SOCIEDADE DO ESPETÁCULO



Nesta comunicação, nos empenhamos em apresentar a definição de ‘espetáculo’ tal como tematizado em A sociedade do espetáculo (1967) de Guy Debord. O nosso ponto de partida será a categoria reificação, percebendo as relações sociais entre as pessoas, em sua totalidade, determinadas por uma economia mercantil, nas quais, a forma-mercadoria se tornou preponderante sobre o todo da vida social, intensificando a coisificação do homem nessa atual sociedade e, toda essa atividade reificada dos indivíduos tornando-se a negação da própria realidade desses, na qual, o homem produz sua própria desumanização. Nessa sociedade do espetáculo, todos os indivíduos são subordinados a uma determinação abstrata que, submete por completo suas relações sociais. Portanto, concluímos que o trabalho quantitativo assalariado e a abundância na produção de mercadoria nesse meio de predominância do espetacular, se apresenta como principais elementos da reificação dessas relações entre as pessoas, considerando que o indivíduo nessa alienação não reconhece o que produz como seu e, para subsistir, precisa ter algo para trocar, sendo esse algo a sua força de trabalho, recebendo em contrapartida um valor [ um salário], transformando-se ele, dessa maneira, a própria mercadoria, e essa forma-mercadoria produzida é manifestada como determinante para toda a vida dos seres humanos.
Palavras-chaves: Espetáculo, Reificação, Abstrato, Mercadoria.

"...só como categoria universal do ser social total a mercadoria pode ser compreendida na sua essência autêntica. Só neste contexto a reificação surgida da relação mercantil adquire um significado decisivo, tanto para a evolução objetiva da sociedade como para a atitude dos homens em relação a ela, para a submissão da sua consciência às formas por que se exprime esta reificação, para as tentativas que aqueles levam a cabo no sentido de compreenderem este processo ou de se oporem aos seus efeitos destruidores, de se libertarem de servidão da 'segunda natureza' assim surgida..."[1].

O intento desse artigo é apresentar o conceito de 'espetáculo' tal como tematizado em A sociedade do espetáculo (1967) de Guy-Ernest Debord, obra qual, somente em 1988 teve sua primeira edição portuguesa, e, em 1997 na brasileira, já com a inclusão dos comentários sobre a sociedade do espetáculo feitos pelo próprio autor. 
                      
Guy Debord, seguindo de perto uma certa corrente marxista, aprofundando algumas de suas tendências e partilhando alguns de seus problemas, expõe seus textos de recusa ao modelo de vida cotidiana das pessoas na moderna sociedade, inicialmente, em alguns dos manifestos situacionistas e, mais adiante, em seu livro crítico A sociedade do espetáculo, denunciando o resultado da atividade humana na produção de mercadorias como algo que se opõe à humanidade a tal ponto de ameaçá-la de extinção.

O espetáculo é o estágio mais desenvolvido da sociedade baseada na produção e no fetichismo das mercadorias, onde a vida humana, nessa modernidade, se encontra inteiramente submetida a uma forma-mercadoria. A mercadoria manteve-se com uma forma na qual reveste os produtos da atividade produtiva do homem que, o trabalho assalariado espoliou de toda a humanidade e, essa misteriosa forma-mercadoria se autonomizou e passando a reger toda sociedade humana a sua imagem: "...a mercadoria é a práxis de poder: um modo de representação do mundo e uma forma de ação sobre ele; ela reduziu o conjunto da realidade social ao quantificável e instaurou a dominação totalitária do quantitativo, tendo sua extensão a todos os setores ainda não dominados da vida"[2].

 

A sociedade do espetáculo possui como essência à economia autonomizada, a reificação das relações sociais e a alienação do trabalho. Aqui o ponto de partida será a categoria reificação, percebendo que os homens vivem suas relações de maneira cada vez mais predeterminadas por uma economia mercantil, na qual, a forma-mercadoria é preponderante e, indubitavelmente predominante sobre o todo da vida social, robustecendo dessa maneira, a coisificação das relações entre as pessoas e, como conseqüência, toda essa atividade realizada pelos indivíduos se tornando a própria negação da sua realidade. Para Debord, "a economia submeteu a vida humana a suas próprias leis. Nenhuma mudança no interior da esfera da economia será suficiente enquanto a própria economia não for submetida ao controle consciente dos indivíduos"[3].

Debord, em sua audaz cruzada contra o poder abstrato do capital e, sem em nenhum instante reparando seu discurso crítico à estrutura da moderna sociedade, desequilibra as bases fundamentais e estruturantes responsáveis pelo processo de aceleração da desumanização do homem, evidenciando nessa sociedade espetacular o grau máximo da ação reificada entre as pessoas, as quais, se relacionam sob a predeterminação de uma forma-mercadoria, com suas atividades reduzidas a mera aparência do capital, onde "a economia toda tornou-se o que a mercadoria tinha mostrado ser durante sua conquista: um processo de desenvolvimento quantitativo. Essa exibição incessante do poder econômico sob a forma de mercadoria, que transfigurou o trabalho humano em trabalho-mercadoria, em assalariado, resultou cumulativamente em uma abundância na qual a questão primeira da sobrevivência está sem dúvida resolvida, mas resolvida de um modo que faz com que ela sempre torne a aparecer; ela se apresenta de novo num grau mais superior"[4].

 

Debord, não confronta apenas os projetos capitalistas de domínio, e sim, também as vicissitudes dos desígnios revolucionários que se denominam como a única e verdadeira representação do interesse da vida humana, os quais, na verdade não passam de igualmente atores espetaculares que ratificam cada vez mais o poder do abstrato nesse palco alienante, para ele, todos os sistemas sócio-políticos do mundo participam do reino da mercadoria e do espetáculo. De acordo com Guy Debord: ".. .todas as revoluções entram para a história, mas a história não transborda de revoluções"[5].

 

As relações sociais reificadas entre os homens na sociedade espetacular, na qual, as mercadorias assumem o papel nuclear da relação, tornando-se a contradição da vida dos indivíduos, ultrapassam às fronteiras das relações de trabalho - onde a única forma de sobrevivência dos homens é possuindo mercadorias para vender e comprar, cujo indivíduo é a própria mercadoria, visto que, troca sua força de trabalho por um valor determinado para sua subsistência - para a totalidade da sociedade humana, já completamente coisificada e, por conseqüência, fragmentada. "...o espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social..."(Sde, § 30).

A mercadoria produzida pelo o homem na moderna sociedade, aparece como algo exterior, com vida própria, onde, sua relação de troca se apresenta contraditoriamente independente; como uma coisa autônoma. No entanto, para realizar esse trabalho humano abstrato na produção dessas mercadorias foi necessário a força humana braçal e intelectual. Essa subsunção do trabalho humano concreto, nas relações de troca das mercadorias, na qual, o trabalho abstrato sobrepõe o trabalho útil, reflete sobre todos os setores da vida dos homens, havendo a inversão da realidade já vivida, onde o mentiroso mentiu para si mesmo; toda a vida cotidiana antes nunca explorada pelo capital - o lazer e o consumo dos homens -, está afetado pelo o processo da reificação. Os indivíduos tornam-se direcionados por uma cultura da lógica-mercadoria que eles produziram. De acordo com Debord:

"...o humanismo da mercadoria se encarrega dos 'lazeres da humanidade' do trabalhador, simplesmente por que agora a economia política pode e deve dominar essas esferas como economia política. Assim, 'a negação total do homem' assumiu a totalidade da existência humana..."(Sde, § 43).

A mercadoria tornou-se preponderante sobre o todo da vida social, cuja coisificação das relações entre os homens é generalizada, e toda sua atividade é também reificada, sendo ela [atividade humana], a negação da vida deles [dos homens]. Ora, nessa sociedade espetacular, todos os indivíduos são subordinados a um algo abstrato que submete cabalmente as relações sociais entre eles. Tendo o trabalho quantitativo abstrato e a abundância na produção das mercadorias como elementos fundamentais da reificação das relações sociais entre as pessoas, considerando que o ser humano nessa alienação não reconhece o que produz como seu, necessitando ele, para subsistir, ter algo para trocar, sendo esse algo, a sua própria atividade física ou mental, recebendo em contrapartida um valor [um salário], transformando-se ele, dessa maneira, na própria mercadoria, e, essa, passando a determinar toda vida dos indivíduos.

O espetáculo é um show alienante de um mundo real. É o meio de dominação do capital, no qual, nos deparamos com a "invenção" das pseudonecessidades. Ora, em todo esse palco teatral da vida, onde os atores e as cenas são reais, a vida humana se tornou uma mera especulação regida pela mercadoria - criada pelo próprio homem -, determinante na sociedade capitalista, a qual, a vida dos homens é estimulada por esse abstrato do capital, produzido pela atividade humana, intensificando, contraditoriamente, o processo de desumanização do homem. Para Debord:

"...a alienação do espectador em favor do objeto contemplado( o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes de necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo..." (Sde, § 30).

A vida humana, nessa moderna sociedade, está cada vez mais ameaçada, sendo, as relações entre os homens em sua totalidade reificadas pelo poder abstrato da mercadoria, predominante no capital, para Anselm Jappe, "...o problema está na independência atingida por essas representações [a mercadoria] que escapam ao controle dos homens e lhes falam sob forma de monólogo, banindo da vida qualquer diálogo. Elas nascem da prática social coletiva, mas se comportam como seres independentes..."[6], logo, essa autonomia das mercadorias surge no coração da sociedade como algo supra-sensível, com o posicionamento do indivíduo impotente diante dessas forças independentizadas sobre eles, poder esse, atribuído a mercadoria - inconscientemente - pelo próprio homem. Concordando com Debord:

"...o espetáculo é materialmente, 'a expressão da separação do afastamento entre o homem e o homem. A 'nova força do embuste' que nele se concentrou e que tem por base essa produção, pela qual com a massa de objetos cresce... o novo domínio dos seres estranhos a quem o homem fica sujeito" (Sde, § 138).

O indivíduo, nesse trajeto de autodestruição, é a própria imagem invertida de si, com a única possibilidade de realizarem suas pseudonecessidades se possuírem o mínimo de dinheiro para tais desejos. O homem na sociedade do espetáculo é dependente da circulação de mercadorias para a manutenção da sua vida, e, contraditoriamente, a mercadoria é algo sensível e estranho que se torna um algo metafísico; supra-sensível, imposto pelo o homem ao homem como legítimo, pela imagem da forma-mercadoria produzida por ele mesmo, é "quando o mundo real se transforma em simples imagens e, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico..." (Sde, § 30).

A imagem e o espetáculo em Guy Debord, devemos compreender como um estágio posterior da forma-mercadoria, onde, possui em geral o caráter de redução da multiplicidade do real a uma única forma abstrata e igual. De fato, a imagem e o espetáculo, ocupam em Debord, o mesmo lugar que a mercadoria e seus derivados ocupam na teoria marxiana do valor.

Na sociedade do espetáculo, toda experiência já vivida se eleva a seu estágio máximo de abstração, em que, a mercadoria, "cheia de sutilezas metafísicas", é impressa ao homem pelo o homem, portanto, esse, se autodestrói. Em todo esse processo de aceleração da desumanização do homem na economia mercantil capitalista, na qual, o poder financeiro prevalece sobre a totalidade da vida humana, o indivíduo torna-se um espectador passivo diante dessa mercadoria espetacular. De acordo com a visão de Lucien Goldmann, ao tratar sobre a reificação:

"...a vida econômica, a economia mercantil, mascara o caráter histórico e humano da vida social, transformando o homem em elemento passivo, em espectador de um drama que se renova continuamente, e, no qual, os únicos elementos realmente ativos são as coisas inertes"[7].

O poder abstrato do capital resultado da atividade estranhada dos indivíduos aliena o homem de seu mundo e transforma a mercadoria em algo onipresente e onipotente diante dos seres humanos, predeterminando inconscientemente a ação das pessoas, predominando assim, a reificação no coração das relações sociais.

Presenciamos, em nossa atual sociedade, uma barbárie dissimulada, na qual, todas as bases estruturais de nossa sociedade estão ruídas. No entanto, nesse meio espetacular, tudo aparenta estar em perfeita ordem, onde as realidades são ocultadas pelas cortinas do show das mercadorias, onde os homens não conseguem questionar nenhuma apresentação, devido a sua forma espetacular como é apresentada, como algo substancialmente fundamental para a plenitude de nossas vidas. O homem torna-se prisioneiro de uma prisão sem grades, sedento por mercadorias, onde sua precária existência lhe basta e, essa intensa aflição torna-se o essencial para sua vida, não conseguindo ele debater sobre o todo de suas relações sociais e, às vezes até tentam refletir, mas como em qualquer boa peça de teatro, só superficialmente. A sociedade do espetáculo evidência a imagem mercadorizada, ou melhor, reificada dos indivíduos, os quais vivenciam suas convivências coletivas sob o domínio impiedoso do poder abstrato do capital (criado pelo próprio homem) dissimulador da real humanidade.

Esse trabalho acadêmico não tem apenas como pretensão, permanecer essa discussão no meio universitário, e sim, levar todo esse embate para os meios cotidianos, onde, principalmente a atividade humana é reificada. A intenção é reivindicar como propriedade dos seres humanos toda a vida despojada para o fortalecimento da sociedade do espetáculo. Entender que os homens numa perspectiva emancipatória devem deter concretamente o poder total sobre a totalidade dos resultados de sua atividade consciente. Contudo, o que vemos é apenas a inversão dessa realidade, onde o não-vivo (a mercadoria produzida pelo o homem) adquiriu um poder humano sobre o vivo (o homem), transformando o vivo em não-vivo (reificando-o). Bem, esse é o poder da forma-mercadoria, de tornar os homens em coisas dirigidas pela a imagem do que produziram, submetidos às leis determinantes do mercador capitalista nessa moderna sociedade do espetáculo.

BIBLIOGRAFIA

AQUINO, João Emiliano F. Reificação e linguagem em Guy Debord. Fortaleza: EdUECE/UNIFOR, 2006.

BOTTOMORE, T. Dicionário de pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1998.

GOLDMANN, L. Dialética e cultura. Rio de Jeniro: Paz e Terra, 1967.

LÖWY, M. A estrela da manhã: Surrealismo e marxismo. Trad. Br. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2002.

LUKÁCS, G. História e Consciência de Classe. Trad. pt. Telma Costa. Porto: Publicações Escorpião, 1974.

JAPPE, A. Guy Debord. Trad. Br. Iraci D. Poleti. Petrópolis: Vozes, 1999.

MARX, K. O Capital. Vol. 1/ Livro I; O processo de produção do capital. Tradução br: Reginaldo Sant'anna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

______, K. O Capital. Vol. 1/ Livro I; O processo de produção do capital. Tradução br: Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983.



[1] -LUKÁCS, G. História e Consciência de Classe. Trad. pt. Telma Costa. Porto: Escorpião, 1974 – p.100. Lukács retomou e elaborou a crítica marxiana do fetichismo da mercadoria com base nas transformações sociais da realidade depois de Marx, designando a sua análise marxista do valor, sob a palavra reificação.

[2] -Manifesto da Internacional Situacionista número 10, Paris, 1966.

[3] -JAPPE, A. Guy Debord. Trad. Br. Iraci D. Poleti. Petrópolis: Vozes, 1999; p. 16/17.

[4] -DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Trad. br. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. (Doravante, citado entre parênteses no corpo de texto pelas iniciais, Sde, seguidas dos parágrafos).

[5] -DEBORD, G. Panegírico. Trad. br. Edílson Cardoni. São Paulo: Conrad, 2002 – p. 31.

[6] - JAPPE, A. Guy Debord. Trad. Br. Iraci D. Poleti. Petrópolis: Vozes, 1999; p-21.

[7] - GOLDMANN, L. Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.p- 115.


Autor: vicente sobreira


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