Pulera e Birú: Indícios da capoeira na Porto Alegre dos séculos XIX e XX



Jane Rocha de Mattos[i]

Abordar a temática da capoeira em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul no século XIX e na transição deste para o século XX é deparar-se com a escassez de fontes e de trabalhos monográficos na historiografia riograndense. Aliado às condições de uma tradição cultural dos segmentos populares e devido a sua proibição através do Código Penal Brasileiro, pouco se sabe sobre essa prática no sul do Brasil.

As fontes documentais exigem um trabalho de "garimpo". Encontramos indícios dessa prática ou jogo dispersos em periódicos, nos processos crimes, na documentação de polícia, nas crônicas e em inventários. Os casos abordados neste artigo inserem-se entre as últimas décadas do século XIX e início do século XX, em Porto Alegre, RS, em um contexto de mudança do trabalho escravo para o livre, período em que os limites territoriais e simbólicos da cidade são redefinidos. As zonas limítrofes da área central, os arraiais (antigas zonas de chácaras com suas senzalas) adquirem novas configurações sendo ocupadas paulatinamente por segmentos mais empobrecidos da população (negros e imigrantes pobres) que foram "empurrados" do centro. Assim, com o processo de remodelação, dentro da nova ordem urbana, inicia-se a derrubada dos antigos casarões utilizados como cortiços, onde os aluguéis eram menos onerosos, e também a eliminação dos becos para abertura de novas ruas, mudando, assim, a configuração urbana.

Este artigo não se propõe a entrar na discussão da origem da capoeira (África ou Brasil), mas a partir de alguns indícios, a investigar os sujeitos, os grupos e espaços da cidade de Porto Alegre, onde ela era jogada, tentando descortinar as práticas populares, códigos de honra, demarcação dos territórios, bem como as estratégias, as relações de sociabilidades e os conflitos que possam estar presentes no espaço da rua, dentrocontexto de transição da virada do séculoXIX. Quanto aos sujeitos aqui apresentados recorremos ao que Ginzburg (1987, p.26) nos coloca,

[...] se a documentação nos oferece a oportunidade de reconstruir não só as massas indistintas como também personalidades individuais, seria absurdo descartar estas últimas. Não é um objetivo de pouca importância estender às classes mais baixas o conceito histórico de 'indivíduo'. [...] Alguns estudos biográficos mostraram que um indivíduo medíocre, destituído de interesse por si mesmo - e justamente por isso representativo - pode ser pesquisado como se fosse um microcosmo de um estrato social inteiro num determinado período histórico.

Dos trabalhos acadêmicos, nos quais a temática capoeira foi desenvolvida[ii], geralmente centram-se na sua gênese ou abordam o período anterior a sua proibição, o ano de 1890. O Código Penal da República de 11 de Outubro de 1890, decreto n.º 847 considerava a prática da capoeira como crime punível com dois meses de prisão, e o dobro, em caso de reincidência[iii]. Porém, mesmo proibida, após esta data, foi amplamente praticada e reprimida durante toda a República Velha. Entre as monografias[iv], dissertações e teses no Rio Grande do Sul, encontram-se alguns trabalhos acadêmicos que tratam a temática da escravidão e que citam algumas práticas da capoeira como resistência frente a essa, porém, não encontramos trabalhos científicos que aprofundassem o tema.

Dentro da bibliografia disponível encontramos os cronistas e os memorialistas que nos apresentam a "vida" da cidade através de relatos dos personagens populares, de nomes de ruas e dos bairros, bem como suas origens e também dos grupos que a vivenciavam. O cronista Achylles era um flâneur da cidade, que passeava pelas ruas descrevendo o seu cotidiano, seus lugares, sua gente. Suas descrições remetem-se ao último quartel do século XIX, em Porto Alegre. A prática da capoeira também estava inscrita nas passagens de suas longas crônicas, diz Achylles:

 

"Atavismo ou simplesmente imitação, o caso é que há sempre na infância uma tendência muito acentuada para a espada, para a guerra, para todos os armados em luta. (...) Em Porto Alegre (...) havia os "Tinteiros e Bagadús". Estes eram constituídos pelos rapazes do terceiro distrito, e aqueles pelos de outra zona da cidade. Estes dois partidos digladiavam-se terrivelmente. Armavam conflitos formidáveis, eram irreconciliáveis e não se pense que "Tinteiros"e "Bagadus" se compunham somente de garotada vagabunda. Não. Muitos rapazes de boa família faziam parte, como chefes ou simples soldados, desses grupos arruaceiros que em certos dias da semana, punham na "urbs" uma nota belicosa. Além disso, nesse tempo, a cidade estava infestada pela praga terrível dos "capoeiras". Nessas lutas "domingueiras" (eramsempre aos domingos) entre "Tinteiros e Bagadús" as armas empregadas era a capoeira e a pedra [grifo nosso]." (ACHYLLES,1994,p.95)

Achylles Porto Alegre (1848-1926) revela que a capoeira era recorrente nas ruas das cidades, não praticada somente por populares "os Bagadús" que habitavam ao sul do lago Guaíba (geralmente associado aos territórios negros), mas também por segmentos de classe média e alta da cidade, geralmente estudantes egressos de famílias tradicionais, "Os Tinteiros", que ocupavam as partes altas da cidade (3° Distrito). O autor aponta ainda para uma demarcação simbólica dos espaços, onde estes eram motivos de conflitos nas famosas domingueiras. Nesse sentido, a transformação da cidade real, na virada do século, com a modernidade, não somente mudava os contornos e esquadrinhamentos com as novas ruas para o footing, como também mudava práticas e comportamentos, alicerçadas em teorias científicas que explicavam as diferenças sociais, que encontrava seu contraponto na cidade simbólica, através da resistência popular, com a permanência das tradições, com a formação dos territórios negros habitacionais e inter-racionais, como o Areal da Baronesa e a Colônia Africana[v].

Entre as teorias desenvolvidas no final do século XIX, que explicavam as diferenças e a inferioridade das raças, estava o atavismo utilizado por Achylles e também pelo advogado forense, Germano Hasslocher, na defesa de Fellipe, escravo da Baronesa do Cahy. No processo crime instaurado é relatado que no ano de 1886, Fellipe, crioulo, 12 anos, solteiro, escravo doméstico, morador na casa da Baronesa do Cahy, filho de Antônio e Benedita, entrou em conflito com Manoel, de mais ou menos 18 anos, solteiro de cor preta, de condição ignorada, que por causa de um grave ferimento, veio a falecer. Os ferimentos que causaram a morte de Manoel foram descritos com grande riqueza de detalhes no processo crime. Segundo o réu, Fellipe (12 anos), Manoel (18anos) lhe devia uma quantia em dinheiro de jogo e não queria lhe pagar, prometendo-lhe ainda dar-lhe bofetadas, diz o réu,

"que levando alguns "sopapos" de Manoel, correndo ele para a casa de leiloes na rua do Commercio de onde foi expulso, foram então para uma outra loja de onde também foram expulsos. Manoel ameaçou-lhe com uma tábua dizendo "que lhe metia nos olhos" e bateu-lhe no rosto, Manoel ia bater-lhe novamente, mas ele para assustá-lo pegou de um quicé, ponta de faca, que pouco antes havia "achado" na rua e o feriu correndo para a casa da Baronesa" [vi].

Neste processo uma das testemunhas, Guilherme Brandão, português, alfaiate, relata que os dois crioulos estavam brigando, supondo estarem jogando capoeira [grifo nosso]. Outra testemunha dizia que Fellipe carregava um canivete, arma branca comum entre os capoeiras. No decorrer do processo, o advogado Haslocher ressalta que o réu fora entregue por sua mãe, ex- escrava da Baronesa do Cahy a esta para dele tomar conta por não poder contê-lo por seu procedimento. Este foi um dos argumentos utilizados para corroborar o discurso em relação a Fellipe, um menino portador de uma personalidade indomável, que nem a família poderia controlá-lo. Por outro lado, justifica que a criança Fellipe de 12 anos, ainda esteja na condição de escravo, mesmo tendo nascido pós Lei do Ventre Livre, já que a mãe o "entregou" de livre vontade.

Na defesa, Germano Haslocher, recorre a teoria de Lombroso (Cesare Lombroso, médico italiano, influenciado por técnicas de frenologia -estudo do crânio- e antropometria - tamanho do crânio) afirmando que a criminalidade poderia ser determinada pelo tipo físicoe também poderia ser determinada pela hereditariedade. Na sua obra de 1876, Lombroso escreve na sua obra L'Uomo Delinqüente queum criminoso poderia ser identificado por suas características físicas, antes de tornar-se um. Dessa forma, ele visitava escolas, observando crianças, tentando identificar futuros delinquentes. Os atavismos descritos podiam ser físicos: mandíbula grande, altos ossos da face, pele escura, orelhas chapadas, braços compridos, rugas precoces, testa pequena e estreita, etc. Já os atavismos mentais, pressupunham maldade, irresponsabilidade, desejo de mutilar e extinguir a vida, os atavismo sociais, como a epilepsia, a pederastia e a prática da tatuagem. Com as bases nas teorias de Lombroso, Sebastião Leão, médico da Casa de Correção de Porto Alegre, analisava os detentos, "desmembrando" esses em braços, olhos, crânios e narizes, separando-os por raças (negras e brancas) e por tamanho (altura), propondo um código penal especifico para cada raça.

Germano Hasslocher em defesa de Fellipe utiliza-se do discurso do não discernimento, ou seja, que o conflito ocorreu com toda lógica da falta de previdência da infantilidade de dois garotos. O advogado Hasslocher retoma o discurso de Lombroso e assim argumenta:

"Os atos são sempre manifestações da personalidade" Felipe em rixa com Manoel, mata-o porquê tem "poracaso" em mão um canivete e se não tivesse talvez atirasse-lhe uma pedra e no dia seguinte iriam ambos, algoz e vítima, de parceria jogar bolas nas ruas.Se alguma idéia de crime dessa ordem lhe passasse pelo cérebro infantil, seria como uma fantasia de criança e que mais tarde, quando um homem em pleno senhor de suas faculdades, de transformar-se um uma idéia fixa, sendo assim um germen de delito que avolumou-se.(...) E assim, como já dissemos, os atos são sempre a manifestação da personalidade, o réu assim procedendo não manifestou-se um criminoso de ma Fé e sim uma criança que não tem compreensão da vida, que foi impelido unicamente por uma natureza juvenil e em via de formação cujo cérebro não ajuda a discernir o bem do mal em todas as suas manifestações" [vii]

O processo encerra-se com a decisão do júri que condenou o réu, já este agira com agira com discernimento, a uma pena de 30 dias de prisão. Infelizmente, nada podemos investigar da vítima Manoel (de condição ignorada). O que podemos inferir é que este já estava na condição de livre, pois não houve nenhum reclame no decorrer do processo de seus possíveis senhores. Conseguimos apurar pouco da trajetória de Fellipe, mesmo no período posterior ao cumprimento de sua pena. Mas, podemos deduzir que Fellipe aprendera capoeira com os escravos da senzala da Baronesa ou nas ruas com os grupos que a praticavam, como os Bagadús.

Outro conflito acontecido na brincadeira da capoeira, alguns anos antes, envolveu dois escravos. No processo criminal de agosto de 1872[viii], o réu João do Prado, vindo da cidade do Rio de Janeiro, 21 anos, solteiro, cozinheiro, escravo de Thereza Cammila de Lima e Silva, filho de Genoveva, de nação Conga, escrava, nascida na África, é acusado de causar ferimentos no pardo Leonel, escravo, que acabou morrendo. João do Prado em, seu relato dizia ser amigo do pardo Leonel e que os dois reuniam-se costumeiramente para brincar [grifo nosso] nas vendas de Antônio Francisco de Mello, situada na Rua da Olaria, (atual Gal.Lima e Silva – limites do Areal da Baronesa), e que no dia do acontecimento, brincando ambos, como de costume, e jogando capoeira [grifo nosso], o mulato Leonel (que para o escrivão na sua descrição era pardo) lhe dera uma cabeçada e que ele, o acusado, dera um golpe de enxada na cabeça de Leonel sem esperar que produzisse tão grande mal. O desfecho da história dá-se com a morte de Leonel, e com 50 açoites para o acusado, sendo que sua senhora ainda deveria mantê-lo com um ferro no pescoço por seis meses, mostrando assim o perigo que representava este escravo. Porém, a pena não foi aplicada, já que João do Prado estava na condição de livre, pois ele fora alforriado alguns meses antes, no Rio de Janeiro. Sua pena foi substituída do açoite para a prisão simples de dois anos. Salientamos que esse processo traz muitos elementos importantes, principalmente sobre a condição ilegal de escravo (provavelmente trazido ilegalmente) na qual estava submetido João. Provavelmente, João do Prado e Leonardo eram escravos de propriedades próximas e, portanto, a solidariedade, a capoeira e a proximidade os tornaram amigos, como relatam as testemunhas, porque "costumavam brincar de capoeira". O local onde aconteceu o desfecho, nesse período, era ainda de predominância de chácaras, porém, duas décadas depois, se tornava um dos arraiais mais populosos da cidade - o Arraial da Baronesa ou Areal da Baronesa, abrigando uma população majoritariamente negra e pobre.

No noticioso Jornal Gazetinha, de 03 de Novembro de 1898, o periódico ironicamente atenta para o atraso da polícia administrativa na repressão à capoeiragem, diz o articulista:

"Na Rua 24 de Maio dois homensManoel Pulera(a alcunha já refere a sua fama) e Manoel Joaquim dos Santos jogavam capoeira [grifo nosso]. Depois de alguns tombos, Manoel arrancou uma faca de mesa que trazia e tentou ferir o companheiro Pulera. O brinquedo durou cinco minutos sem que aparecesse um guarda da ordem pública"[ix].

A Rua 24 de maio localizava-se no centro da cidade, lugar do footing dos finais da tarde, portanto local de extrema vigilância por da ordem pública e pela disciplina. Os dois "jogadores", por sua vez, provavelmente pertenciam às camadas populares. A alcunha que levava um dos envolvidos, "Pulera", é também indicativo de que a capoeira era, em parte, reconhecida dentro da camada popular urbana porto-alegrense, uma continuidade da ironia do articulista do jornal. Este ressalta ainda, a demora da chegada e a consequente repressão por parte da polícia administrativa, nesse período, responsável pelo policiamento ostensivo e preventivo da cidade. Essa força policial, popularmente conhecida como ratos brancos, em função de seu uniforme, entrava constantemente em várias contendas com os soldados da então Brigada Militar (responsáveis pela vigilância dos seus quartéis e atuando nos conflitos dentro do Estado) que se reuniam em bares próximos aos quartéis para reuniões que incluíam as cantorias, o álcool e o proibido jogo do osso. Sobre os soldados da corporação da Brigada (que tinha em suas fileiras negros e capoeiras que lutaram na Guerra do Paraguai), seu espaço de moradia e sua relação com a capoeira está descrita nas memórias de Ary Veiga Sanhudo que relatava:

"No Areal da Baronesa somente as pessoas que conheciam seus moradores arriscavam-se a entrar, e nem o comandante se atrevia a tanto, pois muito antes de qualquer aproximação, um negro capoeira gingava o corpo, virava a cabeça e o rico pé de anjo assentava na cara do atrevido". (SANHUDO, 1979, p.206)

O Areal da Baronesa, na área hoje conhecida como Cidade Baixa, quase no limite com o Bairro Menino Deus, foi uma região de chácaras até o último quartel do século XIX, abrigando várias senzalas, sendo a mais conhecida a chácara da Baronesa de Gravataí.Essa área era cortada pelo Riacho (arroio Dilúvio) e do outro lado ficava à beira do rio Guaiba, constituindo uma grande faixa de areia, o que provavelmente deu a denominação ao lugar- Areal da Baronesa. O Riacho criou uma fronteira física e simbólica para este espaço, onde moravam os Bagadús, citados por Achylles Porto Alegre. Com a remodelação da área central da cidade, os pobres que habitavam os cortiços dessa região migraram para esta região insalubre da cidade. Partes dessas propriedades foram loteadas e outras foram vendidas ao Estado para a construção dos quartéis da então Brigada Militar. E apesar dos quartéis, a região do Areal, no imaginário da cidade, era conhecido como um lugar perigoso, o lugar das emboscadas, desde o início do século XIX. Esse título vai permanecer no imaginário da cidade ao longo do século XX, é o que percebemos na descrição do articulista do Diário de Noticias de 1927, na matéria intitulada "A Baroneza das mãos tintas de sangue...", em que o articulista comparava o areal da Baronesa a "figura de um mulato mal encarado, com um chapéu quebrado na frente, ponta de cigarro ao canto do beiço, o 'pinho'das noitadas turbulentas sob a axila esquerda, um punhal na cava do colete e um 'osso' viciado no bolso do paletó. Indaga o articulista: quem entraria neste espaço? Para ele somente os heróis autênticos ou suicidas aventuravam-se por lá. Era lugar de moradia de soldados, que se uniam aos habitantes do local para as emboscadas de morte, em suas vielas escusas e casebres de madeira cobertos de zinco e folhas de flandres."[x]

Ary Veiga Sanhudo (1979), cronista da cidade nos anos 50, recorreu à memória popular e nos deu duas referências importantes: onde seria praticada a capoeira e qual a origem dos capoeiras, o que provavelmente se verificava, pois os soldados que entravam nas fileiras da Brigada vislumbravam a possibilidade de trabalho remunerado, mesmo com o soldo baixo, comparado ao salário dos jornaleiros. Não havia critérios de cor e nem de conhecimento bélico. Muitos dos negros que se tornavam soldados, já haviam lutado por vezes em conflitos externos, eram egressos do exército, tendo lutado na Guerra do Paraguai, conflito que ficou conhecido também pelo grande número de capoeiras que tomavam à frente nas batalhas, o que possivelmente venha a corroborar a memória de Sanhudo sobre esses soldados.

É dentro do Areal Baronesa que ocorre uma contenda envolvendo soldados da Brigada. O processo crime analisado data do ano de 1921[xi], onde Ulisses Jeronimo da Silva (vulgo Birú), com 18 anos, jornaleiro e residente a Rua da Olaria- Rua Gal. Lima e Silva, foi passear no Areal da Baronesa, na noite de 24 de dezembro do ano de 1921, na Rua Baronesa de Gravataí, em frente ao armazém instalado no prédio no 107, e feriu mortalmente Antonio Pinto Lima, com um golpe de adaga, que lhe seccionou a veia femural.

O relatório do delegado de polícia do 2o distrito, descrevia o acontecido. Na madrugada do dia 24, achava-se caído sobre a sarjeta da Rua Baronesa de Gravataí o indivíduo Antonio Pinto Lima, que apresentava um ferimento na coxa esquerda, falecendo posteriormente na Santa Casa. Nas averiguações, Casemiro Rosa, padeiro, morador da Rua São João número 23, que andava em companhia de Antonio Pinto, foi detido na delegacia e declarou que Antonio fora ferido por um indivíduo mulato, que trajava paletó escuro, calça branca, boné de casimira, e botinas amarelas tipo "neolin", depois de uma provocação e uma consequente discussão entre ambos.

No decorrer das averiguações, o delegado chamou o acusado Ulysses, vulgo Birú para depor. Esse declarou ter 18 anos, profissão cozinheiro e morador da Rua da Olaria (Lima e Silva) no 982c. Disse que, por volta das 23 horas do dia 24 de dezembro passava pela Rua Baronesa de Gravataí, quando se deparou com diversos rapazes a quem não conhecia, e que se achavam ali cantando modinhas ao som de violão e cavaquinhos. Ele manifestou a vontade de compartilhar aquela reunião cantando também, mas que a isso se opuseram os aludidos rapazes, dizendo que ali somente "cantavam homens", e, diante da objeção que fez o grupo, ele saiu. Naquele momento recebeu uma bordoada com uma lenha. Diante disso, puxou uma adaga e para defender-se, deu vários golpes a esmo, não tendo a intenção de ferir ninguém. No meio desta balbúrdia surgiu também um dos rapazes do grupo com uma navalha [grifo nosso], fazendo com que o declarante mais golpes fizesse [grifo nosso]. Segundo ele, em dado momento, percebeu que havia ferido a um dos rapazes, e nessa ocasião todos, menos o ferido, desapareceram. Ele saiu dali para sua casa, onde guardou a arma criminosa e substituiu o boné que usava por um de picareta (chapéu de palha). O réu foi condenado a 15 anos de prisão, conseguindo sua liberdade condicional somente em 1932.

Nesse processo a palavra capoeira não aparece no relato das testemunhas, o que podemos inferir como uma estratégia do grupo envolvido, pois a vitima Antonio e o grupo com quem estava, eram de soldados da Brigada. As testemunhas não citaram a prática do jogo entre a vítima e o réu, mas sim que as desavenças teriam começado por questionamentos de códigos de honra, revelando a cumplicidade para com a vítima que portava uma navalha e que provavelmente tenham entrado no conflito enfrentando Birú através da capoeira.

Esses indícios apresentados definem, por sua vez, não somente a existência da capoeira como algo segregado, restrito às senzalas, mas sim como algo praticado, jogado por vários segmentos da população, e que era recorrente aos habitantes da cidade, como ficou evidente no relato de uma das testemunhas que disse que os envolvidos estavam jogando capoeira. A incessante busca por fontes esparsas e o seu cruzamento podem trazer, além da capoeira, a trajetória desses sujeitos escravos ou livres e suas relações com a prática, descortinando as práticas sociais, a história social e a cultura popular da cidade de Porto Alegre da virada do século XIX.

BIBLIOGRAFIA

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KERSTING, Eduardo H. Negros e a Modernidade Urbana em Porto Alegre: A Colônia Africana (1888-1920). Porto Alegre: Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998.

MATTOS, Jane Rocha de Mattos. "Que Arraial que nada, aqui lá é um Areal" O Areal da Baronesa imaginário e história (1879-1921). Dissertação de mestrado em História. Cópia xerografada. Porto Alegre: PPGH/PUCRS. 2000.

PORTO ALEGRE, Achylles. História Popular de Porto Alegre. Porto Alegre: U.E./ Porto Alegre, 1994.

SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre - Crônicas da Minha Cidade. Porto Alegre, IEL/UCS, 1979.

SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Golpes de Mestres. Revista Nossa História. Biblioteca Nacional: Rio de Janeiro, n°5, 2004.

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Autor: Jane Rocha de Mattos


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