O SONÂMBULO



O SONÂMBULO

Nasci pobre, de família pobre, no sertão, longe de gente, de carros, de rádio, luz elétrica, televisão, escola, etc, etc. e tudo e tal.

Quando reconheci que era gente, tinha sete anos de idade. Colocaram-me na escola, escola de pobre, de tábua, sem cantina, sem biblioteca, sem banheiro. Para dizer a verdade era quase igual as escolas de hoje. Só que essa escola já ficava na cidade, cidadezinha do interior, cidade pequena, com pouca gente, todos sem ambição alguma. Aí fiz o primário, o ginásio, o científico e acabaram os estudos para mim. Eu já me formara, já era bacharel, não sei de quê. Eu, porém, não me contentava em ter só aquela ninharia de estudo. Arrumei os bagulhos e parti para a cidade grande. O ônibus velho corria naquela estrada toda esburacada. O carro mais parecia um amontoado de lataria velha. E juntava tudo na estrada: barulho de carro, poeira, buracos, lama e o pior - com uma super lotação.

Assim que entrei na cidade grande já estranhei bastante. O movimento era enorme, carro pra cá e pra lá, gente correndo pra todo lado. E pipoqueiro, e picolezeiro e espeteiro e mascate, cada um querendo vender suas bugigangas.

Descendo do carro com a baita mala de fibra, umas pastas nas costas, umas idéias na cabeça, procurei um lugar para ficar. Um senhor idoso se encarregou de me levar a um alojamento, após dar-lhe uma certa paga. Aceitei e ele me levou a um hotelizinho de 5 estrelas. Cinco estrelas abaixo do hotel mais vagabundo que existe. Fiquei nesse mesmo, já que não diferenciava muito de minha casa que também não tinha nada.

Fiquei aí durante um mês. Revirei a cidade de pernas para o ar procurando emprego. Nada encontrei. Fiz concursos e testes em vários lugares. Passei em todos, mas as instituições estavam sempre lotadas. No concurso que fiz na universidade, passei nos primeiros lugares, mas como faria o curso se não tinha como me manter? Quando o dinheiro acabou, voltei para a cidadezinha disposto a não retornar à cidade grande, mas chegando lá, todos me incentivaram, me puseram fogo, me arrumaram dinheiro para que eu continuasse os estudos, de modo que retornei.

Fui para o mesmo hotel. Novamente fui procurar emprego. Fiquei com os pés inchados, encontro um amigo que me indica um serviço. Fui lá e o consegui. O dinheiro acabou e procurei outros amigos que me indicaram um alojamento de rapazes, pois ficaria mais barato que o hotel. Aceitei e parti para o tal alojamento.

A dona do alojamento disse não ter vaga. Estava lotado. Havia sim, uma só, somente uma. Só que no quarto morava um rapaz, boa pessoa, muito gentil, educado, jogador de futebol profissional, não bebia, não fumava, não andava com amigos e mulheradas, uma pessoa típica para conviver comigo. Ah! Sim. Só tinha um probleminha: era sonâmbulo. Era sonâmbulo, motivo pelo qual ninguém queria morar com ele. Achei que não era problema nenhum. Muita gente acordada raramente sabe o que faz, imagine um dormindo. Aceitei o quarto e fui para lá.

O dia passou calmo. Era uma casa bem ampla, banheiro nos fundos, havia muitos rapazes, TV a cores, a dona muito boa de papo. No final da tarde o companheiro de quarto chegou. Fui apresentado a ele e fui muito bem recebido. Achei que tudo ali daria certo para mim.

Durante uns dez ou quinze dias tudo foi calmo, muito calmo. Após estes dias a coisa começou. Ele levantava, geralmente à meia noite, pulava de súbito da cama e já ia gritando: "cadê ele, pega ele, eu pego esse cara, quero deixá-lo moídinho com estas mãos". Só se via que estava dormindo porque permanecia de olhos fechados, mas andava pra lá e pra cá, nunca tropicava com os móveis.

Eu não conseguia dormir mais de maneira alguma. Ele era um bruta monte, tipo Sansão e eu era franzino, fraco, estava até anêmico e desnutrido. Caso ele se encrespasse comigo e avançasse para o meu lado, agarrasse o meu pescoço e me amassasse como ele falava, eu estaria perdido. Era uma vez eu. De modo que fiquei de butuca daí por diante. Se a coisa piorasse eu pularia fora do quarto e me mandaria.

A coisa continuou assim. Eu não tinha para onde ir, dinheiro pouco, sem parentes importantes, nem conhecidos endinheirados. Enquanto desse para levar eu iria levando.

Um dia a coisa piorou mesmo. Ele levantou mais ou menos à uma hora da manhã, dessa vez com os olhos esbugalhados e gritando: "cadê ele, cadê ele, eu acabo com este infeliz". Passou a mão no revólver e foi bala pra todo lado. Nem vi a hora em que abri a porta e saí do quarto e caí para a rua numa desabalada carreira. Passei o resto da noite num bar de sinuca conversando com os amigos.

No outro dia cheguei cedo no alojamento, conversei com a velha, disse que não iria morar mais naquele quarto. Após muita conversa, ela conseguiu outro para lá. Fiquei mais tranqüilo, mas o outro permaneceu pouco e se mandou de lá. Coitado! Deve estar correndo até hoje. Nunca mais eu quis dormir em quarto de sonâmbulo.


Autor: Henrique Araújo


Artigos Relacionados


O Chão

Para AlguÉm Que EstÁ SÓ

Acredite Se Quiser...

Na Lapa: A Zona Do Agrião ...

Estupro Mental

Passou Desta Para A Melhor

Velocidade