito de família, refletindo, evidentemente, no íntimo afetivo e psicológico da relação [...]." Em sentido contrário considera Madaleno (2006, p. 159) que o direito de dano é aplicável sim ao direito de família, tendo por fundamento o abuso de direito que prevê o artigo 187 do Código Civil e não o ato ilícito.

Cientes da divergência vamos analisar a questão sob os seguintes elementos: conduta, dano, nexo de causalidade e culpa .

Partindo da conduta, seja essa uma ação ou uma omissão, percebe-se que no caso o que poderia ser configurado como tal era o descumprimento do dever de convivência familiar e não a falta de afeto. Impende frisar, como já asseverado anteriormente, que o próprio direito de família prevê punições específicas para a inobservância dos deveres parentais. Silva, R. (2006) considera presente a omissão no caso de desrespeito ao direito do filho à convivência familiar, se o pai agiu voluntariamente e de forma injustificada.

O principal argumento a ser utilizado para caracterizar a responsabilidade de indenizar é a possibilidade de enquadramento no art. 186 do Código Civil, dispositivo que consagra o conceito de ato ilícito ao prever que "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito". Assim, os adeptos da utilização do Direito das Obrigações na seara familiar possuem tal artigo para consubstanciarem suas expectativas.

Quanto ao dano, para ser indenizável ele precisaria ser certo e injusto. No caso do abandono afetivo o dano seria o psicológico, não podendo ser dado como certo e injusto. Injusto é o dano causado voluntariamente, que podia ser evitado pelo agente. Nas relações familiares há condutas naturais dotadas de sentimento que não dependem da vontade da pessoa. Não é questão de ser justo ou não os pais amarem o filho, mas sim uma questão natural para a qual ninguém pode ser compelido. Outrossim, o dano causado pelo abandono afetivo jamais poderá ser configurado como certo, pois nada fará cessá-lo, nem mesmo o fim de uma ação judicial que indenize o filho em pecúnia. Quiçá, com o trâmite processual, o dano até aumente devido aos desgastes que uma ação traz para os seus litigantes.

O elemento nexo de causalidade, por sua vez, seria difícil de ser verificado. Como dar a certeza de que o abandono de um dos genitores foi a causa de um abalo psicológico? Até que ponto pode se mesurar os danos psíquicos e a real origem desse dano?

Destaque-se que o abalo emocional nunca é provocado por um fato único, mas por uma cadeia de fatores unificados entre si. Não é uma decorrência lógica e certa que o filho desprovido de afeto paternal sofrerá necessariamente um dano. Ainda, devemos chamar atenção para a reação do ser humano, pois existem formas diferentes de interpretar e reagir diante da mesma situação.

O abalo psicológico também pode ser desencadeado por fatores outros, que não a ausência paterna, sendo proveniente do meio onde o indivíduo vive, das demais pessoas, com quem mantém relacionamentos, sua índole, seu jeito de ser, sua forma de amar. (LEÃO, 2006).

Nesse sentido, são interessantes as elucidações da jurispsicanalista Giselle Câmara Groeninga:

"Como foi exposto anteriormente, não é suficiente a falta da figura paterna para caracterizar o pedido de danos morais por abandono afetivo. É necessária a caracterização do abandono, da rejeição e dos danos à personalidade. As perícias devem levantar, por meio de metodologia própria, a extensão dos danos sofridos em função da falta da figura paterna".[3]

Por fim, ter-se-ia ainda que constatar a culpa para configuração do dano moral. Age com culpa quem poderia agir de maneira diversa, tendo em vista um dever preexistente. Na subjetividade do que seja afeto, concluir-se-ia pela impossibilidade de condenar alguém por não ter afeto por outrem, visto que poderá ocorrer do agente ter a consciência plena que deu afeto e o ofendido achar exatamente o inverso, ou achar que o afeto dado não foi o suficiente. Leão (2006) assim constata que não há lógica em culpar alguém por não amar, pois não existe um dever geral de amar como um dever geral de cautela.

Mais importante ainda é conseguirmos verificar se o abandono afetivo se deu por culpa única e exclusiva do genitor que está sendo condenado, vez que não são raros os casos em que o genitor contrário impede o contato com os filhos e, assim, impossibilita uma aproximação. Dessa forma, o transtorno causado pela falta de auxílio, da presença e/ou do incentivo psicológico, se deu por culpa externa ao genitor, que hoje é considerado perverso, não podendo, dessa forma, ser caracterizado o ato ilícito baseado no art. 186, do CC.

Ademais, interessante observar o que seria protegido com a responsabilização pelo abandono afetivo. Pois indenizar significa tornar "sem dano". Contudo, quando o dano é moral, não há como "indenizar", o que pode existir é uma reparação.

Vale ainda questionar como se daria a mensuração da indenização devida. De acordo com o artigo 944, caput, do Código Civil, a fixação da indenização deve ser de acordo com a extensão do dano.[4] Sugere Moraes (2005, p.60) que para tanto deve utilizar-se dos seguintes critérios: 1) As condições socioeconômicas paternas; 2) A gravidade do dano e; 3) A condição pessoal da vítima.

Ora, se o valor da reparação for fundado nas condições financeiras do pai, então o caráter da indenização seria claramente punitivo. Se for fundado na gravidade do dano, como mensurá-lo diante da própria dificuldade em constatá-lo? A inviabilidade de quantificar um dano por abandono afetivo é notória, sendo impossível ao menos estabelecer uma data para seu início e para o seu término.

Por fim, levando-se em consideração a condição pessoal da vítima, restaria configurada a indenização como um meio para melhorar a situação financeira do autor. Estabelecer um quantum debeatur coerente com este tipo de indenização seria uma atividade árdua e, provavelmente, subjetivamente perigosa, gerando reparações pecuniárias de valores ínfimos e também exorbitantes.

E o que falarmos das famílias de baixa renda? Será que não estamos nos dando conta que essa Lei servirá para beneficiar ou para sanar os danos psicológicos daqueles que possuem boas condições financeiras? Pois, como será exigida uma indenização de quem nem mesmo possui recursos para sua própria sobrevivência?

Ou ainda, como iremos requer a reparação por parte do Estado, que mantém milhares de crianças e adolescentes nas ruas ou em abrigos com péssimas condições para o desenvolvimento físico e psicológico? A responsabilidade e o dever do ente público de dar educação, saúde, condições de desenvolvimento, ambiente sadio, que garantam o pleno desenvolvimento psicológico, será buscada? Iremos adentrar no judiciário com ações de reparação por dano afetivo, ou melhor, como preleciona o Projeto de Lei: "obrigação de assistência moral que permita o acompanhamento da formação psicológica, moral e social da criança", contra as administrações públicas?

É preciso prestar atenção para não deixarmos nascer uma norma seletista, que acabará por beneficiar poucos, dentre milhares de crianças que vivem em completo abandono.

4. Análise Crítica

Como forma de iniciarmos uma análise crítica quanto ao tema, ilustraremos com uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, de novembro de 2005, no qual reforma decisão do Tribunal de Minas Gerais, que havia condenado o genitor por danos morais.

"RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso Especial conhecido e provido." (STJ, RESP 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, votou vencido o Min. Barros Monteiro, que dele não conhecia. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro Relator. Brasília, j. 29.11.2005)"

A argumentação do Ministro Asfor Rocha merece destaque: "Sr. Presidente, é certo que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais pontificou que o recorrido teria sofrido em virtude do abandono paterno; são fatos que não podem ser desconstituídos. E é justamente com base nesse fatos que aprecio o que está ora posto. Penso que o Direito de Família tem princípios próprios que não podem receber influências de outros princípios que são atinentes exclusivamente ou – no mínimo – mais fortemente a outras ramificações do Direito. Esses princípios do Direito de Família não permitem que as relações familiares, sobretudo aquelas atinentes a pai e filho, mesmo aquelas referentes a patrimônio, a bens e responsabilidades materiais, a ressarcimento, a tudo quanto disser respeito a pecúnia, sejam disciplinadas pelos princípios próprios do Direito das Obrigações. Destarte, tudo quanto disser respeito às relações patrimoniais e aos efeitos patrimoniais das relações existentes entre parentes e entre cônjuges só podem ser analisadas e apreciadas à luz do que está posto no próprio Direito de Família. Essa compreensão decorre da importância que tem a família, que é alçada à elevada proteção constitucional como nenhuma outra entidade vem a receber, dada a importância que tem a família na formação do próprio Estado. Os seus valores são e devem receber proteção muito além da que o Direito oferece a qualquer bem material. Por isso é que, por mais sofrida que tenha sido a dor suportada pelo filho, por mais reprovável que possa ser o abandono praticado pelo pai – o que, diga-se de passagem, o caso não configura – a repercussão que o pai possa vir a sofrer, na área do Direito Civil, no campo material, há de ser unicamente referente a alimentos; e, no campo extrapatrimonial, a destituição do pátrio poder, no máximo isso. Com a devida vênia, não posso, até repudio essa tentativa, querer quantificar o preço do amor. Ao ser permitido isso, com o devido respeito, iremos estabelecer gradações para cada gesto que pudesse importar em desamor: se abandono por uma semana, o valor da indenização seria 'x'; se abandono por um mês, o valor da indenização seria 'y', e assim por diante. Com esses fundamentos, e acostando-me ao que foi posto pelo eminente Ministro Fernando Gonçalves, Relator deste feito, e pelos Srs. Ministros Aldir Passarinho Junior e Jorge Scartezzini, peço vênia ao eminente Sr. Ministro Barros Monteiro para reconhecer do recurso especial e dar-lhe provimento".

Da decisão acima citada e dos argumentos até aqui expostos, a crítica que se faz quanto às indenizações reparadoras por afetividade, ou a teoria do desamor, restam no terreno da averiguação do dano causado, do nexo de causalidade entre essa ação/omissão e o efetivo dano, além da quantificação dessa possível reparação.

Creio que as teorias das responsabilizações afetivas sejam relativamente novas e, como tais, devem ser utilizadas com cautela, com fins de garantir um real direito e não – meramente – fazer nascer um novo mercado.

O Direito de Família é especial e como tal deve ser visto como especial. Operadores do Direito que trabalham nessa área sabem o quanto é uma modalidade totalmente diferenciada, pois, sendo assim, merecem respeito e atenção redobrada.

Não nos cabe afastar por completo os novos avanços legislativos, doutrinários ou jurisprudenciais, mas nos cabe trabalharmos com ética e profissionalismo, quando cada caso é um caso e cada relação se faz distinta da outra.

5. Considerações Finais.

Na era da despatrimonialização das famílias temos que ter absoluto cuidado para não monetarizar o afeto, pois essa forma de julgar as relações familiares é algo inadmissível em face do valor sentimental que caracteriza tais relacionamentos.

Resta claro que existem casos particulares de dever de reparar um dano imaterial, mas como dito, são casos especiais e raros. Assim, é o caso da menina adotada de Uberlândia (MG) que foi devolvida por seus pais adotivos após oito meses de convívio e com a detenção da guarda definitiva, em junho do corrente ano.

Devemos ter cuidado e atenção para não industrializarmos o dano moral e banalizarmos as indenizações perseguidas.

As famílias atuais se formam pelos laços de amor, o que torna muito mais saudável a reaproximação, a busca pelo afeto, a esperança por um contato, do que uma conta bancária recheada. É preciso ter consciência de que o dinheiro pode não cessar a dor, pode não fechar as mágoas e pode não enxugar as lágrimas.

Não podemos ver as relações familiares sendo mercadorias de troca, com cifrões estampados em cada uma delas.

É dever dos operadores do Direito discutirem e debaterem sobre os novos e atuais temas do direito das famílias e, utilizá-los da melhor forma possível e com muita, mas muita moderação.

6. Referências Bibliográficas

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações e responsabilidade civil. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2008.

 

FERRY, Luc. Famílias, Amo Vocês: política e vida privada da era da globalização. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

 

GROENINGA, Giselle. Descumprimento do dever de convivência: danos morais por abandono afetivo. A interdisciplina sintoniza o direito de família com o direito à família. In: HIRONAKA, Gisela Maria Fernandes Novaes (Coord.). A outra face do Poder Judiciário. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

LEÃO, Celina Gontijo. Análise da pretensão de responsabilidade civil por abandono afetivo. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8114. Acesso em: 14 jul.2009.

LOPES, Renan Kfuri. Panorama da responsabilidade civil. Adv Advocacia Dinâmica: Seleções Jurídicas. São Paulo: COAD, nov. 2006.

MADALENO, Rolf. O preço do afeto. In: Pereira, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coords.). A ética da convivência familiar. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Deveres parentais e responsabilidade civil. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, ano VII, n. 31, p. 39-66, ago./set. 2005.

SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Caso real de abandono paterno. Disponível em: http://ultimainstancia.uol.com.br/new_site/colunas_ver.php?idConteudo=23569. Acesso em: 14 de jul. 2009.

 




Autor: Laura Affonso Costa Levy


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