BOM DIA, BOA NOITE!



 

BOM DIA, BOA NOITE!

 

Monólogo

 

 

 

Nota: Este monólogo procura um bom ator; alguém que sinta, em suas fibras todas,

o drama que descreve. 

Alguém capaz de transmitir sensações tão diferentes quanto a  alegria, a preocupação, o desespero e a resignação que se alternam, no rosto e na voz dele, em pouco menos que quatorze minutos: o ciclo inteiro da peça.    

 

 

 

 

 

Ato primeiro

A cena está às escuras. É um quarto preto, completamente sem luz.

O ator sentado no centro do palco. Um spot o ilumina fracamente, de cima.

A figura é apenas esboçada.    

 

 

“Bom dia! Bom dia!

O dia de hoje está lindo!

Sinto o calor na pele, e onde existe calor, deve haver luz.

Luz! Uma palavra estranha, esta; esquisita.

Não tenho a menor idéia de como interpretá-la

Vivo na escuridão mais completa, desde que nasci, desde que me achei gente.

Má formação das retinas– disseram - um defeito congênito, herdado de minha mãe.

Sem remédio, sem conserto, pelo menos quando nasci.

Como? Se minha mãe era cega?

Não, não! Graças a Deus, enxergava muito bem.

A vida toda.  A vida que me dedicou., que gastou cuidando de mim

Desde pequeno, a voz dela me embalou.

Reconheceria seu timbre entre centenas.

E não reconheço só a  voz, não:  através das inflexões, do modo de articular, da pressa ou da lentidão com que pronuncia as sílabas, posso interpretar o seu estado de espírito; se ela esta zangada ou triste, se está feliz ou simplesmente sossegada.

Alguém me repete o tempo todo que estou na escuridão.

Não consigo entender o que é a escuridão; creio que seja o contrário de luz, mas não chego a alcançar  o significado de  nenhuma das duas.

E temo que ninguém saiba.

Por exemplo, o senhor, aí, na segunda fila; o senhor mesmo, sim; pode me dizer, em poucas palavras o que é a luz? E a escuridão?  

Talvez, então, aquela senhora simpática, de vestido azul, lá no canto da terceira fila; poderia me explicar o que entende por “luz” ?

Não façam cara de espantados; será que ninguém até agora se deu ao trabalho de perder alguns minutos para assimilar a idéia de luz e trevas?

Obrigado, da mesma forma; obrigado.

Agradeço ao senhor da segunda fila e à senhora do canto da terceira; não os vi, claro; foi o contra regra,  quem os escolheu...

Como dizia, vivo nas trevas; é a mesma coisa que dizer que vivo no ar; ou na água, ou  mergulhado num líquido qualquer.

Luz deve ser isso; apenas um líquido diferente. Um meio diferente.

Eu posso sentir a luz acariciando minha pele, penetrando através dos poros,  apesar de saber que  não devo confundir luz com calor e escuridão com  frio.

Mas continuo a ter a impressão, a sensação que a luz deve ser uma espécie de aquecimento,  que envolve todo o ser e se espalha por todas as coisas.

Minha escuridão é ampla, infinita;

Imagine-se  largado sozinho, nas trevas mais absolutas,  no centro de um espaço enorme, cujos limites você não pode alcançar - e nem enxergar, é claro.

Feche os olhos; tente entender esta situação.

Como se sente?  Mal, não é?  Muito, muito mal.  

A primeira atitude instintiva e  de se deitar – porque falta o equilíbrio, não existem pontos de apoio; você está se defrontando com o infinito.

Depois, vem o desejo de se encolher, de se enrolar, de  desaparecer, até, para livrar-se da ameaça de mil inimigos, cuja presença você só pressente, imagina.

Se alguém estiver à espreita,  você não sabe, nem pode prever quando chegará, de onde virá, como será o ataque.

Só depois de algum tempo, visto que  nada acontece, você começa a relaxar; sente voltar uma certa segurança – mas o que estou dizendo, meu Deus! – é apenas um alívio, uma sensação de desafogo; um acostumar-se com o ambiente.

E apesar de continuar não enxergando nada – porque mesmo de olhos bem abertos, insisto,  a escuridão é total – o temor de uma agressão aos poucos se esvai.  

Mas a insegurança continua – a será sua companheira por todo o tempo que demorar a sua longa jornada nas trevas.

Passado este momento de tomada de consciência, que pode durar meses, você começa a exploração.

Tateia, estuda, apalpa, experimenta;  leva cabeçadas e tropeções; topa, bate, se machuca; aprende aos poucos onde estão  os obstáculos.

Mas erra repetidamente, antes de conseguir aprender como desviar-se deles.  

Médicos se sucedem,  pelo menos um a cada mês, oferecendo esperanças - e reiterando ilusões; testes e mais testes, para descobrir se sua cegueira não é apenas uma tramóia, uma fraude,  para ganhar algum dinheiro do Instituto.

E logo vêem que é cegueira de verdade, da pior espécie, não uma perda progressiva da acuidade, não o apagar-se de uma vela trêmula,  mas a escuridão total, congênita, infinita. Ai, eles somem. E tudo cai novamente no vácuo

Por muito tempo  ouvi o choro contido de minha mãe, que pagava toda noite com seu desespero o preço da  coragem que me transmitia durante o dia .

Ensinou-me a ler braille, abriu as janelas do saber, para que eu pudesse enfrentar melhor o mundo dos que enxergam; o mundo de vocês..

Infundiu-me coragem, postura, ambição e  disciplina.

Transmitiu-me conhecimento, paciência; e acima de tudo, ensinou-me a viver.

 

Pois hoje, finalmente  está começando um novo, glorioso dia de fé, a esperança se reacende e vibra.

Vou ser operado; dizem que tem grandes chances.

De resto, pior do que está não pode ficar.  

Animado? Feliz? Não. Positivamente, não

Só aflito, como um pássaro, saindo do ninho  no seu primeiro vôo, sabendo que deverá bater as asas sem parar e enfrentará um mundo desconhecido e maravilhoso, cheio de belezas e de perigos.

O médico chama; tenho que me despedir.

Obrigado por terem sido pacientes e compreensivos comigo.

Se não nos encontrarmos mais,.....adeus a todos..”

Obrigado, obrigado....

 

Fim do primeiro ato.

O ator sai da cena,

As luzes acendem-se

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ato segundo

........................

O mesmo ambiente, agora com  uma luz muito tênue

O ator está com umas bandagens, que vai retirando aos poucos, desenrolando-as da cabeça. A cada gaze que cai no chão, a luz aumenta um pouco, muito lentamente. Deve alcançar o máximo no fim do ato

 

 

 

Finalmente!

A operação foi um sucesso!

Complicada, cara, demorada e dolorosa, mas deu resultado!

Parece que vou poder enxergar por fim este maravilhoso mundo em que estamos.

Ainda não acredito!

Ontem,  numa curtíssima ante-prima, o médico me deixou entrever rapidamente o rosto de minha mãe.

Foi um momento mágico, maravilhoso. Chorei.

Era o primeiro vulto que via – a enfermeira comentou que devo estar vendo ainda tudo enevoado . - “Fora de foco” -  ela disse. “Mas numa semana, tudo vai se ajustar”.

O rosto que vi não foi uma novidade; sabia exatamente como era feito, pois  muitas e muitas vezes meus dedos passearam por ele,  enquanto procurava fixar suas formas, o feitio da boca, do nariz, do queixo, o caminho áspero das suas rugas e  das suas lágrimas.

Achei os cabelos bonitos, mas não saberia definir sua cor; e nem a dos olhos.

Agora devo aprender a distinguir  branco e  preto,  vermelho e  azul,  amarelo e  verde. As formas são todas conhecidas, as texturas também; mas as cores...

São elas que dão alma às coisas.

Achei que os objetos não tinham alma, porque não sabia o que as cores significam!

É todo um aprendizado que me falta. 

Voltei a ser uma criança e tenho que aprender tudo, de novo.

Até o equilíbrio é diferente.  Devo reaprender a andar; a subir uma escada; a calcular as distâncias.  Pela primeira vez vou poder correr.

Mas como é complicado o mundo em que vocês vivem!   

Tão mais fácil  ser levado pela bengala, pelas vozes, pelos ecos,  pelos mil ruídos que acompanham a vida! 

Os olhos distraem os outros sentidos; os cheiros, os zumbidos, a vibração de todas as coisas vivas, passam para um segundo plano, quando você pode aguçar a vista e julgar tudo, de longe,  com uma simples olhada.

Ou talvez eu seja radical demais. Os olhos são o complemento mais importante, um meio essencial na aquisição do conhecimento.

Mas ainda, como todos vocês, não consigo definir o que é a luz.

Só sei que é o dom mais importante que recebemos; e eu dou testemunho da falta que faz.      

Sei que ainda vou me deslumbrar com as cores, com as formas, com o jogo de sombras e reflexos que estão por todo o lado - e pelos quais todos passam, sem perceber, sem se admirar, sem se comover.

Precisaríamos ficar cegos por um dia,  para podermos descobrir e apreciar o verdadeiro valor deste sentido.

Preciso descansar, agora. Obrigado a todos, mais uma vez, pela paciência.

Até logo.

 

 

 

 

 

 

Ato terceiro

A luz está acesa. Irá se apagando aos poucos, ao longo do monologo. .

 

 

Boa tarde.

Já se passou um mês, da operação.

As coisas não estão indo muito bem.

Os médicos não sabem o porquê, mas estou perdendo a visão.

Definitiva e irreversivelmente.

Os cantos dos ambientes em que me encontro  vão ficando escuros, indefinidos;

Os objetos perdem seus contornos, suas formas, suas cores.

Em alguns momentos, já vejo apenas sombras e percebo que é como se o véu da noite caísse rapidamente sobre todas as coisas.         

Mas não estou infeliz; não me sinto desesperado.

Recebi uma benção, a de enxergar, de contemplar, mesmo por um curto espaço de tempo, a maravilha da natureza, os rostos e as figuras humanas, o que o homem conseguiu produzir, e as campinas sem fim, o balanço das espigas, as cores do arco íris, as estradas,  as florestas; e as estrelas, cujo brilho nunca poderia ter imaginado se não as tivesse visto.

É tudo um amplo cenário,  um grande espetáculo, no qual podemos nos integrar,  curando os nossos males, nossas tristezas, nossas imperfeições.

Agora, posso dizer adeus a tudo isto.

Sinto que vivi.

Teria pena se não tivesse conseguido me debruçar no infinito, como vocês podem fazer todos os dias.

Quero deixar um recado. Do fundo da minha cegueira, que me alcança com a rapidez com que a tarde cai, quero que vocês todos vejam, olhem, observem, apreciem tudo o que está em volta. E que alimentem suas almas com estes espetáculos intensos e maravilhosos, que a vida nos mostra.

Eu, vou voltar à minha velha bengala branca, fiel amiga de toda uma vida.

 

 

Desculpem se incomodei. Boa noite, gente; boa noite.

Esta vai ser, sem dúvidas, mais uma noite inesquecível!  

. 

A luz se apaga.

O ator sai tateando.

Cai o pano.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

      


Autor: Romano Dazzi


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