Apontamentos sobre o território Ofaié



Texto elaborado a partir da Dissertação de Mestrado em História “O território Ofaié pelos caminhos da história, reencontro e trajetória de um povo”. UFMS, Campus de Dourados, 2004, 289 p. por Carlos Alberto dos Santos Dutra, Mestre em História (UFMS, Dourados)


Resumo: Este ensaio instiga o leitor a rever a história da ocupação do território sul-mato-grossense, lançando um novo olhar e novas perguntas sobre a tradicionalidade de diversas áreas indígenas que demonstram ter sido bem mais que simples áreas de migração de grupos isolados. Entende que muitas delas configuraram-se em autênticos territórios de ocupação tradicional de povos cuja presença foi falseada no curso da história, cuja construção em bases memorialistas contribuiu para o desaparecimento do elemento Ofaié desses territórios.

Palavras-Chave: Território indígena, Ofaié, Mato Grosso do Sul.

Abstract: This research instigates the reader to review the history of the occupation of the South region of Mato Grosso, showing a new look and new questions about the tradition of some indigenous areas which demonster to be much more than simple migration areas of isolated groups. It shows, also, that much of them have configurated themselves as people’s traditional occupation authentic territories whose presence was falsified in the scope of history whose construction on memorialist basis had contributed for the vanishing of Ofaié element in those territories.

Key words: Indigenous territory. Ofaié. Mato Grosso do Sul.


Uma história em construção

Existem muitos modos de escrever a história. Isso pode ser explicado porque as técnicas e métodos empregados pelos historiadores são muito diversificados, a ponto, às vezes, de ficar difícil conseguir um consenso ou ainda, usando uma expressão do historiador inglês Edward Thompson, alcançar a “coerência disciplinar” desejada (THOMPSON, 1981: 48).

A primeira tentação do pesquisador poderia ser identificar história e passado, como se ambos fossem a mesma coisa, porém, conforme aponta o historiador inglês Keith Jenkins (2001: 24), o passado “é todo o acontecido em qualquer tempo e lugar, e a história ou a historiografia é uma construção intertextual, é um discurso” tomado pelo historiador, que, “ao se propor recuperar o passado, apenas o representa”.

Isso equivale a dizer que o passado não pode ser “re-visitado, nem recuperado”. Cabe à história, portanto, interpretar a realidade (o passado) e perceber “como ela é apreendida pela historiografia”, diria Pierre Vilar (apud PRIETO, 1995: 1). Em outras palavras, cabe à história voltar-se para o passado em busca de uma interpretação crítica dessa realidade, de que derivam diferentes perspectivas de abordagem.

Quanto ao papel das fontes na construção dessa história, pode-se afirmar que no caso particular da história Ofaié, elas nos chegam por intermédio dos registros dos primeiros viajantes, ainda no século XIX, estendendo-se aos atos oficiais do século XX com a criação do SPI. Observe-se que a maioria desses documentos já sofreu previamente a ação da heurística, ou seja, foi selecionada e agrupada por arquivistas e pesquisadores conforme seus objetivos e interesses. Ao estudioso cabe, portanto, o trabalho de decifrar esse material e transformá-lo em história.

Ocorre, todavia, que também as fontes que servem de base para o historiador construir o seu discurso intelectual estão perpassadas ou atravessadas pelas perspectivas particulares e representações coletivas das instituições a que pertence(ra)m seus autores. Cabe aqui o alerta de Thompson (apud LORO, 1984: 54): “os documentos não pertencem a uma amostra acidental do que originalmente existia (...); eles foram escolhidos mesmo para prevalecerem, decisão tomada normalmente por membros de grupos sociais ou políticos”.

Importa considerar, ainda, o papel dos chamados memorialistas na construção da história do povo Ofaié. Como sabemos, trata-se de autores, na maioria das vezes apresentados como historiadores, que se dedicaram a escrever a história regional com base em suas memórias e representações do espaço de poder que construíram. Esses escritos, em geral, exaltam a valentia das famílias dos desbravadores e acabam, ao longo do tempo, por “elaborar simbolicamente os eixos temáticos que todos os cidadãos deviam referenciar” (ZORZATO, 1998: 174), fato que marcou indelevelmente o relato da história da ocupação do território sul-mato-grossense.

O curioso nesse caso é que, em nenhum momento, esses autores -- cuja produção literária deita raízes a partir de 1914, com a edição do Album Gráphico do Estado de Mato Grosso, e com a criação, em 1919, do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso --, fizeram qualquer referência aos Ofaié. Desde Estevão de Mendonça (1869-1949), passando por Virgilio Corrêa Filho (1887-1973) e Rubens de Mendonça (1915-1983), até memorialistas modernos como J. Barbosa Rodrigues e Hildebrando Campestrini, os povos indígenas “aparecem como acessórios” na “história de valentia” narrada pelos historiadores e construída para enaltecer os desbravadores (ZORZATO, 1998: 182).

A partir das informações do etnólogo alemão Curt Nimuendajú (1913), desde o início do século XIX já se tinha notícia de que os Ofaié ocupavam uma faixa bastante imprecisa, quanto à extensão, apontada na documentação, que compreendia desde as margens dos rios Santa Luzia e Vacaria, ao longo dos rios Brilhante e Ivinhema -- uma região chamada “apenas como território de índios” (CAMPESTRINI e GUIMARÃES, 1991: 69) --, até a bacia hidrográfica do rio Samambaia, junto ao leito alagadiço da margem direita do rio Paraná (Nimuendajú apud DUTRA, 1996: 13).

Os Postos de Atração do Peixinho e Laranjalzinho, criados pelo SPI e localizados respectivamente nas margens dos rios Três Barras e Ivinhema (hoje municípios de Anaurilândia e Nova Andradina, no Estado de Mato Grosso do Sul), foram as únicas experiências práticas de aldeamento oficial realizadas junto aos Ofaié. Criados entre 1911 e 1913, esses Postos de Atração são apresentados com a missão de reunir os Ofaié dispersos para protegê-los do massacre praticado pelos fazendeiros que, nesse período, já povoavam a sub-bacia do Ivinhema com seus gados.

Falar da história do povo Ofaié necessariamente é falar do percurso daqueles que trouxeram até nós, por meio de seus relatos e apontamentos, as primeiras notícias dos indígenas que se lhes apresentavam pelo caminho. Desde o tempo das primeiras levas mineiras e bandeirantes, com suas rotas terrestres até o varadouro das monções paulistas, esses intrépidos senhores em suas “ubás” (STADEN, 1974: 176) desceram os rios Tietê e Paraná e subiram o Sucuriú, Verde e Pardo, para depois, através do Camapuã e do Taquari, chegarem, pelas águas do Paraguai e São Lourenço, a alcançar as auríferas minas de Cuiabá (HOLANDA, 1976).

Aí presenciaram e vivenciaram um amplo espaço de luta empreendido por exploradores e indígenas, onde a imposição de vontades era determinada, tanto pela presença de indivíduos avulsos e suas motivações particulares, como pela ação organizada do Estado e suas expedições de demarcação de fronteira. Qualquer pesquisa que pretenda trazer uma explicação para o lento e gradual extermínio que, ao longo dos anos, foi praticado contra os indígenas Ofaié, não poderá descuidar-se de uma compreensão sobre o processo histórico vivido e suportado por essa sociedade, cujo núcleo, ainda hoje sobrevive no município de Brasilândia, a sudeste do atual estado de Mato Grosso do Sul. Qualquer estudo sobre a situação dos povos indígenas no Brasil “não poderá deixar de focalizar o caráter das frentes desbravadoras que os alcançam, [ainda] hoje, nos mais distantes redutos” (OLIVEIRA, 1972: 35).

O estudo dos processos históricos vividos pela sociedade brasileira raramente tem sido feito de modo a considerar como sujeitos os povos indígenas. Pelo menos é o que se depreende dos resultados da escassa produção historiográfica sobre as experiências de luta e resistência manifestas pelas comunidades indígenas.

No contexto de quatro séculos de latifúndio vividos pelo Oeste brasileiro, a pergunta colocada há mais de duas décadas por Alberto Passos Guimarães apresenta-se ainda atual, como um fio condutor necessário para desvendar questões propostas pela pesquisa histórica (GUIMARÃES, 1981: 14). Tanto ao “pesquisador de arquivo” como ao “pesquisador de biblioteca” cabe uma leitura crítica sob “o olhar que supera as aparências e revela os sentidos ocultos por detrás dos discursos” (Paula apud IGLESIA, 2000: 8).

Numa atilada sensibilidade crítica cabe aqui ao historiador indagar como a história oficial pode ignorar as verdadeiras razões pelas quais, no sul de Mato Grosso, foi tão rapidamente dizimada a população Ofaié, a ponto de, hoje, apenas dela restarem menos de sessenta pessoas.

De quais Ofaié estamos falando?

É bastante comum contar-se a história dos povos indígenas a partir de aspectos da história regional, particularmente dos atos oficiais do Governo e de sua política indigenista. Contar a história Ofaié, nessa perspectiva, exige, contudo, do historiador, adentrar o contexto da expansão agropastoril que praticamente tomou de assalto o sul de Mato Grosso a partir do início do século XIX e que impactou também outras comunidades que viveram em situações semelhantes e com elas interagiram num lento processo de sucumbência.



Para entender a história Ofaié, inicialmente é necessário que optemos por uma definição de ordem geográfica. É necessário localizá-los no espaço físico, delimitando e definindo de quais Ofaié estamos falando. Isso porque muitos são os grupos Ofaié e muitos são os territórios apontados como tradicionais e pertencentes a esse povo, cada um deles com sua micro-história, inserindo-se e interagindo no contexto de uma história mais ampla.

Para efeito meramente didático, podemos dividir o atual estado de Mato Grosso do Sul em duas grandes áreas onde incidem os maiores registros de ocupações Ofaié. O critério utilizado para essa divisão foi o do aparente continuum manifesto pela presença de diversos grupos dessa etnia que, ao longo de determinados períodos, partilharam imensos territórios e áreas distintas. Grupos que se mantiveram unidos pela língua e pelos costumes, dentro de uma mesma circunscrição geográfica, geralmente delimitada por bacias hidrográficas.

Essa idéia das duas áreas para os Ofaié não é recente. Ela já se encontrava na proposta apresentada pelo funcionário do Serviço de Proteção aos Índios, Adriano Metello (1911), quando sugeriu à Inspetoria de Mato Grosso que fossem firmadas “duas porções de campos devolutos” para os indígenas que viviam no sul do Estado. Uma área seria para os Ofaié e outra para os Guarani e Kaiowá que viviam à margem do rio Ivinhema. Para os Chavantes (Ofaié) que viviam à margem esquerda do rio Pardo, seriam “reservados os campos” localizados ou “entre o Taquaruçu e o Pardo”, ou “entre o Taquaruçu e o Verde” (apud DUTRA, 1996: 284).

A primeira área abrange, portanto, as sub-bacias do rio Verde e Pardo, incluindo o rio Taquaruçu e diversos outros córregos e ribeirões que correm paralelos a esses dois rios, em direção ao rio Paraná e tem como linha imaginária divisória o traçado do rio Pardo, ao sul, e rio Sucuriú, ao norte. A segunda área abrange as sub-bacias do rio Ivinhema, prolongando-se em direção Noroeste, além da Serra de Maracaju, pelas sub-bacias dos rios Miranda e Negro e seus afluentes.

No MAPA (anexo a esse trabalho) podemos observar o território Ofaié e as duas grandes áreas de ocupação, bem como a localização aproximada dos aldeamentos dentro de cada uma delas:

Que História queremos para os Ofaié?

Recomendou Marc Bloch (1965) sobre as fontes como testemunhas: “elas só falam se soubermos fazer-lhes as perguntas adequadas”. No caso da trajetória dos Ofaié, cabe aqui ao historiador debruçar-se sobre as fontes e desvendar a “teia de significados” (GEERTZ, 1989: 15) que as impregnam e sobre elas pairam. Há de se lançar, sempre, novas perguntas sobre tudo e sobre todos.

Alguns mitos também merecem ser revistos. Um deles, o apresentado pela crônica e documentos oficiais que classificam os Ofaié como praticantes de constantes migrações, fato que tem sido apontado como uma das justificativas para a perda de seus territórios. Muitas teses propalam que, pelo fato de os indígenas brasileiros perambularem, eles acabaram perdendo seus territórios. Conceitos semelhantes foram assumidos pela historiografia com tal força e vigor que passaram a incorporar o cotidiano dos indivíduos e as representações construídas. “Os mitos dominantes de uma sociedade”, já nos alertara Octávio Ianni (apud JORGE, 1993: 4), são sempre “os mitos convenientes à preservação da estrutura, dos interesses materiais e conveniências sociais”.

Ao pesquisador cabe manifestar a sua desconfiança em relação à idéia disseminada na documentação oficial da dispersão natural desses indígenas, como se essa mobilidade espacial não estivesse submetida ao mando oficial e à influência de fazendeiros preocupados em “limpar os campos” para empregá-los na criação de gado (RIBEIRO, 1977: 113). É como se, em determinados momentos da história, os Ofaié aparecessem e desaparecessem, como que, parafraseando Antonio Carlos de Souza Lima (1995: 132), “fugindo de uma sociedade política imaginada como nacional”, ou como se nunca tivessem existido e, por assim dizer, justificando sua ausência na história oficial.


A hipótese comumente apresentada e aceita para o fenômeno do “desaparecimento” dos Ofaié é a de que, após várias e fracassadas tentativas de atração e aldeamentos promovidos pelo SPI, esses indígenas tenham empreendido um longo e forçado ciclo de migração pela orla barranqueira do rio Paraná em direção aos rios Pardo e Taquaruçu e à foz do rio Verde. Tal hipótese, na verdade, por configurar-se obscura, apresenta-se ao pesquisador tradicional como um convite para aprofundá-la.

A população Ofaié, que até o final do século XIX era estimada em duas mil pessoas, sofreu, no século seguinte, substancial redução. De um número aproximado de novecentos indivíduos no início do século XX (RIBEIRO, 1977: 85), estes já eram, após o desterro da região do Ivinhema, em 1924, menos de duzentos indígenas. Nas décadas que se sucederam, aos olhos oficiais, os Ofaié viveram anônimos e num estágio geral de depauperamento físico, à mercê da fome e das epidemias, até serem reencontrados pelo SPI em 1953, por Francisco Ibiapina da Fonseca (apud DUTRA, 1996: 137-141), às margens do rio Verde, reduzidos a cerca de sessenta pessoas.

Acostumados ao manuseio de uma literatura regional de cunho memorialista que se especializou em retratar os acontecimentos rurais do sul de Mato Grosso, privilegiando as façanhas e os grandes feitos daqueles que patrocinaram a construção de uma história, geralmente com preocupação “civilizadora de índios” (ZORZATO, 1998), qualquer busca diversa da proposta tradicional de leitura dos fatos configura-se ao pesquisador como desafio, tanto acadêmico quanto ideológico.

Não sem razão os historiadores do Oeste brasileiro deitaram seu olhar sobre os vultos que se notabilizaram em razão da força que exerceram sobre instituições e pessoas, marcando simbolicamente seus espaços de poder, tanto político como econômico. Qualquer história que se pretenda construir em relação aos povos indígenas no Brasil deve buscar romper com essa visão heróica e memorialista veiculada e postulada pela história regional.

A nova questão que está posta exige, como diria Hannah Arendt (apud DUTRA, 2002: 84), “sobretudo coragem”. Coragem para desafiar velhas teses e poderes a elas impregnados pelo mando de senhores de extensas áreas de terras e suas famílias, que, ao longo da história, se afamaram na vida pública e privada por expropriarem milhares de indígenas de seus territórios. Após os atos de bravura praticados contra os chamados selvagens que povoavam o sul do estado de Mato Grosso, esses senhores verdadeiramente se “impuseram e passaram a construir a sua própria versão sobre o Estado e identidade regional” que lhes fosse favorável (Galetti apud ZORZATO, 1998: 176).

Como já se mencionou, discurso algum existe desenraizado de sua historicidade e geografia específicas. Na esteira das idéias do crítico literário americano-palestino Edward W. Said (1935), cabe frisar que há sempre correspondência entre “uma certa forma de saber e uma dada forma de poder” (LIMA, 1995: 16). A elite rural que, no pós-guerra contra o Paraguai, ocupou com seus gados extensas áreas de terra em diversas regiões do Estado valeu-se muito bem das informações contidas nos registros dos primeiros viajantes e estudiosos para seu proveito geopolítico.

No caso Ofaié, interessava cultivar a informação apresentada por Nimuendajú (apud DUTRA, 1996: 256), que apontava o centro da aldeia desses indígenas “um espigão coberto de mato entre os rios santa luzia e Vacaria, onde era difícil surpreende-los, devido a vigilância que aí mantiveram”. Presas a essa idéia da existência natural de um território único para os Ofaié, essas informações permitiram àqueles que se viam ameaçados pela presença indígena em suas terras, arvorar-se na defesa de suas posses, alegando tratar-se de índios vindos de outras regiões. A tese de que os Ofaié só dispunham de um território tradicional é defendida pelos mesmos proprietários de fazendas, cujas posses se acham encravadas dentro de antigos espaços ocupados, há dois séculos, por esses indígenas.

O que se tem verificado, em relação ao que pode ou não ser entendido como território tradicional indígena, parece ser o critério do pertencimento de um povo a um determinado espaço geográfico. O critério comumente utilizado tem sido o critério tempo. Defendem-se, assim, os proprietários de terras em suas contestações judiciais contra a tradicionalidade da ocupação indígena Ofaié, alegando que o território atribuído a esse povo -- teoricamente já definido por Nimuendajú -- deva ser avaliado pelo critério da anterioridade. Assim, serão os registros mais antigos e a descoberta documental da presença Ofaié em determinadas regiões os fundamentos da tese que irá conferir a condição de primis ocupandi desse povo a um dado território.

No silêncio de uma arqueologia física que, até então, não havia descoberto qualquer evidência da idade da ocupação Ofaié sobre seu território, tem-se atribuído comumente aos campos da Vacaria e região circunvizinha, o habitat tradicional dos Ofaié que, de forma mansa e pacífica, ali viviam, até serem “descobertos” pelo Marechal Cândido Rondon e aldeados, depois, pelo Serviço de Proteção aos Índios-SPI, à margem esquerda do rio Ivinhema. Estudos subseqüentes (RIBEIRO, 1951; RIBEIRO, 1977; e DUTRA, 1987) seguiram essa linha de raciocínio, fortalecendo a tese que buscava explicar a presença Ofaié em outras regiões como conseqüência da migração que esses indígenas teriam empreendido em direção Nordeste do atual estado de Mato de Mato Grosso do Sul à montante do rio Paraná.

Tal entendimento, hoje, seguramente, pode-se dar, entretanto, por superado. A premissa, aventada por nós em trabalho recente (DUTRA, 2004), é a de que sempre houve migrações -- aliás, prática comum a todos os povos, em particular aos povos de hábito coletor --, porque obedientes aos ciclos naturais dessa relação predadora com a natureza, os povos empreendiam verdadeiro ciclo sazonal ocupando diversos pontos de um amplo território de seu domínio.

O ingrediente novo aqui é, portanto, o de que, em tempos e espaços eqüidistantes, grupos Ofaié distintos viveram igualmente condições semelhantes, mantendo os mesmos vínculos de continuidade e conexões sócio-culturais vividas em territórios tradicionalmente habitados por eles. Ainda que, em decorrência do difícil acesso e do pouco interesse português em visitar e descrever grupos de rara expressão numérica e ainda desconhecidos, a presença desses indígenas tenha sido omitida pelos cronistas e viajantes, o dado importante nesse caso é que eles tinham também a mesma anterioridade atribuída a outros grupos maiores.

Trabalhamos aqui, portanto, não com o conceito de território como categoria jurídica de terra indígena preconizada no Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), e sim com o conceito constitucional de território tradicionalmente ocupado pelos índios (Artigo 20, Inciso XI da Constituição Federal de 1988). Aqui se requer do leitor o esforço da hermenêutica para desvencilhar a questão em tela dos pressupostos rígidos do direito positivo do ordenamento legal que vincula a posse originária dos povos indígenas somente à condição do tempo presente.

Tentar explicar a ocupação de um território indígena desprezando os argumentos e evidências etnohistóricas ou deixando de se reportar às “instituições e costumes tradicionais que esse povo exerce sobre suas posses”, alerta-nos João Pacheco de Oliveira, configura um confronto com aquilo que, em tese, se procura combater: a “compulsão das elites que tentam abolir a ferro e fogo as diferenças culturais, religiosas e políticas desses povos” (OLIVEIRA, 1998: 8-9).

O conceito de território, ainda que possa ser entendido como “a morada física do índio (...), o contato com a mata, com as águas, e com a terra, indispensáveis à extração dos produtos da sua economia interna” (BASTOS, 1998: 498), vai além de mera expressão de uma realidade espacial preexistente. Sobre esse conceito, ainda que originário de estudos geográficos de espaços físicos ocupados por grupos humanos, pesa uma representação coletiva, onde “natureza e cultura se fundem” (MALDI, 1997). Assim, trata-se de um espaço onde um povo reproduz suas relações sociais, exercendo sobre ele um controle político, ou seja: a idéia de território é indissociável do controle exercido sobre determinada porção do espaço.

Localizar os Ofaié em outros territórios tradicionais diversos dos célebres campos da Vacaria e região do Ivinhema, portanto fora de um reduto criado pela natureza e, que, depois foi reunido por meio das ações do Estado, com a criação de Postos Indígenas de Atração no Peixinho, no Laranjalzinho, no Samambaia, no Pardo e no Taquaruçu pelo SPI, é reconhecer que esses indígenas não viviam isolados e que as migrações que empreenderam tiveram motivações endógenas – que davam suporte ao caráter seminômade de sua cultura --, e exógenas – motivadas pela fuga às expedições de extermínio e apresamento praticadas por fazendeiros. Disso se pode inferir que o território Ofaié revela-se bem mais abrangente do que aquele atribuído pelo sistema colonial retratado na história.

A notícia da existência de um aldeamento Ofaié às margens do rio Verde em 1901, no mesmo tempo cronológico em que se verificou a presença de outros aldeamentos Ofaié distantes dali cerca de oitocentos quilômetros, à margem do rio Taboco, ou ainda outro, localizado na região do Vacaria nesse mesmo período, descaracteriza a tese do território único dos Ofaié. Desfigura-se a idéia defendida por determinados antropólogos de que a presença Ofaié no rio Verde foi somente “de passagem” ou “de caráter meramente temporário” (ROSA, 1997: 33).

Questionar a premissa de que o centro da aldeia Ofaié era a região dos campos da Vacaria, como imaginou Nimuendajú e como desejam alguns proprietários de terras, é uma exigência mais do que atual para a construção de uma outra história para os Ofaié. Mais êmica e menos ética, tal qual a história escrita por Xehithã-ha Ofaié, uma “testemunha do massacre”  (RODRIGUES, 1991: 29-38), ou por Ekureifyg Ofaié, nas “lembranças do velho Alfredo” (DUTRA, 1996: 30), ou ainda pelo jovem Cacique Kói Ofaié que “aprende a escrever sobre sua gente” (CECCATO, 1991). Os Ofaié dispunham de muitos outros territórios que, pelo critério da anterioridade, devem ser considerados, todos, como tradicionalmente pertencentes a esse povo.

Atento às informações que o narrador propôs-se revelar e também às que não se propôs fazê-lo, mas de que, involuntariamente, deixou sinais nos lugares por onde passou, o historiador deve buscar as causas que levaram grupos Ofaié a se fixar nesses locais geograficamente distantes de um provável nicho etnoecológico escolhido e definido pela historiografia como único para eles. Cabe igualmente aprofundar as razões pelas quais esses indígenas acabaram por perder o controle e a posse de todos os territórios que, de tempos em tempos, mantiveram sob domínio.

Sob o aspecto da política indigenista, convém lembrar que foi nessa sub-bacia do Ivinhema que ocorreu a única ação administrativa do Serviço de Proteção aos Índios que tratou mais diretamente a questão do território Ofaié. Sobre a área de 3.600 hectares a eles reservada pelo Decreto 683, de 20 de novembro de 1924 (e que nunca saiu efetivamente do papel), até hoje pesam questionamentos, sobretudo quando se observa e acompanha, pelos escaninhos do poder, o percurso oficial a que esse documento se submeteu até a sua revogação, 28 anos depois de sua promulgação (DUTRA, 1996: 116).

O aparecimento e o “desaparecimento” de um povo

Os Ofaié passaram praticamente invisíveis aos olhos da história mais ampla que procurou explicar a construção do estado de Mato Grosso do Sul. Essa condição à beira do anonimato não pode, entretanto, ser atribuída somente ao acaso; ela contém algo de inexplicável e que não pode ser imputado somente à existência de um suposto acordo oficial para silenciar o assunto ao longo dos anos.

A raiz dessa não-informação, no nosso entender, firma-se na própria construção e no sentimento nacional que alavancou o chamado processo formador do atual estado de Mato Grosso do Sul. É fato histórico que as oligarquias rurais do sistema coronelista da República Velha só tinha olhos para o seu mundo: o mundo dos fazendeiros-comerciantes, suas famílias e o poder privado que exerciam também no campo da política local.

A identificação de diversos aldeamentos Ofaié em distintos pontos do Estado faz-nos, contudo, pensar imediatamente que houvesse uma necessária e natural relação entre esses pontos eqüidistantes ou, no mínimo, uma seqüência cronológica na ordem de ocupação desses territórios. Essa situação, que, não obstante esse recorte na percepção da história, pode ser caracterizada como atípica no caso dos Ofaié, em razão do amplo espaço geográfico de trânsito experimentado por eles, pode levar-nos a concluir justamente o contrário, forçando-nos a rever essas teses. Senão vejamos.

A aparente dispersão Ofaié sobre o mapa do atual Mato Grosso do Sul revela a presença de diferentes grupos que, quando comparados um a outro, manifestam, sem sombra de dúvida, pertencer todos à mesma etnia Ofaié. Esses grupos apresentavam, contudo, algumas diferenças, tanto na sua autonomia em relação à chamada sociedade envolvente, como nas relações internas, organização, parentesco e variações lingüísticas ou dialetais. Com relação a língua, por exemplo, na região do rio Vacaria os Ofaié falavam um dialeto, confirmado por Nimuendajú, denominado guachi; quanto ao modo de habitar, Alberto von Fric encontrou-os nas margens do rio Verde (hoje município de Brasilândia) “morando na própria terra”, ou seja, cavando um buraco no chão (LOUKOTKA, 1931), hábito esse praticado também pelos Ofaié da região do rio Taboco (RIBEIRO, 1984: 81; DUTRA, 2004: 152).

Foram esses aspectos que a historiografia sul-mato-grossense olvidou ou teve dificuldade para perceber e registrar. Foi somente a partir, digamos, de uma construção geopolítica que só tomou corpo quando se desvencilhou de um olhar originalmente assunceno e foi visitada pela “ocupação econômica que tinha em São Paulo seu pólo propulsor” (NEVES, 1980: 2), que o visitante teve os olhos voltados para os Ofaié.

Palco de uma ocupação cujos atores principais muito cedo se transformaram em marcos da oligarquia política regional, a história do Centro-Oeste brasileiro, desde o século XVIII, deu destaque aos acontecimentos ligados a ícones de ideais autonomistas (SILVA, 1996: 51). Foram, sem dúvida, os senhores da terra e seus humores bovinos que praticamente dominaram e mantiveram as rédeas do processo de construção do Estado sul-mato-grossense, cujas raízes nutriram hábitos nada democráticos.

A história, escreve o existencialista Jean-Paul Sartre (1905-1980), “não é uma ordem. É desordem: uma desordem racional” (apud THOMPSON, 1981: 48). Tal mote, sem dúvida, pode inspirar o historiador do território Ofaié a avançar numa análise que busque não somente integrar a história desses indígenas com a história de outros grupos sociais, mas também dar visibilidade à presença e à trajetória de povos aparentemente sem historia, mas que, por diversas vezes, quebraram a lógica dos senhores e, ao longo do tempo, imprimiram modo diverso de ser e fazer as coisas no tempo e em espaços concretos.

Naturalmente, o olhar guerreiro não-indígena que predominou no espaço vivido pelos Ofaié, a necessidade de conquistar os vazios demográficos e econômicos para o gado, numa terra aparentemente sem dono, e a busca de sustentação para o extrativismo aurífero, depois o ervateiro e, por fim, o agropecuário, tal olhar, sobre rios e plantas, animais e gente, deu-se de modo a garantir o espaço de que a Província (depois estado de Mato Grosso) necessitava para se firmar diante de outras unidades da federação, como o Paraná, São Paulo e a então capital, Rio de Janeiro, fonte de recursos de onde emanavam também as políticas de ocupação e colonização.

Na esteira dos ganhos econômicos e de delimitação de fronteiras que a região proporcionou aos que aportaram nessas terras férteis entre o rio Paraná e a serra de Maracaju, a literatura regional não mediu esforços para inscrever os feitos da oligarquia local no horizonte da relevância histórica, função que exerceu -- ao demarcar seus territórios por meio dos relatos, das crônicas, da cartografia e dos atos da administração oficial --, relegando os povos indígenas, na maioria das vezes, à condição de acessórios e meros coadjuvantes (ZORZATO, 1998: 182)

Não podemos esquecer que os mecanismos de poder se concretizam não apenas na organização da força do trabalho (tendo como essência o exercício da repressão), mas também por meio da administração e pelo controle dos “espaços geográficos” (FOUCAULT, 1979: 175). Não é de admirar, portanto, a preocupação de alguns fazendeiros em apresentar os Ofaié como “um grupo extremamente nômade” (ROSA, 1997: 67), localizando-os sempre desvinculados de suas “aldeias, tribos, casas de danças, cemitérios, templos religiosos” (idem: 68), como se flutuassem, pairando etéreos sobre os campos e matas em que viviam.

A tese de que os Ofaié teriam chegado depois dos fazendeiros (negando, portanto, a tradicionalidade de seus territórios), sobretudo em áreas como as margens do rio Verde e Samambaia, além de não se sustentar historicamente, também é uma visível forma de descaracterizar a ocupação tradicional desses indígenas em regiões de conflito pela posse da terra e contestação judicial.

Há de se convir que o fato de encontrarmos, ao longo da documentação histórica, relatos da presença Ofaié em pontos eqüidistantes do Estado, desde a região Noroeste (rio Negro e Taboco) ao Centro-Sul (rio Brilhante e Vacaria); desde o Sudeste (rios Ivinhema e Samambaia) até o Leste (rios Pardo e Verde), tal quantidade -- cerca de 30 aldeamentos -- (DUTRA, 2004: 28-29) não deixa de confundir e, ao mesmo tempo, de fascinar antropólogos, arqueólogos e historiadores.

Podemos argüir a priori que a relação travada entre os Ofaié e a sociedade nacional, ao longo dos anos, não foi sempre a mesma; ela variou conforme o tempo e o espaço onde os eventos ocorreram. Qualquer tentativa de padronizar seu comportamento como uniforme e previsível, seria uma vã demonstração de inconsistência e infidelidade histórica. Longe, portanto, do historiador que se preze, a tentativa de engessar os Ofaié no tempo ou confiná-los em espaços previamente definidos na fronteira dos interesses econômicos privados e políticos do Estado.

Em decorrência de uma leitura apressada e/ou equivocada da história, passou-se a aceitar a idéia de que, em alguns dos territórios Ofaié, é como se eles estivessem sempre “de passagem”, o que significa dizer, ausentes, porque expulsos das regiões onde viviam. Em face dos demais povos da época, como os Guarani, Terena, Guaicuru e Kayapó, pode-se dizer, grosso modo, que os Ofaié foram considerados extintos antes mesmos de serem descobertos.

Outros grupos, a despeito da gritante superioridade numérica que representavam, também foram desaparecendo de seus territórios, como é o caso dos Kayapó meridionais que dividiam seus domínios com os Ofaié entre os rios Verde e Sucuriú. Como é o caso também dos Guaxi, que provavelmente viveram no mesmo espaço geográfico que foi ocupado, depois, pelos Ofaié, na região do rio Taboco. Dessa forma, paulatinamente, os territórios indígenas do sul do Estado foram sendo apresentados pela documentação como não mais sendo habitados por seus antigos donos e, portanto, disponíveis aos colonizadores.

A história, na verdade, sempre foi contada na sua versão oficial, ou seja, na versão do chamado homem branco de nossa sociedade. A história nunca deu espaços maiores, em seus manuais didáticos, para narrar os feitos de glórias do homem de cor. Foram os colonizadores que produziram os primeiros livros que ensinam, até os dias de hoje, a versão dominante dos fatos. Por conseguinte, não é de se estranhar a pouca atenção dispensada aos povos indígenas pelos historiadores de gerações anteriores. Com honrosas exceções, lembra-nos John Manuel Monteiro, prevalece ainda hoje a sentença pronunciada pelo diplomata e historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), na década de 1850: “para os índios não há história, há apenas etnografia” (apud SILVA, 1995: 221).

Como nos alertou Claude Lévi-Strauss (1991: 40), para quem “todo o bom livro de história está impregnado de etnologia”, no caso dos Ofaié, isso não seria diferente. Foram as informações etnográficas recolhidas pelo SPI e a Comissão de Linhas Telegráficas que permitiram a construção de uma história -- sob a ótica do território --, também para os Ofaié. Difícil, entretanto, não lançar um olhar crítico sobre uma historiografia que nem sempre considerou os pequenos grupos, alguns deles ainda completamente desconhecidos da antropologia e a quem a política indigenista oficial só proporcionou um célere e brutal desaparecimento. “Se alguma coisa define a política indigenista”, escreve Guillermo Bonfil Batalla, “ela é o intento de extirpar a personalidade étnica do índio” (BONFIL, 1970: 90).

Buscar as razões que levaram ao extermínio das populações indígenas no Brasil, exige, sem dúvida, buscar compreender, ao lado do contexto econômico e social vivido pelas classes exploradoras, também o contexto onde ocorreram esses verdadeiros espetáculos de apresamento e encarniçados massacres que povoaram, durante séculos, a marcha inexorável da colonização para o Oeste brasileiro. Marcas indeléveis na população nativa sobrevivente ainda permanecem, o que, para muitos estudiosos, é motivo de indignação e questionamento para as tantas crueldades praticadas contra eles.

A exploração do Oeste brasileiro não somente justificou o extermínio de milhares de indígenas, mas também garantiu a reprodução dessa exploração por onde passou, disseminando a máxima de que índio bom é índio morto. A expansão capitalista, na forma de fazendas de gado, que sucedeu o ciclo do extermínio aberto, valeu-se, depois, da criação das reservas indígenas para se perpetuar, quando também obteve a garantia de que, aldeados, os indígenas não seriam mais impedimento à livre ocupação de seus territórios.

Onde começa a história Ofaié, afinal?

Para entender a presença Ofaié na fase chamada de heróica da fronteira sul-mato-grossense, entre 1870 e 1924 (CORRÊA, 1999: 200) faz-se necessário inicialmente lançar um olhar diacrônico sobre essa realidade e sobre a documentação que retrata o que se pode chamar de fase de consolidação dos latifúndios e da pecuária, ao longo de um processo que ainda está em curso.

Para isso, recomenda a cautela que se mantenha distância da análise meramente sincrônica e do risco de silenciar sobre o processo de dominação histórica exercido sobre esse povo, ficando, portanto, caracterizado o tipo de história que estamos construindo. Longe de uma visão maniqueísta, anacrônica, idealizada e romântica de um indígena solto e desenraizado da história, deve-se caminhar em direção oposta à história oficial e ao processo civilizador por ela desencadeado que, sob as mãos de coronéis famosos, praticamente construiu um Estado desfigurado da participação indígena.

Diante desse imenso campo de saber e campo de poder, um considerável número de teorias tem sido despejado sobre o homem e as instituições a que pertence, fazendo-o pensar seus valores e a compreensão dos fatos sempre nessa perspectiva a-histórica. Não obstante, a história caminha e, a toda hora, acerca-se de novos olhares e perguntas que ajudam a fugir da rigidez de uma ciência na maioria das vezes mais preocupada com as “permanências” do que com as “mudanças”. A história, escreveu o antropólogo canadense Bruce G. Trigger (1973: 1), é justamente o “estudo da mudança, desde os tempos mais remotos até o presente”.

Por isso a importância de se recorrer ao trabalho das ciências aplicadas e à valorização de uma historiografia voltada mais para a memória dos povos indígenas como fontes aceitáveis e compatíveis com a histórica. Abre-se, assim, uma fresta na porta do saber histórico, em meio à paisagem do cerrado, permitindo aos próprios indígenas Ofaié, rever a caminhada percorrida (como faz o Ofaié Ataíde Xeritha-há, “testemunha do massacre”) e assim, quiçá, lhes seja concedida a oportunidade de assumir a condição de protagonistas de uma outra história.

Ainda que os historiadores tradicionais insistam em afirmar que a história dos povos indígenas foi muito cedo arrancada de suas mãos, outros olhares apontam para uma visão de contemporaneidade; visão que lhes possibilita desconstruir antigos saberes e romper com velhas armadilhas desde há muito nutridas e que reclama outros interlocutores e agentes sociais. No caso da história Ofaié, fica evidente haver sempre vários pesos e várias medidas na correlação de forças presentes no palco onde se desenrolam os acontecimentos no grande teatro da história e onde o indígena sempre foi o componente mais forte e, ao mesmo tempo, o menos considerado.

Durante a trajetória experimentada pelos Ofaié, em meio à “teia dos fatos” (VESENTI, 1997) vividos por seus personagens, há de se lidar também com a “teia da memória” (MALDI, 1993) manifesta nos documentos, que ora os prende aos acontecimentos, ora os distancia dessa construção. Essa situação também representa, ora a condição de caminho, ora a condição de obstáculo à ocupação forçada desses espaços físicos e temporais.

O povo Ofaié e seus diversos grupos, espalhados ao longo das margens dos rios, pelos campos e matas, ao redor do cocho de kauim e mel silvestre, cheios de canto e dança, vivendo ou indo ao encontro de um “mar de felicidade” experimentado no interior de suas aldeias (Rodrigues apud DUTRA, 1996: 32), não eram microsistemas sociológicos apenas; eram também (e continuam sendo), diria Theodore Mills (1970: 12-3), “microcosmos de sociedades” em permanente transformação e interação com outras sociedades mais amplas.

Configura desafio, portanto, romper com as dificuldades comumente alegadas e que têm sido apontadas, na maioria das vezes, como obstáculo para inserir a história dos Ofaié nos contornos de uma história mais ampla. Por muitos anos os povos indígenas foram classificados como povos sem história, pois antes deles, escreve Henri Moniot (apud LE GOFF, 1995: 99) “só havia a Europa”, e nisso se resumia a história, espaço que foi preenchido pela antropologia em tempo recente e que deu visibilidade à história de muitos povos (OLIVEIRA, 2001: 122).

À semelhança dos demais povos indígenas, a sociedade Ofaié também é ágrafa, porém a ausência da escrita não significa que ela não tenha tido ou construído uma história. O evento, entre os ágrafos, lembra-nos Denise Maldi (1994: 9), é marcado pelo “território” e pela “paisagem”. As palavras do indígena Ofaié Xehitâ-ha dizem mais: “Por isso senti por necessidade de penetrar o passado e rever a marca de uma história, pois os Ofaié, com seu próprio sangue, marcaram a sua história” (apud DUTRA, 1996: 30).

Por outro lado, cabe lembrar que “a história não é unilinear e puramente sucessiva”, como afirmou Henri Focillon (apud CARDOSO, 1982: 106). Lição contrária, entretanto, ainda hoje é possível perceber na sociedade não-indígena, em que o autóctone é visto como aprisionado a uma historiografia que muito pouco contribuiu para uma leitura a partir da perspectiva da dinâmica sócio-cultural desses povos.

Aliás, foi graças ao distanciamento, no sentido mais tradicional e colonialista da palavra, que a antropologia, em sua corrente histórico-cultural, permitiu avançar na compreensão da história e das interações vividas pelos grupos étnicos diferenciados. Ainda que por via indireta, ao buscar reconstruir a história das sucessivas culturas, suas difusões e empréstimos -- e aqui talvez o seu maior mérito --, esses estudos acabaram também por demonstrar a existência desses povos, revelando, por assim dizer, a sua história.

Considerações Finais

Até há bem pouco tempo, quase tudo que era escrito sobre a história indígena no Brasil havia brotado das mãos da antropologia e da sociologia. Não obstante, não foram esses cientistas que apresentaram os indígenas à sociedade. Eles simplesmente os representaram nessa relação do indígena com o não-indígena.

Ao contrário, portanto, do esforço da história que reservou aos Ofaié sempre os lugares mais sombrios de seus contornos, quando não do anonimato, do historiador exige-se “abrir a própria trilha, além da ousadia” (VIEIRA, 1991: 26), muito além do que possa imaginar, e ver com outros olhos o que antes não foi visto. Qual seja: foram os próprios indígenas -- no caso dos Ofaié -- que se apresentaram aos senhores dos campos da Vacaria e ribeirão Samambaia, obstruindo-lhes o curso; foram eles que se apresentaram resistindo aos exploradores que adentravam seus aldeamentos com seus propósitos de preia e hálito de pólvora. Foram os Ofaié que se apresentaram diante de senhores moucos demonstrando ser sujeitos capazes de construir história.

Para lembrar o Professor José de Souza Martins, os Ofaié demonstraram isso “na medida que manifestaram seu estranhamento” em relação a esses “outros” que lhe faziam oposição, “falando através de suas lutas e confrontos” (MARTINS, 1993: 30).

A tradicionalidade do território Ofaié compõe-se, portanto, de horizontes bem mais amplos daqueles definidos por uma história regional que buscou aprisioná-los nos contornos dos interesses políticos e econômicos locais. No sentido latino de “entrega”, a traditio do território Ofaié percorre, portanto, extensos espaços físicos onde viveram e ainda vivem representantes desse povo e o nexo cultural que os unia une até os dias de hoje. Re-escrever esse capítulo da história oficial de Mato Grosso do Sul, contudo, ainda é uma tarefa em aberto.

Numa espécie de “corretivo à história”, diria Harpe (apud BURKE, 1992: 53), pode-se dizer que, mesmo “durante a caminhada de aparente silêncio”, os indígenas Ofaié, ao ocuparem dilatado espaço no tempo e na história, existiram, resistiram e romperam com a lógica e a “moral dos senhores” baseada no mando, na força e na violência. Foi graças aos pergaminhos da história, lida e relida pelos historiadores, depois manuseada e corrigida, palavra-a-palavra pelos próprios Ofaié no tempo que se chama hoje, que eles anunciam que estão de volta, como sempre estiveram, novamente no centro e pelos caminhos da História (MARTINS, 1989: 13). Mas isso já é uma outra história.

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Autor: Carlito Dutra


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