A MISSÃO RÉGIA DE JESUS E DOS QUE CRÊEM NELE



Introdução: O poder de Jesus e dos que cremos nele é servir, não ser servido

"Feliz o povo cujo rei é Javé": Feliz o povo e o governo que vivem os valores éticos, expressões da fé explícita e implícita em Deus. O Reino de Deus não está localizado em nações e Igrejas, mas onde há respeito ao direito e à justiça. Estes e outros valores éticos são lugares teologais, que expressam o pensar e o querer de Deus. O rei de Israel é Javé, Deus do direito e da justiça. Mas o povo achava cansativo viver eticamente e sonhava ter um rei corruto como os reis de outras nações, em desafio à santidade ética de Javé. Este não quer que o povo tenha um rei como outros povos, porque os reis do Oriente, além de corrutos, tinham status de deuses. Mas Javé é o único Deus do povo: não dá pra conciliar a realeza ética de Javé com príncipes corrutos. Por isso, a instituição da realeza em Israel sempre foi traumática, desde a primeira vez que o povo expressou o desejo de ter um rei na época dos Juízes. Javé sempre resistiu a atender o desejo do povo, pois sabia que era fraco, se prostituiria, se tornaria idólatra quando Javé deixasse de ser seu rei. "O povo de Israel disse a Gedeão: Reina sobre nós, tu, o teu filho e o teu neto, porque nos tiraste das mãos de Madiã. Porém, Gedeão lhe respondeu: Não serei eu que reinarei sobre vós e tão pouco meu filho, porque é Javé que reinará sobre vós". Depois da morte de Gedeão, seu filho Abimelec assassinou os setenta irmãos e levou o povo a escolhê-lo rei de Israel. Os filhos de Israel não mais se lembraram de Javé seu Deus, que os tinha livrado da mão de todos os inimigos dos arredores, e voltaram a se prostituir aos baals e tomaram por deus Baal-Berrit (deus cananeu de Siquém) Jz 8,22-23.33-34. Por isso, o reinado de Abimelec só trouxe desgraça sobre o povo, e ele foi morto por uma mulher que "jogou uma mó de moinho sobre a cabeça dele e quebrou-lhe o crânio, na batalha da torre de Tebes. Assim Javé fez recair sobre Abimelec o mal que tinha feito a seu pai degolando os seus setenta irmãos" Jz 9,53-56. Depois do fracasso de Abimelec, juízes voltaram a dirigir o povo até a época de Samuel e filhos. Ao mesmo tempo em que o povo exigia um rei mundano, no povo de Israel renascia a idéia da realeza de Javé. A origem do novo reinado remonta ao casamento de Rute com o moabita Booz, descendente da prostituta Tamar. O casal gerou Obed, pai de Jessé, pai de Davi. "Quando envelheceu, Samuel constituiu os filhos juízes em Israel. Mas eles não seguiram o exemplo do pai: infringiram o direito, se deixaram subornar, guiaram-se pela ganância,". Decepcionados, os anciãos de Israel se reuniram e disseram ao juiz Samuel: "Tu envelheceste e teus filhos não seguiram teu exemplo. Por isto, constitui sobre nós um rei, que exerça a justiça entre nós, como acontece em todas as nações" Ora, Israel não é um povo como outros, mas propriedade particular de Javé que, por amor, escolhe-o dentre outros povos da terra para ser um povo de reis, profetas e sacerdotes. Rejeitando Javé, seu verdadeiro rei, seguindo o exemplo de outros povos, o povo se prostituía com ídolos. O pedido dos anciãos desagradou a Samuel, que "invocou a Javé, que lhe disse: Atende a tudo o que te diz o povo, porque não é a ti que rejeitam, mas a mim, porque não querem mais que eu reine sobre eles. Tudo o que comigo têm feito desde o dia que os fiz subir do Egito até agora - abandonaram-me, seguiram outros deuses - assim fizeram contigo. Atende, pois o que pleiteiam. Mas solenemente, lembra-lhes e explica-lhes o direito do rei que reinará sobre eles". Através de Samuel, Javé previne o povo o que sofrerá nas mãos dos reis deste mundo, que reinarão sobre ele com projetos opostos aos de Javé. Mas o povo não ouve Samuel e insiste na idéia de um reino mundano. "Samuel expôs todas as palavras de Javé ao povo, que lhe pedia um rei. Disse ele: Eis o direito do rei que reinará sobre vós: convocará vossos filhos e os encarregará de seus carros de guerra, os fará lavrar sua terra e ceifar sua seara, fabricar as peças de seus carros e armas de guerra. Fará vossas filhas perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará vossos campos, vossas vinhas e melhores olivais, e os dará aos seus oficiais. Das vossas culturas e vinhas ele cobrará dízimo, que destinará a seus eunucos e oficiais. Tomará para seu serviço os melhores dentre vossos servos e servas, vossos jumentos e bois. Exigirá o dízimo de vossos rebanhos e vos tornareis seus escravos. Então, naquele dia, reclamareis contra o rei que vós mesmos escolhestes e Javé não vos responderá. O povo, no entanto, recusou-se a atender às palavras de Samuel, e disse: Não! Mas teremos um rei e seremos, nós também, como as outras nações: nosso rei nos julgará e irá à nossa frente e fará nossas guerras. Samuel ouviu tudo e contou tudo ao ouvido de Javé, que lhe disse: Satisfaz a vontade deles, entroniza-lhes um rei" 1 Sm 8. É conhecida a catastrófica realeza de Israel, referta de escândalos, violência. Saul, o primeiro rei foi violento; Davi, foi adúltero e criminoso; Salomão, injusto: ao fim do seu reinado, as tribos em conflito dividiram o reino: reino de Judá (Sul), capital Jerusalém; Israel (Norte), capital Samaria. Dividido, o reino ficou vulnerável aos invasores, que reduziram o povo à escravidão. Os Profetas alertavam o povo que o perigo vinha do Norte. Mas ninguém os ouvia. Até que em 722, os Assírios invadiram o Reino do Norte e avassalaram o Reino do Sul. A seguir, a Babilônia invadiu o reino assírio, subjugou todo Israel, deportando a elite religiosa e política de Jerusalém para a Babilônia. Depois, Alexandre o Grande, rei da Macedônia, dominou o império babilônico, que incluía Israel e Judá, profanando os lugares sagrados de Israel com ídolos gregos. Depois foi a vez de o império persa dominar todo o Oriente, incluindo Macedônia e Grécia. Depois, o Imperador Romano, César Augusto, subjugou o império persa, e Roma dominou o Ocidente até 441 e o Oriente até 1454 d C. Durante a invasão romana nasceu em Belém, cidade de Davi, o rei dos Judeus, cujo reino não era como os reinos de outras nações. Jesus introduziu na história humana o reinado explícito de Javé, segundo promessa feita a Davi. No auge do poder, o mais famoso rei de Israel, envergonhado com o fausto da sua corte, diz a Javé que construirá um templo suntuoso, digno do grande Deus de Israel. Javé recuou a proposta de Davi, através do profeta Natã. "A palavra de Javé veio a Natã nestes termos: Vai dizer ao meu servo Davi: Construirias uma casa em que eu venha a habitar? Em casa alguma habitei desde que fiz os filhos de Israel subir do Egito até o dia de hoje, mas andei em acampamento errante, sob tendas. Durante todo o tempo que andei com os filhos de Israel, por ventura disse a algum juiz, que eu tinha instruído como pastores do meu povo: 'Por que não edificas para mim uma casa de cedro'? Tirei-te das pastagens onde pastoreavas ovelhas e te fiz o chefe do meu povo Israel. Estive contigo por onde ias e destruí os teus inimigos diante de ti. Dar-te-ei um grande nome, como o nome dos grandes da terra. Prepararei um lugar para meu povo Israel e o deixarei para que habite nesse lugar e não mais tenha de andar errante, nem os perversos continuem a oprimi-lo como antes, desde o tempo em que instituí juízes sobre meu povo: livrar-te-ei de todos os teus inimigos. Javé te fará uma casa. E quando tiveres completado teus dias e vieres a dormir com teus pais, farei permanecer a tua linhagem após ti, gerada das tuas entranhas e para sempre estabelecerei seu trono. Serei pra ele um pai e ele será para mim um filho. A tua casa e tua realeza subsistirão para sempre diante de mim e teu trono se estabelecerá para sempre" 2 Sm 7,4-16. O hagiógrafo mirava o rei Messias, Jesus Cristo. Com efeito, ao anunciar a Maria que seria a mãe do Messias, o Anjo Gabriel reproduziu o conteúdo das palavras de Javé a Davi. "Não temas, Maria! Conceberás no teu seio e darás à luz um filho e o chamarás com o nome de Jesus: ele salvará seu povo dos seus pecados. Ele será grande, será chamado o Filho do Altíssimo, e o Senhor lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reino não terá fim" Mt 1,21; Lc 1,30-33. Jesus atualizará na sua Pessoa o reinado de Javé sobre o povo, para sempre. Ele mostrará que o reinado de Javé é bem diferente dos reinados do mundo. Com a encarnação do Filho, todo reinado terá por modelo o reinado de Jesus. Como reina, de onde vem a autoridade de Jesus, Rei do universo? O Rei Jesus tira sua autoridade do serviço, não do mando. Depois da instituição da eucaristia, quando presta o maior serviço aos seus, Jesus lhes dá a maior prova de amor, dando seu corpo e sangue em alimento Sem entenderem o gesto do Mestre, 'houve uma discussão entre os discípulos: qual seria o maior? Jesus disse-lhes: Os reis das nações as dominam, e os que as tiranizam são chamados Benfeitores. Quanto a vós, não deve ser assim; ao contrário, o maior dentre vós torne-se como o mais jovem, quem governa, como quem serve. Pois, qual é o maior: o que está à mesa ou quem serve? Não é quem está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve. Durante a ceia, sabendo que o Pai colocara tudo em suas mãos e que viera do Pai e ao Pai voltava, Jesus levantou-se da mesa, depôs o manto, toma uma toalha, cinge-se com ela. Depois, coloca água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e enxugá-los com a toalha com que estava cingido. Chega, então, a Simão Pedro, que lhe diz: Tu lavar-me os pés? Responde-lhe Jesus: O que faço não o compreendes agora, mas o compreenderás mais tarde. Disse-lhe Pedro: Jamais me lavarás os pés. Jesus lhe disse: Se não te lavar, nada terás comigo" Lc 22,24-27; Jo 13,2- 8: se não aceitas a realeza do serviço, estás fora do Reino. Servir faz a grande diferença entre o Reino de Deus e o reino do mundo. Para mim, reinar é servir; para o mundo, ser servido'. Apesar de Jesus ter dito que grande é quem serve, Pedro julga escandaloso o rei lavar os pés dos súditos, fazer serviço humilde. Simão viu Jesus entrar um dia antes em Jerusalém montado num jumentinho e ouvira a multidão triunfalmente aclamá-lo rei. "Alegremente, com voz forte a multidão de discípulos começou a louvar Deus, por todos os milagres que tinham visto. Diziam: Bendito o rei que vem em nome do Senhor! Paz no céu, glória no mais alto dos céus". Em Belém, os anjos disseram: "Glória a Deus nos mais altos céus e na terra, paz aos homens que ama". A entrada do Filho no mundo sela a paz entre o céu e a terra rompida pelo pecado. Mas, na entrada de Jesus em Jerusalém a multidão não fala em paz na terra, só no céu. Não acredita que a realeza serviçal traga paz à terra dominada por tiranos semeadores de terror. Sim, eles louvavam Deus "pelos os milagres que viram" Jesus fazer. Mas, como acreditar que seja capaz de trazer paz à terra um rei montado em jumento? Ao despedir-se dos Doze antes da paixão, Jesus lhes diz: "Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não como o mundo dá". Saudação repetida depois da ressurreição no reencontro com os Onze: "A paz esteja convosco. Como o Pai enviou-me, eu vos envio também. Recebei Ruah" Jo 14,27; 20,19-22. A saudação da paz é corrente em Israel. A paz é um dos bens messiânicos mais desejados e compreende a saúde corporal, felicidade perfeita, salvação trazida pelo Messias. Jesus é "a nossa Paz" é "o Perdão" por antonomásia, pois realiza em Pessoa o espírito do Reino messiânico: a justiça, o perdão generoso, a paz. Naqueles dias, a justiça e a paz se abraçarão". O povo sabia que Javé é o seu único rei e anúncio da realeza de Jesus não deveria ser novidade, pois os profetas tinham anunciado que o Messias viria realizar todas as promessas de paz do AT. Disse o Senhor a Davi: 'Suscitarei depois de ti a tua posteridade, aquele que sair das tuas entranhas, e firmarei o seu reino. Ele me construirá um templo e firmarei para sempre seu trono real. Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho. Tua casa e teu reino estão estabelecidos pra sempre diante de mim, teu trono está firme pra sempre. Uma virgem conceberá e dará à luz um filho e o chamará Emanuel. Um menino nasceu hoje, um filho nos foi dado; a soberania pousa sobre seus ombros, ele é o Deus forte, Pai eterno, Conselheiro admirável, Príncipe da Paz. Seu império será grande, a paz sem fim sobre o trono de Davi e seu reino. E tu, Belém de Éfrata, tão pequenina entre as tribos de Judá, é de ti que sairá para mim aquele que é chamado a governar Israel. Suas origens remontam aos tempos antigos, aos longínquos e passados dias. Por isso, Javé os deixará até o tempo em que der à luz aquela que dará á luz. Então o resto dos seus irmãos voltará para junto dos filhos de Israel. Ele se levantará para apascentá-los, com poder do nome, a majestade de Javé. Os seus viverão em segurança, pois ele será exaltado até os confins da terra. Assim será a paz. Solta grito de alegria, filha de Sião! Não temas, Sião! Não se enfraqueçam teus braços! Javé teu Deus está no meio de ti como herói Salvador e anda em transporte de alegria por causa de ti e te renova o seu amor e exulta de alegria a teu respeito como num dia de festa. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho e o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo, quelhe dará o trono de seu pai Davi; reinará pra sempre sobre a casa de Jacó e seu reino não terá fim. Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, uma multidão de anjos louvou Deus dizendo: Glória a Deus no mais alto dos céus e na terra paz aos homens por ele amados" 2 Sm 7,12-16; Is 7,14; 9,5-6; Mq 5,1-4; Sf 3,14-17; Lc 1, 26-33; 2,10-14; Mt2,1-2.

[1] Esta é a realeza de Javé: poder-serviço, amor que gera vida e paz. O Príncipe da paz é servidor do seu povo, ao qual ele dá a paz que o mundo não dá: "deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz, não como o mundo dá. Não se perturbe, não se intimide vosso coração. A Paz esteja convosco. Jesus Cristo é a nossa paz. Justificados pela fé, temos a paz em Deus, através de Nosso Senhor Jesus Cristo. O Senhor da paz conceda-vos a paz em todo o tempo e em todas as circunstâncias" Jo 14,27; Ef 2,14; Rm 5,12; 1 Ts 3,16. A paz é, pois, o espírito do Reino de Jesus, o portador da paz. Ele aceita ser aclamado rei pela multidão, mesmo não sabendo o que seja realeza-serviço, oposta da realeza-dominação deste mundo. Quando "alguns fariseus da multidão lhe disseram: Mestre, repreende teus discípulos, Jesus lhes respondeu: Se eles calarem, as pedras gritarão: Jesus é o novo rei" Lc 19,37-40. Quando Pilatos perguntou-lhe: Então, tu és rei? Ele respondeu: Tu o dizes: sou rei. Para isto nasci, para isso vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Quem é da verdade escuta minha voz. Mas meu reino não é daqui. Se meu reino fosse daqui, meus súditos teriam combatido para eu não ser entregue aos judeus. Mas meu reino não é deste mundo Jo 18,33-37. A realeza de Jesus, os valores que a regem procedem do céu. O Anjo Gabriel disse a Maria que ela seria a mãe do Primogênito. Ela ficou intrigada e anjo esclareceu: Conceberás no teu seio e darás à luz um filho e o chamarás com o nome de Jesus, porque ele salvará seu povo dos seus pecados. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo e Javé Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai, e reinará para sempre sobra a casa de Jacó, seu reino não terá fim. Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, vieram magos do Oriente a Jerusalém perguntando: Onde está o recém-nascido rei dos judeus"? Lc 1,26-33; Mt 2,1-2. Desde o nascimento, Jesus é rei diferente dos reis deste mundo e das expectativas de uma realeza davídica poderosa: nasce pobre, vive pobre, sem trono e sem armas. O poder-serviço, não o mando opressor, é o espírito do reino de Jesus, que instala no mundo espaço da liberdade, em afronta ética aos reis escravocratas do mundo. Em Jesus Cristo, Deus quebrou o protocolo do poder e se aproximou do ser humano, fez-se Deus-Conosco, Servidor. Nele o Reino de Deus está em ação entre nós, regido pelos lugares teológicos e valores éticos atualizados por homens e mulheres de fé. Valores portadores de vida, sempre em conflito com os valores de morte do mundo. A arma do rei Jesus é o amor, que gera vida abundante. Eis melhor notícia que o mundo já ouviu: Deus está ao alcance da nossa boca, do nosso coração, da nossa vida, da nossa fé. "Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos, crede na boa nova". Próximo em primeiro lugar na Pessoa de Jesus, que se fez carne da nossa carne, sangue do nosso sangue, ossos de nossos ossos. Na criação temporal, a mulher assume carne e ossos do homem. "Da costela que tirou do homem, Javé modelou a mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou: Esta é osso de meus ossos, carne de minha carne, e se chama mulher (isha), porque foi tirada do homem (ish)". Na nova criação, invertem-se as coisas: o novo Adão, Jesus, toma carne e ossos de Maria, a nova mulher. "Quando chegou a plenitude dos tempos, o Verbo se fez carne em mulher e nasceu de mulher e habitou entre nós" Gn 2,21-24. Jo 1,14; Gl 4,4. Eva é de descendência carnal (gerada da vontade do sangue e da carne). Jesus é de descendência divina (não gerado da carne e do sangue, mas de Deus), mas assume nossa carne, sangue e ossos. "Embora seja de condição divina, assumiu a condição humana". A encarnação do Filho resgatou a humanidade e o mundo material, incorporando-os ao Primogênito da nova criação pela ressurreição dos mortos. O corpo do Ressuscitado é formado da mesma matéria cósmica e humana que ele resgatou. Diante dos discípulos apavorados com sua presença na sala onde se achavam trancados com medo dos Judeus, achando tratar-se de um fantasma, Jesus os deixou ver e tocar seu corpo, para provar que não era um espírito desencarnado, mas um corpo de carne, ossos, nervos, mesmo que completamente tomado pelo EspíritoSanto. Disse-lhes: "Vede minhas mãos, meus pés, o lado. Apalpai-me e entendei que um espírito não tem carne e ossos como vedes que eu tenho: sou eu" Lc 24, 39-40; Jo 20,20. O mesmo Jesus disse a Tomé: "Põe teu dedo aqui e vê minhas mãos. Estende tua mão e põe-na no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crê. Tomé respondeu-lhe: meu Senhor e meu Deus. Jesus lhe disse: Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram" Jo 20,27-29. Em Jesus Cristo, "habita corporalmente toda a plenitude da Divindade"Cl 2,9. Jesus está conosco em carne e osso, mas só os que têm fé o percebem, sem necessidade da presença palpável. A fé exige a presença real e imponderável de Jesus conosco. Mas, já que não o podemos perceber sensorialmente, precisamos converter-nos, voltar o olhar da fé para a autobasiléia no meio de nós. Só pela fé percebemos a presença de Jesus, da a autobasiléia no nosso meio. Portanto, a presença palpável de Jesus não é exigida para crer nele. Basta sua palavra fidedigna, assumida pela fé com liberdade, sem imposição e dirigismo. A palavra de Jesus é fidedigna porque ele é fidedigno. Se vê-lo bastasse para crer nele, os que conviveram com ele e viram seus milagres não o teriam matado. É que lhes faltava a luz que os faria ver Jesus e o Reino de Deus no meio deles. Por falta de fé, até na hora da morte, quando já tinha dado tudo de si, ainda duvidavam da fidedignidade de Jesus e escarneciam dele. "O povo permanecia lá, a olhar. Mas os chefes zombavam e diziam: Salvou outros, que salve a si mesmo, se é o Cristo, o Eleito. O rei de Israel, o Messias, confiou em Deus: pois que o livre agora, se é que se interessa por ele! Se disse que é o Filho de Deus, que desça da cruz, para que vejamos e creiamos" Lc 35,44-37; Mc 15,32; Mt 27,43. A exigência dos inimigos de Jesus era a mesma de Tomé: ver para crer. Sim, é escandaloso crer num rei sem poder nem sequer para defender-se. Ora, Jesus é rei e tem poder, mas seu reino e seu poder agem diferentemente do poder do mundo: age servindo, criando vida, não oprimindo, gerando morte. Pra perceber o poder de Jesus é preciso se converter e entrar no universo da fé. Pois não há outra forma de perceber o reinar de Jesus conosco senão pela fé, ativada pela Palavra anunciada e ouvida. Acolher no coração a palavra anunciada, entendê-la pela inteligência e praticá-la é viver pela fé: pensar, sentir, querer pela lógica do amor-serviço de Jesus. "Meus pensamentos não são vossos pensamentos, meu modo de agir não é como o vosso". A vida de Deus agindo em nossos corações é a luz da fé que nos faz sensíveis aos valores éticos presentes na nossa vida e a participar de seus benefícios. "Tende em vós os sentimentos de Jesus Cristo: Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que ciosamente se apegar. Mas esvaziou-se, assumiu a semelhança humana, a condição de servo. E se achando em figura humana, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz". O exemplo de Jesus é desafio e caminho para nossa liberdade e nossa fé. Fé na Palavra e liberdade para aderir ou não a ela, sem ver, embora sabendo quem falou. Para crer não precisa ver. Mas quem crê começará a ver, até com olhos carnais, os frutos das obras de fé. "Se crerdes, vereis a glória de Deus. Felizes os que creram sem ter visto. Vós sóis a luz do mundo. Não se pode acender uma lâmpada e escondê-la, mas colocá-la em lugar visível, para que brilhe para todos que estão na casa. Quem faz o mal odeia a luz, não vem para a luz, pra que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis. Mas, quem pratica a verdade, vem pra a luz, pra que se manifeste que suas obras são feitas em Deus. Brilhe a vossa luz (dos dons) diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai que está nos céus" Mt 5,14-16; Jo 3,20-21; Fl 2,6-8. A fé coloca-nos no coração do Reino de Deus: por ela, incorporamos o espírito do poder-serviço, que nos capacita a praticar os valores e obras do Reino como Jesus praticou. Quando e como inicia-se a fé? "A justiça que provém da fé assim se exprime: Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu para fazer descer Cristo? Quem descerá ao abismo, para fazer Cristo levantar-se dentre os mortos. Mas o que ela diz? Ao teu alcance, no teu coração na tua boca está a palavra; a saber, a palavra da fé que nós pregamos. Pois, se confessares com tua boca que Jesus é o Senhor, creres no teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Pois quem crê de coração obtém a justiça, quem confessa com a boca obtém a salvação. Não será confundido quem crê nele, o Senhor de todos, rico para todos os que o invocam. Porque todo aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo. Mas como invocar aquele no qual não creram? Como podem crer em que não ouviram? E como podem ouvir sem pregador? Como podem pregar se não são enviados? A fé vem pela pregação e a pregação é pela palavra de Cristo" Rm 10,6-17. Portanto, é ouvindo a Palavra de Jesus, aderindo a ele e praticando as obras inspiradas na Palavra, que inicia a fé e o Reino de Deus chega até nós. Crer é redirecionar a audição da palavra do mundo pra Palavra de Jesus, mudar mentalidade e atitudes. Fazer isto é tipicamente converter-se. "Convertei-vos e crede no Evangelho, o Reino está no meio de vós". Próximo para os que crêem, mas longe dos que não têm a sensibilidade do olhar da fé. A distância entre nós e o Rei Jesus é do tamanho da nossa fé: fé viva, Rei próximo; fé fraca, Rei longe. Daí, precisa-se redirecionar o olhar do coração para os valores éticos e lugares teologais do dia-a-dia: solidariedade, partilha, justiça, perdão, amor. Praticando-os "apalparemos e veremos a glória do Verbo", o esplendor do seu Reino de vida e serviço. Sem praticar os valores éticos e os lugares teologais o Reino de Deus será um ideal inatingível, e só nos restará pautar nossas vidas pelos anti-valores do mundo, geradores de morte.

[2] Mas não nos iludamos: convidando-nos para ser seus parceiros na caminhada da fé e prática dos valores éticos, Jesus não nos está convidando para fugirmos do mundo e nos tornarmos convivas de um convescote de alienados. Mas nos chama a sermos sal e luz do mundo insipiente e em trevas. Convida-nos a partilhar com ele as alegrias do Reino no coração do mundo, chocando-nos com os conflitos e problemas humanos. Envia-nos ao mundo para anunciar os valores éticos e assumir as conseqüências da nossa ousadia. Adverte-nos que, no confronto dos lugares teologais e dos valores de vida e de liberdade com os lugares diabólicos e valores da morte do mundo, nossa fé será duramente posta à prova, seremos incompreendidos, perseguidos, maltratados e mortos. Mas não podemos perder a confiança. Pois, conviver com Jesus, ser parceiro seu na edificação do Reino de Deus é motivo e razão de alegria e paz que o mundo jamais nos dará. Não, a alegria e a paz que vêm da fé e do convívio com Jesus não medra da ausência de perigos porque estamos com o poderoso Rei do universo. Viver pela fé com Jesus e com ele assumir os valores do Reino de Deus garante-nos a alegria da sua amizade e a paz da sua presença acolhedora, do seu amor e fidelidade, mas não nos garante vida sem tribulações. Nem Jesus nos livrará dos perigos do mundo, embora seja solidário conosco em toda situação, mostrando que o amor é mais poderoso que tudo, "mais forte que a morte, e nada nos separará do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor: nem tribulação, nem angústia, nem perseguição, nem fome, nudez,perigo ou espada; nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem a altura, nem a profundeza, nem qualquer outra criatura. Pois, em tudo isto somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou" Rm 8,35-39. Provação é ingrediente básico da vida de fé. Nem Jesus se livrou das provações e tribulações do mundo. Pelo contrário, abre os olhos dos discípulos de ontem e de hoje sobre os perigos e tribulações que enfrentarão no mundo, como ele enfrentou com a valentia da fé. "Tereis tribulações no mundo; sereis perseguidos por causa de meu Nome. Mas, se vos perseguem, primeiro perseguiram-me. Digo-vos tais coisas para que, ao chegar a hora, vos lembreis que vos havia dito". Apesar da tristeza de verem aproximar-se a hora da despedida de Jesus, este assegura aos discípulos que a vitória final será da alegria e da vida, não da tristeza e da morte. "Ainda um pouco de tempo e não me vereis, mais um pouco ainda e me revereis. Vós chorareis e vos lamentareis, e o mundo se alegrará. Entristecer-vos-eis, mas vossa tristeza se transformará em alegria. Quando a mulher está para dar à luz, ela se entristece porque sua hora chegou; mas, assim que dá à luz a criança, já não mais se lembra das dores do parto, pela alegria de um filho ou filha ter vindo ao mundo. Também vós agora estais tristes; mas eu vos verei de novo e vosso coração se alegrará e ninguém vos tirará vossa alegria. Não se perturbe o vosso coração: Crede em Deus, crede também em mim. Coragem, eu venci o mundo. E esta é a vitória que vence o mundo: a vossa fé. Quem crê em mim, nasce de Deus, e todo que nasce de Deus vence o mundo. Se crerdes em mim, vos alegrareis. Pois, eu vou, mas eu volto. Eu não vos deixarei órfãos, mas vos enviarei o Paráclito, que permanecerá convosco para sempre. E eu estou convosco todos os dias até o fim do mundo" Jo 16,19-21; 1 Jo 5,4. A vivência dos valores éticos acarreta, pois, tribulações, mas a certeza da vitória da vida traz alegria e paz. Paz de Jesus, não paz do mundo. A paz de Jesus se opõe ao medo, que nasce da incerteza, dos perigos iminentes. Quem tem medo não tem paz. Os discípulos ficaram apavorados depois de verem Jesus torturado e assassinado. Por isso, quando lhes aparece no dia da ressurreição, Jesus diz: "A paz esteja convosco. Por que esse medo em vossos corações? Sou eu: vede as minhas mãos e meus pés, e o meu lado que foi varado. Tende algo para comer? Tomou o peixe e comeu diante deles". Alegraram-se ao verem Jesus e comunicar-se com ele. Perderam o medo, ganharam a paz, a alegria, a confiança. É esta paz que Jesus nos dá, mesmo nas tribulações, e que o mundo não pode nos tirar. Paz que vem da fé no Príncipe da paz e que tempestade alguma pode tirar. Enquanto os Doze despendiam esforço sobre-humano para debelarem a tempestade durante a travessia noturna do Mar da Galiléia juntamente com Jesus, este dormia tranqüilo no convés da barca, como se nada estivesse ocorrendo. Apavorados, os Doze o acordaram e deram-lhe um baita pito: "Não vês que perecemos, Jesus? Este ordenou e os ventos cessaram. E lhes disse: Por que tendes medo, homens de pouca fé". Jesus também estava no olho do furacão. Mas, mantinha a calma, em vez de se apavorar, e os Doze se borravam de medo. O que havia em Jesus que lhe dava paz, e faltava aos Doze que lhes metia medo no meio da tempestade? A fé. A fé é poder maior que qualquer outro poder. Por isto, a fé não acaba com os problemas, mas tira o medo deles, porque estamos apoiados num poder superior. Tempestade não é o problema, mas o medo e a falta de fé. E o tamanho do medo é proporcional ao tamanho da fé. "Por que têm medo, homens de pouca fé"? Peçamos a Jesus que aumenta nossa fé, não que afaste nossos problemas. Não faz sentido fé sem provações. Quando aprendermos a combater o combate da fé,

nada mais nos intimidará. "Se Deus é por mim, quem será contra mim".

O novo Rei do universo é Jesus Cristo. Realeza conquistada pelo empenho da vida para derrotar a morte. O Reino de Jesus é o poder ético, o servir, que chega a nós pela adesão de fé a Jesus. A fé torna-nos partícipes da realeza de Jesus. Realeza diferente, sem trono nem armas como dos reis do mundo. Mas é rei mais poderoso que todos os reis da terra. Rei dos reis, cujo trono está no céu, à direita do Pai, à esquerda de Deus Mãe, e domina sobre todas as coisas, juntamente com os que vivem os valores éticos, de serviço. Como o coração do povo da nova aliança não é menos rebelde que o povo da antiga aliança, os seguidores de Jesus estarão sempre em conflito com o poder mundano, que poderá estar instalado até no coração dos que dizem seguir Jesus. É preciso vigiar e orar sem cessar para que se firme nossa fé, venha a nós o vosso Reino. A exemplo de Herodes, as nações não aceitam o domínio do rei Jesus e querem eliminá-lo. "Porque as nações se amotinam e os povos meditam em vão? Os reis e príncipes da terra se insurgem e conspiram unidos contra Javé e o seu Ungido: Rebentemos seus grilhões, sacudamos de nós suas algemas. Mas o Senhor que habita nos céus ri, se diverte a custa deles. E depois lhes fala com ira, confundindo-os com seu furor: Fui eu que consagrei o meu rei sobre a minha montanha sagrada, Sião.Vou proclamar o decreto de Javé: 'Tu és meu filho, eu hoje te gerei. Pede, e te darei as nações por herança, os confins da terra como propriedade. Tu as quebrarás como um cetro de ferro, como um vaso de oleiro as despedaçarás'. E agora, reis, sede sensatos; deixai-vos corrigir, juízes da terra. Servi a Javé com temor, beijai seus pés com tremor, pra que não se irrite e pereçais no caminho, pois sua ira se acende rápido. Felizes aqueles que nele se abrigam" (que crêem nele) Sl 2. Jesus é o Rei Servidor, escolhido e enviado por Javé ao mundo, para realizar o sonho e a esperança do poder justo que todos os povos e nações têm no coração. Ele ratificará a verdade conhecida do povo da antiga aliança: "o Reino de Deus sofrerá violência e os violentos se apoderarão dele". Desde a gravidez de Maria, Jesus e sua família sofrem violência por causa do Reino. Pra escapar de ser apedrejada porque era mãe solteira Maria vai a Ain Karin visitar a prima Isabel e dar-lhe a notícia de sua gravidez. Jesus e sua mensagem libertadora incomodavam os poderosos de Jerusalém e Roma, que se apoderam dele, neutralizaram sua ação em favor da liberdade e da paz. Mas saíram perdendo, pois Jesus ressuscitou e restaurou o Reino que não queriam. Antes de Jesus, seu primo João Batista já sofrera violência da parte de Herodes, preposto do Imperador Romano na Palestina, por causa do Reino de Deus que o indignado profeta anunciava e denunciava as falcatruas e injustiças do rei-capacho de Roma, e do batismo de arrependimento que pregava preparando os caminhos de Jesus. Jesus, João Evangelista e Tiago são primos em primeiro grau e parentes de João Batista, pois Maria é irmã da mãe de João e Tiago e prima de Isabel. Jesus e Batista conheciam-se, pois Maria freqüentava a casa de Isabel antes do nascimento de Jesus. A família de Nazaré costumava ir todo ano à Festa da Páscoa. Muito provavelmente as duas famílias se encontravam no Templo. Jesus conhecia personalidade de João Batista e conviveu com ele para dizer dele: "dentre os nascidos de mulher (Jesus nasceu de mulher, mas é gerado por Ruah e o Pai) nenhum surgiu maior que João Batista. Porém, o menor no Reino dos Céus (nascido da fé, não do sangue e a carne) é maior que ele. Pois bem, "desde os dias de João Batista até agora, o Reino dos céus sofre violência e os violentos se apoderam dele" Mt 11,11-15. Como entender estas palavras de Jesus? João Batista é intermediário entre o AT e NT: ainda pertence à antiga aliança, mas já participa da nova, seja porque foi santificado ainda no ventre da Isabel, quando Maria, recém-grávida de Jesus, cheia do Espírito Santo, a visitou e saudou. Quando suas palavras chegaram aos ouvidos da Isabel comunicaram-lhe o Espírito Santo e a João, que pula na barriga de mãe, como sinal que fora ungido profeta do Altíssimo antes de nascer (Lc 1,15.44); seja porque é o precursor do Enviado do Pai e anuncia o Reino dos Céus impulsionado por Ruah, que o sagrou profeta no ventre da mãe; seja porque as reações das autoridades judaicas à sua pregação são tão violentas quanto as que Jesus provocava ao anunciar a proximidade do Reino. João Batista é precursor de Jesus até no martírio sofrido por causa dos valores do Reino iminente que anunciava, auto-realizado na Pessoa de Jesus, a Testemunha (mártir) emblemática do Reino (A 1,5). Por isto, "desde os dias de João Batista até hoje, o Reino de Deus sofre violência". Nada surpreendente, pois João e Jesus têm o mesmo projeto missionário, anunciam os mesmos valores libertadores. Há tantas afinidades entre o filho de Maria e o de Isabel que o povo chega a confundi-los. Precisou João dizer que ele não é o Cristo esperado, mas Jesus: "Eu não sou o Cristo: sou uma voz que clama no deserto: arrependei-vos, pois o Reino dos céus está próximo. Endireitai, preparai o caminho do Senhor, tornai retas suas veredas. João foi enviado por Deus. Ele veio como testemunha, para testemunhar a luz, para que todos cressem por meio dele. Ele não é a luz, mas veio para testemunhar a luz. Eu não o conhecia; vim batizar com água para o arrependimento dos pecados, para que ele fosse manifestado a Israel. Ele vem depois de mim e é mais forte que eu, porque existia antes de mim e eu não sou digno de desatar a correia de sua sandália. Ele vos batizará no Espírito Santo e com fogo. No dia seguinte, João vê Jesus aproximar-se e diz: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Neste tempo, veio Jesus da Galiléia ao Jordão até João, para ser batizado. João consentiu. Batizado, Jesus subiu de imediato da água, logo os céus se abriram e João testemunhou dizendo: Eu vi o Espírito descer, como uma pomba vinda do céu, e pousar sobre ele. Ao mesmo tempo, vinda do céu uma voz dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo. Eu não o conhecia, mas aquele que me enviou para batizar com água me disse: Aquele sobre quem vires Ruah descer e pousar é o que batiza no Espírito. Eu o vi e testemunho que ele é o Eleito de Javé" Jo 1,6-7.20.23.29-34; Mt 3,2-3.11.13-16. Depois de batizado, Jesus é conduzido por Ruah ao deserto para ser tentado pelo diabo. Vencidas o Diabo, Jesus se estabelece em Cafarnaum depois da degola de João Batista e começa a pregar o Reino de Deus, reiterando a pregação do Precursor, confirmando a obra iniciada por ele: "Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede na Boa Nova" Mc 1,15. O Evangelho é a presença do poder de Deus no meio do povo sofrido e sem governo religioso e civil: "Tenho pena deste povo, que é um rebanho sem pastor". A presença interpeladora de Jesus com o povo era uma denúncia viva contra a opressão institucionalizada nos preceitos, legalismo, tributos religiosos e civis abusivos cobrados pelas autoridades do Templo e do Império Romano, que sugava as economias do povo. Jerusalém e Roma inquietavam-se com a pregação incendiária do Batista, e mais ainda com o anúncio revolucionário de Jesus, que proclamava a presença do Reino dos céus no meio do povo, instigando à desobediência religiosa e civil. A pregação de Jesus soava como concorrência ameaçadora ao Império Romano e autoridades de Jerusalém. Desde o nascimento, Jesus incomoda Roma e Jerusalém. "Tendo Jesus nascido em Belém de Judá no tempo do rei Herodes, vieram magos do Oriente a Jerusalém, perguntado: onde está o recém-nascido rei dos judeus? Vimos a sua estrela brilhar e viemos homenageá-lo. Ouvindo isto, Herodes ficou alarmado e com ele toda Jerusalém. E, convocando todos os chefes dos sacerdotes e escribas do povo, procurou saber deles onde havia de nascer o Cristo. Responderam: Em Belém da Judéia". De imediato, ele enviou os magos a Belém, dizendo-lhes: "Ide e procurai obter informações exatas sobre o menino e, ao encontrá-lo, avisai-me, para que também eu vá homenageá-lo". Os magos encontraram o Menino e o homenagearam, mas foram avisados "em sonho que não voltassem a Herodes, pois ele procurará o menino para matar, e regressaram por outro caminho para sua região. Então Herodes, percebendo que foi enganado pelos magos, ficou irritado e mandou matar, em Belém e em todo o seu território, todos os meninos de dois anos para baixo, conforme o tempo de que se havia certificado com os magos" Mt 2,1-5.12-13.16. Estas são reações paradigmáticas do opressor que se sente acuado pelas denúncias proféticas. Jesus estava ciente delas, porque "ninguém precisava ensiná-lo: Ele sabe o que há no homem"; sabia que os desejos da carne são contrários aos valores éticos do Reino, cuja presença traria problemas para os reinos do mundo. Quando diz: "Desde os dias do Batista até agora, o Reino dos Céus sofre violência", sabia o que estava falando. Desde criança foi vítima da intolerância dos reis do mundo. Seus seguidores também, desde sua chegada ao mundo. Além da fuga com seus pais para o Egito, para escaparem da fúria de Herodes, os santos inocentes e o Batista foram os primeiros mártires da violência provocada pela chegada do Reino de Deus. Mas, por que "os violentos se apoderam do Reino"? Tomada ao pé da letra, a frase acima parece equiparar a forma de conquistar o Reino de Deus com a forma como os reis do mundo conquistam o poder: pela violência. Ora, nada mais contrário ao espírito do Reino dos céus que a violência. Por isso, surpreende ouvir Jesus dizer: "Não penseis que eu vim trazer a paz à terra. Não vim trazer a paz, mas a divisão. Vim trazer fogo à terra; como desejaria que já estivesse aceso. Vim contrapor o homem ao seu pai, a filha à sua mãe, a nora à sogra. Em suma: os inimigos do homem são seus familiares" Mt 10,34-36; Lc 12,49. Trata-se dos dois poderes em conflito: o serviço, que gera vida, e o poder-opressão do mundo, que gera morte. A violência faz parte do dia-a-dia de todos, até dos filhos de Deus. Mas não é Jesus que gera violência, nem a deseja, pois os valores básicos do Reino que anuncia e vive são a justiça e a paz. Primeiro, justiça de Deus, que é perdão e acolhimento do pecador no Reino; justiça nos relacionamentos humanos, cujo parâmetro é respeito e solidariedade. Da justiça divina e do amor fraterno decorre a paz, o bem máximo do Reino. "Dou-vos a paz, minha paz vos dou; não a dou como o mundo dá", impondo-a pela violência psicológica e física. A presença de Jesus e as exigências dos valores que anuncia e vive é que geram divisões entre pessoas. Os valores do Reino interpelam as pessoas em face dos desvalores do mundo e as levam a se posicionarem a favor ou contra os valores éticos. Quem se define pelos valores do Reino sofre violência dos que os rejeitam. Sofrerão violência até de si mesmos, quando renunciam a pagar o mal com o mal, s ofensa com a vingança, para ver realizarem-se os valores do Reino. A renúncia à própria vontade não deixa de ser uma violência contra si mesmo, que pode levar até o martírio em nome do Reino e de Jesus. É neste sentido que Jesus diz que "os violentos se apoderam do Reino de Deus". Violentos, não contra os outros, mas contra si mesmos. Justa, santa violência contra o mal do próprio coração. Os que voltam a livre e voluntária violência contra o mal neles mesmos, antes que contra os outros, ainda que ao preço da própria vida, pertencem ao Reino, cujos valores não combinam com violência, com coração que odeia e mãos que matam. É preciso destruir tal violência a todo custo, a começar em si mesmo. Como o ser humano não tem coragem de fazê-lo por sua conta, Deus o fez por ele na Pessoa do Cordeiro Divino, Primogênito da nova criação, que deu a vida livremente por nós. Cabe-nos agora, assumir na fé a morte ao pecado que ele nos mereceu, vivendo vida nova, praticando as boas obras, os valores éticos. O primogênito da nova criação foi a o primeiro a dar exemplo de auto-aniquilamnto livre e gratuito, por amor, pelos valores do Reino. "Ele tinha a condição divina (com todos direitos devidos a Deus), mas não considerou o ser igual a Deus como algo a que ciosamente apegar-se. Mas, esvaziou-se a si mesmo, assumiu a condição de servo, tomou semelhança humana. E achado em figura humana, humilhou-se e foi obediente até a morte e morte de cruz" Fl 2,6-8. Eis o paradigma da posse no Reino pela a auto-violência, doação voluntária de si, auto-anulação livre, para ver triunfar os valores éticos. O Batista sabe disto quando diz: "É preciso que Ele cresça e eu diminua" Jo 3,30. Por causa da missão de precursor, que enunciava a chegada iminente do Reino na Pessoa de Jesus, João foi preso e assassinado, deixando livre o caminho da missão do Cordeiro de Deus, que por sua vez, será imolado como vítima de expiação, como resgate dos escravos do mal e do pecado do mundo. No AT, as vítimas do sacrifício sofriam violência contra a própria vontade, eram mortas por mãos alheias. Mas o Cordeiro Santo se oferece livremente como vítima de expiação, que carregou sobre si, livremente, toda a maldição que pesava sobre nós e nos condenava. "Eram nossas enfermidades que ele levava sobre si, nossas dores que ele carregava. Nós o tínhamos como vítima do castigo, ferido e humilhado por Deus. mas, foi trespassado, esmagado por causa de nossas iniqüidades e transgressões. Caiu sobre ele o castigo que nos daria a paz: fomos curados por suas chagas. Andávamos errantes, seguindo cada um o próprio caminho, como ovelhas,mas Javé fez cair sobre ele a iniqüidade de todos nós. Foi maltratado, livremente humilhou-se, não abriu a boca, como um cordeiro conduzido ao matadouro; como ovelha que permanece muda na presença dos seus tosquiadores, ele não abriu a boca. Deram-lhe sepultura com os ímpios, se bem que não tivesse praticado violência. Mas se oferece a vida em expiação pelo pecado, certamente verá descendência e prolongará seus dias e por ele o desígnio de Deus triunfará, o Servo sofredor justificará muitos" Is 53,4-7.9-11. A autodoação do Cordeiro de Deus está no foco do conflito entre duas concepções de poder: o serviço, inspirado e regido pelo amor, e adominação, que se inspira na violência e no interesse mesquinho. É o modo de ver o poder que divide as pessoas e gera conflito entre elas. Uns se definem por Jesus, outros contra os valores que ele propõe para renovar as relações humanas. É a divergência entre as pessoas sobre a concepção de poder que gera a guerra de que fala Jesus, não os valores éticos, o direito e a justiça, que geram respeito à natureza, liberdade e paz entre as pessoas. Mas os valores éticos só geram respeito e paz se forem praticados. Sem isto, não cessarão os conflitos nas relações humanas. Decididamente, praticar os valores éticos, amar Deus mais do que pai, mãe, irmão, irmã é propriedades, é segredo da paz. Se alguém ama pai e mãe, irmão e irmã, propriedades mais que Jesus estará sempre em conflito com os irmãos e com Jesus. Não por causa dele, mas porque ele não faz concessão à justiça do Reino. O fogo de Ruah precisa queimar essas desavenças para haver paz entre as pessoas, para o Reino de Deus se realizar. Quem quiser entrar nele terá de guerrear contra quem se opõe a ele, inclusive a vontade de dominação, reflexo do poder do mundo em nosso coração. Guerra primeiro lugar contra nós mesmos, contra nossa vontade de dominar e destruir os outros. Antes de violentar os que se opõem ao Reino, devo voltar a violência contra o mal dentro de mim, para então abrir espaço para os valores éticos no meu coração e no mundo. Destruir o mal no próprio coração, antes de destruí-lo nos outros, não deixa de ser um parto doloroso, pelo qual é preciso passar. "Se entrares para o serviço do Senhor, prepara-te para a provação. É preciso passar por muitas tribulações para entrar no Reino de Deus. Todos que vivem com piedade em Jesus Cristo serão perseguidos. Felizes os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus. Sereis odiados de todos por causa de mim. Se com ele sofremos, com ele reinaremos" At 14,22; Mt 5,10; 10,22; 2 Tm 2,12; 3,12. Pra entrar no Reino, é preciso passar pela violência da morte a si mesmo, o batismo doloroso de Jesus. Se o grão de trigo não morrer, ficará só. Mas, se morrer, gera vida e o Reino chegará. É assim que "os violentos se apoderam do Reino de Deus". Não os violentos deste mundo, pois o espírito do Reino é contrário à violência do reino diabólico. Mas os que fazem guerra ao mal em seus corações, dão vez ao Reino. A morte é a maior violência que nos atinge. Mas quem não morrer ao ego estreito, "a si mesmo, não entrará no Reino dos céus. O que adianta o homem ganhar o mundo se vier a perder a vida eterna". A destruição do mal no nosso coração é obra de Ruah, o fogo e a água de Deus que queima e lava as imundícies do nosso coração.

[3] O poder que rege o Reino de Deus é inspirado no Espírito de serviço, cujo paradigma é Jesus Cristo, que, "sendo rico se fez pobre, para nos enriquecer com sua pobreza", nos servir, não ser servido. O poder opressor apóia-se na veleidade de dominar e ser servido, não servir. Servir é o fogo que Jesus veio atear no mundo e deseja vê-lo queimar rápido, para devorar o egoísmo que medra nas trevas da ganância que mata. O zelo do Espírito de santidade que devora Jesus é o mesmo que o faz a luz do mundo, que "brilha nas trevas e as trevas não conseguem dominá-la" Jo 1,5. Aparentemente, sobrepujam a luz, mas, silenciosamente, esta "por si mesma se difunde", vence todas as trevas. Por hora, as duas forças estão em conflito, até nas famílias. O serviço gratuito é revolucionário, mexe com maus hábitos, maus costumes, atitudes incorretas, e provoca conflito entre pessoas. Por isto, Jesus diz: "Não penseis que vim trazer a paz à terra. Não vim trazer paz, mas divisão. Vim trazer fogo à terra; como desejaria que já estivesse aceso! Vim contrapor o filho a seu pai, a filha à sua mãe e a nora à sogra. Os inimigos do ser humano são seus próprios familiares" Mt 10,34-36; Lc 12,49. Servir é praticar os valores éticos, que são revolucionários, porque desinstalam os cínicos acomodados. A ignorância é neutra, não gera conflitos. Mas o serviço é força que interpela e desinstala os acomodados, obriga-os a posicionar-se a favor ou contra os valores éticos. A Palavra e Pessoa de Jesus jamais será neutra, mas provoca reações contra ou pró. "É como a chuva que cai: para o céu não retorna sem antes ter molhado a terra e fazê-la germinar, brotar, para produzir semente pra quem planta e alimento pra quem come. O mesmo acontece com minha palavra: sai da minha boca e não volta para mim sem produzir resultado, fazer aquilo que planejei, cumprir com sucesso sua missão" Is 55,10-s. Jesus detesta quem fica em cima do muro. "Conheço tua conduta: não és quente ou frio. Oxalá fôsseis frio ou quente. Mas, porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar da minha boca. Muitos me dirão naquele Dia: Senhor, Senhor, não foi no teu nome que expulsamos demônios, fizemos milagres. Então, eu lhes direi: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade" Ap 3,15-ss; Mt 7,22-23. Neutralidade não combina com fé. Quando chove, no monturo das casas de sítios e fazendas plantas boas e daninhas nascem juntas. De igual modo, a Palavra de Jesus e os valores éticos geram conflitos entre as pessoas, entre quem optou pelo partilha e quem é optou pela ganância. É inevitável, pois a presença do bem no meio do mal, da luz no meio das trevas desinstala as pessoas, os leva a definir-se pro ou contra os valores éticos. Os conflitos gerados pelos valores éticos não visam o interesse pessoal de quem os anuncia e vive, mas a vitória do direito e da justiça. Jesus avisa aos enviados que criarão atritos. "No mundo tereis tribulações. Se assim não fosse, não vos teria dito. Se me perseguiram, vos perseguirão também, por minha causa e do Reino. Lavar-vos-ão diante dos juízes e governadores, vos acoitarão, matarão, quem vos matar julgará prestar serviço a Deus". Por isto, quem segue Jesus está sempre no fio da navalha, desafiado a morrer por ele, mesmo nada colhendo da semeadura da Palavra. O papel do enviado é semear, não colher os frutos. Colher é tarefa do dono da vinha, o qual diz com sabedoria: "Quando fizerdes o que vos foi pedido, dizei: somos servos inúteis, não fizemos mais que nosso dever". Curiosos porque deixaram tudo pra seguir Jesus, pensando talvez em ter vida melhor que a dura vida de pescadores, os discípulos caíram na real e interpelaram Jesus: "Mestre, deixamos tudo para seguir-te. O que ganharemos? Jesus respondeu: Vós que deixastes pai, mãe, filhos, propriedades para seguir-me, cem vezes mais ganhareis pai, mãe, filhos e propriedades, com tribulações e, como prêmio, o Reino dos céus: sentar-vos-eis em doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel". Jesus não nos ilude sobre os riscos de segui-lo: é pegar ou largar. Se Jesus tem credibilidade, sigo-o com firmeza; se não tem, melhor desistir. O admirável é que, se há tanta gente seguindo Jesus dois mil anos depois que ele enviou os discípulos pioneiros, é que eles acham que vale a pena apostar nele: seu fascínio não é ilusão, mas um projeto de vida que se realiza. João Batista foi um que apostou no sonho de Jesus e deu a vida por ele. Jesus disse que está pra nascer da carne e do sangue alguém maior que o Batista. Mas o menor no Reino de Deus é maior que ele. No Reino de Deus, tudo funciona ao arrepio do mundo: é grande quem se faz pequeno; justo, quem se declara pecador; senhor, quem serve. Ora, o maior no Reino, o rei Jesus, se fez o servo menor: renunciou à glória que tem por ser consubstancial ao Pai e a Deus Mãe, assumiu um corpo semelhante ao nosso corpo pecador, pra nos salvar da maldição do pecado (da Lei). Preferiu sofrer a violência a praticá-la contra seus irmãos. "Não há maior prova de amor do que dar a vida pelos irmãos". Jesus é o modelo de quem sacrifica a vida para ver reinar a vida nos diferentes dele. Sendo Deus, fez-se homem pra em tudo ser como nós, menos no pecado e ensinar-nos a viver vida ética; "sendo rico, fez-se pobre, para nos enriquecer com sua pobreza"; sendo grande, se fez pequeno para nos exaltar; sendo Senhor, se fez servo, para salvar todos; sendo poderoso, fez-se manso e humilde de coração, pondo o poder a serviço da vida, não da morte. Às vésperas da sua paixão e morte, reunido com os Doze na última ceia da antiga aliança, que será substituída pela ceia da nova aliança selada no sangue do Cordeiro Divino, depois dos rituais – benzer o pão e o vinho, distribuí-los e tomá-lo com os convivas – Jesus se levantou da mesa e fez o inédito gesto profético de servir, que é o espírito da nova aliança. "Quando chegou a hora (de voltar ao Pai e estabelecer a nova e eterna aliança), Jesus se pôs à mesa com os Doze e disse-lhes: Desejei ardentemente comer convosco esta páscoa antes de sofrer; pois digo-vos que já não a comerei até que se cumpra no Reino de Deus". A letra morta da Lei será vivificada pelo Espírito da nova aliança. Quando Jesus der a vida na cruz, terá acabado a antiga aliança e se consumado a nova. Jesus ardentemente deseja esta hora, porque assim seria realizada a vontade do Pai de fazer novas todas as coisas. "Então, tomou um cálice (ritual antigo), deu graças e disse: Tomai isto e reparti entre vós; pois eu vos digo que doravante não beberei do fruto da videira até que venha o Reino de Deus". Jesus bebe pela última vez o vinho da antiga aliança, mas não beberá do vinho da nova aliança; beberá o cálice amargo dos pecados do povo quando derramar o sangue sobre todos e alimentá-los em abundância com o pão do seu corpo na festa do Reino. Quando for crucificado na humilhação suprema, o rei Jesus terá prestado o mais elevado serviço ao seu povo: dar a vida por ele, resgatá-lo do pecados uma vez por todas, instituindo o Reino novo do serviço e do amor fraterno na própria Pessoa. Jesus é a encarnação do serviço, do reinar misericordioso do Pai sobre nós. Usa seu poder para servir até a entrega pelos outros, dando-lhes o que tem de mais precioso: a vida. O sinal da transição da antiga pra nova aliança é o serviço do lava-pés. "Durante a ceia, quando já o cão colocara no coração de Judas Iscariote, filho de Simão, o projeto de entregá-lo, sabendo que o Pai tudo colocara em suas mãos, e que ele viera de Deus e a Deus voltava, levanta-se da mesa, depõe o manto e, tomando uma toalha, se cinge com ela. Depois, coloca água numa bacia, começa a lavar os pés dos discípulos e enxugá-los com a toalha com que estava cingido. Depois que lhes lavou os pés, retomou o manto, voltou à mesa e lhes disse: Compreendeis o que vos fiz? Chamais-me Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou. Se, portanto, eu, o Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, o façais vós também. O servo não é maior que seu senhor, nem o enviado maior que quem o enviou. Basta que o discípulo se torne como o mestre e o servo como o seu senhor. Se compreenderdes isto e o praticardes, sereis felizes" Jo 13,2-5.12-17; Mt 10, 25. De novo à mesa, Jesus continuou a comer a ceia antiga com os Doze. Durante a ceia, instituiu os sinais eucarísticos da nova aliança, sob as espécies de pão e vinho, como memorial do sacrifício da cruz, que sela o fim das oferendas de animais e em definitivo firma o único sacrifício salvífico do Cordeiro de Deus: a entrega da vida por amor para salvar os pecadores. "Enquanto comiam, tomou o pão, deu graças, partiu-o e distribuiu-lhos dizendo: Tomai, comei. Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória. Depois, tomou o cálice e, dando graças, deu-lhos dizendo: Bebei dele todos, pois isto é meu sangue, sangue da nova aliança que é derramado por muitos pra remissão dos pecados" Mt 26,26-29. O ritual das duas ceias é idêntico: abençoar e distribuir pão e vinho aos presentes; mas o conteúdo é substancialmente diferente. O conteúdo da antiga ceia é o sangue, a vida de animais. O conteúdo da nova ceia é o sangue, a vida de Jesus, o Cordeiro de Deus. Doravante, quem quiser seguir Jesus terá de dar a vida pelos irmãos e lavar os pés deles, fazer-se eucaristia pelos outros como Jesus é. Este é o sentido de "fazei isto e minha memória: Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é vosso culto espiritual" Rm 12, 1. Os Doze não entenderam o espírito de serviço da nova aliança, porque pensavam num reino humano. Apesar de tudo que viram Jesus fazer durante três anos que conviveram com ele, nem depois da ressurreição eles haviam captado que o espírito do novo reino é servir e gastar a vida pelos outros. Estavam preocupados com o que iria acontecer depois que Jesus deixasse o comando visível do grupo: quem seria o líder depois da morte do Mestre? Impressiona que a discussão entre os Doze pelo poder aconteceu imediatamente após o lava-pés e a instituição da eucaristia, quando Jesus mostrou com seu exemplo que o espírito do novo Reino é servir: "Dei-vos o exemplo pra que, como eu vos fiz, também vós o façais: fazei isto em minha memória". Não haviam entendido o sentido do lava-pés nem da eucaristia. "Houve uma discussão entre eles: qual seria o maior? Jesus disse-lhes: Os reis das nações as dominam, e os que as tiranizam são chamados Benfeitores. Mas, entre vós não deverá ser assim:, o maior dentre vós torne-se o mais jovem, e o que governa, como aquele que serve. Pois, qual é o maior: o que está à mesa ou aquele que serve? Não é aquele que está à mesa? Vós me chamais de Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou. Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve"Lc 22,14-20.24-28. Não adiantou: ficaram na mesma. Antes da ascensão, Jesus se reúne pela última vez com os apóstolos para lhes dar as últimas instruções sobre o papel deles na continuidade da obra por ele iniciada, e fazê-los entender que o Reino de Deus já esta em ação entre eles. Mas, inda não haviam entendido o espírito novo do Reino, pois continuavam com as mesmas preocupações de antes da paixão: ver chegar com pode arrasador o reino de Davi, expulsar os romanos da Palestina, retomar o poder. "Jesus apresentou-se ainda a eles, vivo depois da paixão, com provas incontestáveis: apareceu-lhes durante quarenta dias e falou-lhes do que concerne ao Reino de Deus. Então, no decurso de uma ceia com eles, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas aguardassem a promessa do Pai, a qual ouviste da minha boca: João batizou com água, mas vós sereis batizados em Deus Mãe dentro de poucos dias. Estando, pois, reunidos, eles o interrogaram: Senhor, é agora o tempo em que irás restaurar a realeza em Israel"? Jesus, ciente dos limites da fé dos Doze, fez ouvido de mercador e respondeu à pergunta em sentido contrário. "Não vos compete saber os tempos e momentos que o Pai fixou com sua própria autoridade. Mas recebereis a força de Deus Mãe, que descerá sobre vós e vos recordará tudo que vos ensinei. E sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e a Samaria, até os confins da terra. Proclamai que o Reino está próximo, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, curai os doentes, expulsai os demônios. De graça recebestes, de graça dai. Eles saíram a pregar por toda parte, agindo com eles o Senhor, confirmando a Palavra por meio dos sinais que a acompanhavam"At 1,3-8; Mt 10,7-8; Mc 16,20. Os discípulos são enviados na companhia e com a autoridade de Jesus. Companheiro é quem compartilha o pão (cum–panis): o pão do corpo e o pão vivo que dá força para suportar as tribulações do. Jesus é a companhia atuante dos seus enviados: "Estou convosco todos os dias". A prova que Jesus os acompanha são os sinais que seguem à pregação, que confirmam a fé dos ouvintes. Os enviados de Jesus oramos, agimos, falamos, servimos Pessoa, no Nomede Cristo, com o mesmo poder dele a nós comunicado mediante a fé. Tudo na vida do discípulo de Jesus é feito e dito em Cristo, com Cristo, por Cristo.

[4] Um dia Jesus estava orando sob o olhar extasiado dos Doze. "Ao terminar, um deles pediu-lhe: Jesus ensina-nos a orar, como João Batista ensinou seus discípulos. Jesus lhes responde: Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja teu Nome; venha teu Reino" Lc 11,1-2. O foco da oração que Jesus ensinou é o Reino do Pai,que chegará quando houver pão para todos, as pessoas se perdoarem e o bem vencer o mal. Isto acontecerá à medida que seus discípulos empenharem-se em viver os valores éticos que fazem a estrutura e a essência do Reino de Deus. Não é fácil ser ético numa cultura aética. Por isso Jesus nos ensina a pedir: "Pai, não nos exponha à tentação, mas livra-nos do Maligno", inspirador do mundo sem ética, concorrente dos valores éticos. Provações e tentações fazem parte da vida de fé dos reinóis de Jesus. Ele nos previne disto e não pede ao Pai que nos afaste do mundo, que nos livre das tribulações, das provações, das tentações inevitáveis, mas nos preserve do mal, livre-nos de cair na tentação quando nossa fé for provada. Jesus é franco conosco: "No mundo tereis tribulações. Sereis odiados de todos por causa do meu nome. Se o mundo vos odeia, sabei que me odiou primeiro. Se fôsseis do mundo, ele amaria o que é seu; mas porque não sois do mundo e minha palavra vos separou dele, por isso o mundo vos odeia. Lembrai-vos da palavra que vos disse: o servo não é maior que o seu senhor. Se eles me perseguiram, vos perseguirão também; se guardaram minha palavra, também guardarão a vossa. Mas, farão tudo isto contra vós por causa do meu nome, porque não conhecem quem me enviou. Quem me odeia também meu Pai. Se eu não tivesse vindo e não lhes tivesse falado, não seriam culpados de pecado; mas agora não têm desculpa para seu pecado. Se eu não tivesse feito as obras que nenhum outro fez entre eles, não seriam culpados de pecado; mas viram e nos odeiam, a mim e a meu Pai. Mas é para que se cumpra a palavra escrita na sua lei: odiaram-me sem motivo. Digo-vos isto para que não vos escandalizeis. Guardai-vos dos homens: eles vos entregarão aos sinédrios (tribunais judaicos), vos flagelarão em suas sinagogas, vos expulsarão das sinagogas. E por causa de mim, sereis levados à presença de governadores e de reis, para dar testemunho perante eles e perante as nações. E mais ainda: virá a hora em que aquele que vos matar julgará realizar um ato de culto a Deus. Digo-vos estas coisas para que, quando chegar a hora, vos lembreis que eu vos havia dito. Por isso, tende coragem: eu venci o mundo. Crede em Deus, crede também em mim. Todo que crê em Jesus Cristo nasceu de Deus e quem nasceu de Deus venceu o mundo. E esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé". Jesus não quer que tenhamos medo do mundo, mas o enfrentemos com a humilde bravura da fé, que é a apropriação do poder de Deus, que nos capacita a praticar ações teândricas, ações divinas com rosto humano ou ações humanas com valor divino, com as de Jesus, ao mesmo tempo Deus e homem. A arma do mundo é o medo e a bravata. A arma de Jesus é a paz de Deus, a única que vence o medo. O medo paralisa as pessoas e as torna presas fáceis de perseguidores. A paz de Jesus deixa-nos tranqüilos e dispostos a enfrentar o mundo sem medo. Jesus quer vencer o medo do mundo em nós fazendo-nos tomar consciência que o poder de Deus em nós (a fé) é maior que o poder do mundo que nos ameaça de perder a paz. "Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou ('a saúde corporal, a felicidade perfeita, salvação trazida pelo Messias. Tudo isto é dado por Jesus'). Não vo-la dou como o mundo dá. Por que estais perturbados e por que surgem tais dúvidas em vossos corações? Não se perturbe nem se intimide vosso coração: não vos deixarei órfãos; eu vou e volto a vós. A paz esteja convosco". O mundo faz barulho para amedrontar as pessoas, quebrar-lhes a resistência e se apoderarem da vontade delas. O poder do mundo é diabólico. Mas o poder de Deus é construtivo, age interiormente, em silêncio, elevando nossa auto-estima, encorajando-nos para arrostar os perigos do mundo, potenciando nossa vontade para o bem. "Por que tendes medo, homens de pouco fé? Quando vos entregarem, não fiqueis preocupados em saber como ou o que haveis de falar. Naquele momento vos será indicado o que deveis falar, porque não sereis vós que estareis falando, mas o Espírito do meu Pai é quem falará em vós". Jesus, junto com os membros do seu Corpo, são intercessores permanentes, de plantão dia e noite junto ao Pai, a rogar que aumente nossa fé e nos faça sair vitoriosos das tentações e do mal. "Pai, não peço que os tires do mundo, mas que os preserves do mal. Não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal" Jo 14,18.27-28; 15,18-25; 16,1-4; 17,11.15; 1 Jo 5,1.4; Lc 24,37-38; Mt 6,13;10,17-20.22. Nada de fugir do mundo, mas enfrentá-lo com fé eoração. Tentações, provações são parte da pedagogia do crescimento na fé. "É preciso passar por muitas tribulações pra entrar no Reino de Deus. Vós sois nosso orgulho entre as Igrejas de Deus, por causa da vossa perseverança e vossa fé em todas as perseguições e tribulações que suportais. Elas são sinal do julgamento de Deus, pra tornar-vos dignos do seu Reino por que sofreis. Se com Jesus sofremos, com ele reinaremos. Lembrem-se que nossos pais foram tentados para que se verificasse se eles serviam verdadeiramente ao seu Deus. Lembrem-se como o pai Abraão foi tentado, passou por muitas tribulações para tornar-se amigo de Deus. Assim Isaac, Jacó, Moisés e todos quer agradaram a Deus permaneceram fiéis apesar das múltiplas tribulações. Lembra-te de todo o caminho por onde o Senhor te conduziu durante quarenta anos no deserto, para humilhar-te e provar-te, e para conhecer os sentimentos do teu coração, e saber se observarias ou não os seus mandamentos. Assim como um homem corrige o seu filho, assim te corrige o Senhor teu Deus. Estais sendo provados para a vossa correção, é Deus que vos trata como filhos. Repreendo e educo todo aquele que amo. Todo ramo da videira que produz fruto o Pai o poda, para que produza mais fruto ainda" At 14,22; 2 Ts 1,4; 2 Tm 2,12; Jdt 8,21-23; Dt 8,2-5; Hb 12,7; Jo 15,2; Ap 3,19. O Pai corrige os que caminham na fé pra que cresçam. Em virtude de nossa liberdade de escolha e decisão entre várias possibilidades, há dois caminhos a seguir, mas nenhum é imposto. Podemos escolher os valores do Reino ou os desvalores do mundo, verdade ou mentira, morte ou vida, sem ninguém interferir. Cabe-nos escolher um dos dois caminhos. Deus não nos impõe o caminho do bem nem impede que escolhamos o caminho errado, mas deixa-nos livres para decidir que caminho tomar. Tamanha é a dignidade da nossa liberdade e o respeito que o Pai tem por ela! Como Pai, aconselha-nos a escolher o caminho da vida, mas não no-lo impõe nem nos impede de escolher outro caminho. "Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade. Hoje tomo o céu e a terra como testemunhas: eu te propus a vida ou a morte, a bênção ou maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência, amando Javé teu Deus, obedecendo à sua voz e a pegando-se a ele" Dt 30, 15.19. Em respeito à liberdade de escolha do povo oprimido, tratado com desprezo pelas autoridades que deveriam defendê-lo, antes de realizar algum prodígio, Jesus perguntava à pessoa: "Que queres que eu te faça? Queres ser curado"?, com respeito absoluto à sua liberdade de escolha. Nem Jesus escapou do dilema de escolher entre ser fiel ao Pai ou seguir a lei do menor esforço insinuada pelo tentador. Depois de batizado, "Jesus, pleno da vida de Deus Mãe, voltou do Jordão e era conduzido por ela pelo deserto durante 40 dias para ser tentado pelo diabo. Tendo acabado toda a tentação, o diabo o deixou até o tempo oportuno" Lc 4,1-2.13. Jesus tinha os motivos para sucumbir à tentação: estava faminto e tinha poder. Mas resistiu por causa de sua opção fundamental pelos valores do Reino. Estavam em confronto o poder de Deus e o de Satanás. A tentação consistiu em levar Jesus a duvidar do poder do Pai e optar pelo poder do mundo. Primeira tentação: o milagre como exibição do poder de Deus, não como sinal da sua presença atuante entre nós: "Se és o Filho de Deus, ordena que estas pedras transformem em pães". Era fácil para Jesus fazer o milagre, pois tem poder para isto: multiplicou os cinco pães e os dois peixes e com eles alimentou cinco mil homens, sem contar as mulheres e crianças. Na verdade, o diabo não estava interessado em milagre, pois sabia que Jesus era capaz de fazê-lo, mas manipulá-lo em momento de fragilidade, levando-o a dar um espetáculo para o deleite do príncipe das trevas, que passaria a ter poder sobre a soberania de Jesus. "Mas Jesus respondeu: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus" Dt 8,3. Segunda tentação: tentar Deus para satisfazer a curiosidade de Satanás e zombar do poder de Deus: "Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito e eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra. Jesus respondeu: não tentarás o Senhor teu Deus" Sl 90 (91),11-12; Dt 6,16. Terceira tentação: levar Jesus a renegar Deus e seguir falsos deuses, que asseguram o poder deste mundo: "Dar-te-ei todos os reinos do mundo com seu esplendor, se, prostrado, me adorares. Aí Jesus lhe disse: Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto. Com isto, o diabo o deixou até o tempo oportuno. Os anjos de Deus se aproximaram e puseram-se a servi-lo" Dt 34,1-4; 16,23;6.13; Mt 4,1-11; Lc 4,13. Jesus estava diante de desafios tentadores que ameaçavam desviá-lo da missão que o Pai lhe confiou. Seria aplaudido se tivesse cedido, mas optou pela fidelidade à vontade do Pai, a quem submete interesses pessoais. Quer dizer: por maior que seja a tentação, por mais difíceis que sejam os desafios, ninguém nos obriga a optar pelo caminho mais fácil nem aceitar aparentes vantagens. Cabe-nos decidir o caminho a tomar, e assumir total responsabilidade pela decisão tomada. Isso nos impede de culpar alguém se cairmos em tentação, tomando decisão equivocada, por maior que seja a indução ao mal. Se não nos responsabilizamos pelas decisões diante dos desafios da vida, não haverá auto-imputação de nossos atos. Portanto, por maior que seja a tentação, podemos dizer não livremente a ela. Uma coisa é certa: contamos com a assistência divina na hora da decisão, em virtude da aliança com o Criador e Salvador. Evidentemente, se tomamos decisões contrárias aos valores éticos, não contaremos com a assistência divina. Mas, se tomamos decisões pela fé, certamente Jesus agirá conosco. "Quem se julga estar de pé, cuide para não cair. As tentações que vos acometeram tiveram medida humana. Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Mas com a tentação vos dará os meios de sair dela e a força para suportá-la" 1 Cor 10,12-13. Entendidas à luz da fé e da aliança do Cordeiro conosco, as tentações têm o sentido positivo de prova da fé. Por isso, "meus irmãos, tende por motivo de grande alegria o serdes submetidos a múltiplas provações, pois sabei que vossa fé, bem provada, leva à perseverança. Deveis alegrar-vos, ainda que agora sejais contristados, por algum tempo, se preciso, por força de várias provações, para que a autenticidade comprovada da vossa fé, mais preciosa do que o ouro que perece, cuja genuinidade é provada pelo fogo, alcance louvor, glória e honra por ocasião da revelação de Jesus Cristo" Tg 1,2-3; 1Pd 1,6-7. As provas da fé fazem parte da contradição inerente ao Reino no meio de nós. O paradoxo é da natureza da vida de fé, que propõe um jeito de viver conflitante com o jeito egoísta de viver do mundo. Simeão já advertira Maria ao tomou Jesus nos braços, no Templo: "este menino será um sinal de contradição para o seu povo e o seu tempo".O Príncipe da Paz provocou a divisão entre os que aderiram a ele e os que o rejeitaram. Ele é a vida, mas para segui-lo é preciso perder a vida centrada em si, no individualismo de valores de morte, que são os antivalores do mundo, e centrá-la em Jesus, a preciosa pérola pela qual pode-se trocar tudo. Eis o maravilhoso paradoxo evangélico, inspirador, provocador, instigador, suscitador de mudança no mundo. Para ter uma realidade nova, pessoal ou social, é preciso perder a antiga. Porque os valores do Reino de Deus não são os do mundo, por isso estão necessariamente em conflito com os eles. Para quem tem fé, o paradoxo evangélico é luz e vida; para os insensatos, é treva. Para não entrarmos no jogo dos insensatos, pedimos ao Pai: "Não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal". Com este pedido estamos reconhecendo que o poder do mal não pode ser vencido apenas com forças humanas, mas com a graça solidária da SS Trindade. Jesus nos insta a orar e vigiar para não cairmos em tentação. E nos assegura: "Pedi e recebereis. Tudo que pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vo-lo concederá". Ciente da seriedade da parceria de Jesus conosco, Paulo insiste: "Fortalecei-vos no Cristo e na força do seu poder. Revesti-vos da armadura de Deus, para poderdes resistir às insídias do diabo. Nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra as potências dominadoras do mundo das trevas, contra os espíritos do mal que povoam as regiões celestiais. Por isso, deveis revestir a armadura de Deus, para poderdes resistir no dia mau e sair livre de todo o combate. Portanto, ponde-vos de pé e cingi os rins com a verdade e revesti-vos com a couraça da justiça e calçai os pés com a preparação do evangelho da paz, empunhando sempre o escudo da fé, com o qual podeis extinguir os inflamados dardos do Maligno. Tomai o capacete da salvação e espada do Espírito, da Palavra de Deus. Com orações e súplicas de toda sorte, orai em todo o tempo, no Espírito, e para isto com perseverança e súplica vigiai pelos santos. Orai também por mim, pra que, quando abrir os lábios, seja-me dada a palavra pra anunciar com ousadia, como importa que eu anuncie, o mistério do evangelho, do qual sou embaixador em cadeias" Ef 6, 10-20. A oração é a força mais poderosa contra o poder das trevas, presente insidiosamente na vida dos que crêem.

CONCLUSÃO: Quem crê em Jesus é rei, sacerdote existencial e profeta

A fé e o batismo nos fazem reis, sacerdotes e profetas, por participação na natureza régia, sacerdotal e profética de Jesus. Desde a antiga aliança o povo de Deus é um povo de reis, sacerdotes, profetas. Corporificando a Descendência de Abraão, a mais importante figura da antiga aliança, Jesus resgatou todos os atributos do povo eleito. Partícipe da natureza régia, sacerdotal e profética de Jesus, o povo da nova aliança também é um povo de reis, sacerdotes, profetas, pela fé e o batismo ritual. Do povo sacerdotal da antiga aliança, a tribo de Levi é escolhida pra exercer o sacerdócio ritual, cuja função é oferecer sacrifício em louvor de Javé. Do povo sacerdotal da nova aliança, alguns são também escolhidos pra exercerem o sacerdócio ministerial em nome dos que crêem. Há, pois, dois tipos de sacerdócios, tanto na antiga como na nova aliança: o sacerdócio existencial do povo e o sacerdócio ministerial. O sacerdócio de Jesus e dos que crêem nele não é ritual. Jesus é leigo, membro do povo sacerdotal. Seu sacerdócio e dos que crêem nele é existencial, essencialmente diferente do sacerdócio ritual judeu-cristão. O sacerdócio leigo de Jesus remonta ao sacerdote do Altíssimo, Melquisedec, contemporâneo de Abraão, o pai da fé. O sacerdócio existencial de Jesus e dos que crêem nele remonta, pois, à linhagem da fé, não da Lei. Melquisedec não tem pai e mãe humanos, à semelhança de Jesus. Por isto, é a figura do Cristo e dos que crêem nele, que "não são gerados da carne, do sangue ou da vontade de homem, mas de Deus" Jo 1,12. Melquisedec oferta ao Deus Altíssimo pão e vinho pelas vitórias de Abraão em Canaã. Jesus oferta a própria vida em sacrifício pelos pecados do povo, para gerar auto-estima e vida nele. No mesmo dia da morte de cruz, ele institui a eucaristia durante a ceia antiga, em memória do seu sacerdócio existencial, usando os mesmos elementos que Melquisedec usou, agora para simbolizarem seu corpo dado e seu sangue derramado. No discurso escatológico e no lava-pés, Jesus revela o sentido da eucaristia, da ação de graças a Deus: Servir, dar a vida pelos outros. "Quem quiser ser grande, torne-se servo dos outros. A verdadeira religião, sem mácula diante de Deus Pai, é visitar órfãos e viúvas nas suas tribulações e guardar-se livre da corrução do mundo". Jesus anunciou o discurso escatológico dois dias antes do lava-pés e instituição da eucaristia: "Eu tive sede e me destes de beber..." Mt 25,31-46. O lava-pés ocorreu no meio da ceia antiga, antes da instituição da eucaristia. Depois de lavar os pés dos Doze, Jesus lhes perguntou: "Entendestes o que eu vos fiz? Chamais-me Mestre e Senhor e eu o sou, mas estou entre vós como aquele que serve." Jo 13,1-15.21-23; Lc 22,27; Tg 1, 26-27. Em seguida, Jesus retoma o lugar à mesa, oferece pão e vinho ao Pai, abençoa-os e distribui com eles dizendo: "Isto é o meu corpo que é dado por vós. Tomai e comei. Este cálice é a nova aliança no meu sangue, derramado por vós. Tomai e bebei. Fazei isto em memória de mim" Lc 22,19-20. Que memória? A mera lembrança de um gesto heróico? Não. Trata-se, primeiro, da atualização pela fé da morte de cruz de Jesus, por meio dos sinais do pão e vinho, fazendo os mesmos gestos, dizendo as mesmas palavras que Jesus fez e disse quando instituiu a eucaristia. Mas, "fazei isto em memória de mim" significa, sobretudo "sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso; gastai a vida, o tempo servindo os outros; matai a fome dos famintos, saciai a sede dos sedentos, cobri corpos nus; dai esperança aos desesperados, esclarecei os ignorantes: amai uns os outros como eu vos amei". Praticar a fé desta forma é prestar o culto espiritual do agrado de Deus, é fazer memória viva da eucaristia, viver o sacerdócio existencial como Jesus vive por toda eternidade. Desta forma, a ação de graças ao Pai pela entrega do Filho por nós, a comunhão no sangue e corpo de Jesus torna-se compromisso de fazer pelos outros o que ele faz por nós. Assim o amor misericordioso da Família Divina gerará vida nos irmãos e no mundo, por meio de Jesus, o Mediador único da vida divina. Eucaristia é o maior gesto de doação de si, tanto de Jesus como nosso. "Ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida pelos amigos" Jo 15,13. Na comunhão Jesus dá a vida por nós e nos manda fazer o mesmo que ele, para perpetuar a memória do que fez". O dom da vida na kénosis intratrinitária continua na encarnação, paixão, morte, ressurreição, ascensão e o envio de Deus Mãe sobre todas as criaturas, e nos é comunicado na eucarística, para o repassarmos aos irmãos e à criação inteira. A doação da vida, o sacerdócio existencial de Jesus começa, pois, na vida intratrinitária antes da criação do mundo, quando o Cordeiro está imolado e de pé por nós: "Não foi com coisas perecíveis, como ouro ou prata, que fostes resgatados da vida fútil que herdastes de vossos pais, mas pelo sangue precioso de Cristo, como do cordeiro sem defeitos ou mácula, conhecido antes da criação do mundo, mas manifestado no fim do tempo por vossa causa" 1 Pd 1,18-s. A imolação do Cordeiro na cruz por nós é o corolário da sua imolação intratrinitária por Deus Mãe e o Pai. "Eu e o Pai somos um: eu estou no Pai e o Pai está em mim. Tudo que é do Pai é meu e o que é meu é do Pai. Quando vier Deus Mãe, que o Pai enviará no meu Nome, ela testemunhará de mim, vos ensinará e recordará tudo o que vos disse, vos conduzirá à verdade plena, pois não falará de si mesma, mas dirá o que tiver ouvido (do Pai e do Filho) e anunciará coisas futuras. Ele me glorificará, pois receberá do que é meu e vos anunciará. Quem me vê, vê o Pai. Tudo o que o Pai tem é meu, e tudo que é meu é do Pai. Por isto, vos disse: Deus Mãe receberá do que é meu e vos anunciará" Jo 6,57; 10,30; 14,11.26; 16,13-15; 17,10. A vida intratrinitária que o Filho doa ao Pai e a Ruah e eles lhe doam, o Filho nos comunica na eucaristia. Por isto, fala de corpo doado, sangue derramado: Jesus nos dá a vida intratrinitária. "Nele habita corporalmente a plenitude da divindade e foste levado à plenitude nele: da sua plenitude recebemos graça sobre graça" Cl2,9; Jo 1,16. A doação intratrinitária do Cordeiro salvou, muitos pela fé implícita antes da encarnação. "Abraão exultou por ver meu dia; viu-o, exultou de alegria. Antes que Abraão fosse, eu sou" Jo 8, 56-s. As promessas feitas a Abraão realizaram-se em, com, por Jesus Cristo. Por isto, a fé de Abraão era em Jesus, o depositário das promessas do pai da fé de judeus e cristãos. "Abraão creu em Deus, isto lhe valeu como justiça. Os que crêem em Jesus são filhos de Abraão. Prevendo Javé que justificaria os gentios pela fé, a Escritura profetizou a boa nova a Abraão: todas os povos serão benditos em ti. Daí, os que são pela fé são benditos com Abraão, que teve fé. A benção de Abraão em Jesus Cristo se estende aos gentios, para que, pela fé, recebamos Ruah" Gl 3,6-14. Na de Abraão e na memória sacerdotal de Melquisedec é que Jesus se consagra pra sempre e que a comunhão eucarística insere-se. Prevendo a entrega do Filho por nós, Javé exigiu que Abraão sacrificasse Isaac, pai das doze tribos de Israel. Abraão creu em Javé e decidiu sacrificar Isaac. Não o fez porque Javé, testando a fé de Abraão ao limite, viu que acreditava e interrompeu o holocausto, providenciou um carneiro que foi morto no lugar de Isaac. Jesus é também oferecido ao Pai como o Cordeiro Divino em resgate dos pecadores. Quem comunga o corpo de Jesus declara a disposição de partilhar a vida com os irmãos como o Cordeiro partilha conosco a vida divina; quem comunga se dispõe a oferecer o corpo como hóstia agradável ao Pai, em louvor pelo dom da vida, a nós dada por Cristo na comunhão e partilhada no serviço gratuito de amor aos irmãos. "Dai de graça o que recebestes de graça. Fostes salvos por graça, pela fé; isto não é mérito vosso, é dom de Deus" Ef 2,8. Sem partilha de bens e o dom de si, comunga-se indignamente o corpo e o sangue de Jesus. "Quem come e bebe sem discernir o corpo de Jesus, come e bebe a própria condenação" 1Cor 11,29. Por isto, mais que um ritual , a missa é compromisso de praticar o que Jesus praticou. A palavra "missa" vem de "mitere" (enviar). Donde vem missão, missionário, enviado. Jesus é o enviado o do Pai, assim como Deus Mãe é enviada do Pai e Jesus depois da ressurreição. Nós somos continuadores da missão de Jesus, impulsionados por Ruah que o animava. "Como o Pai me enviou, envio-vos também. Recebei Deus Mãe. Tudo que ligardes na terra, será ligado no céu; o que desligardes na terra, será desligado no céu". Antes do Concílio Vaticano II, ao fim da missa, o presbítero despedia a assembléia com a fórmula missionária: "Ite, (assembléia) missa est": "Ide, a assembléia está enviada: terminada a missa, inicia a missão. A missa é momento da missão. Após o Concílio, esqueceram esta fórmula e adotaram esta: "Ide em paz, o Senhor vos acompanhe". Ora o culto espiritual agradável ao Pai só tem sentido se for dom da vida aos irmãos. Só quem está disposto a viver como Jesus viveu entenderá o sentido do culto espiritual: gastar o corpo, a vida pra que o direito e a justiça, o Reino de Deus venha a nós. A entrega da vida aparentemente inútil de Jesus na cruz pelos pecadores revela a quem crê o esplendor da divindade: sua generosa capacidade de gerar vida abundante fora de si. João evangelista percebeu isto ao dizer: "O Verbo se fez carne, habitou entre nós e vimos sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Unigênito cheio de graça e verdade" Jo 1,14. A vida intratrinitária mantém-se pela entrega da vida de cada Pessoa Divina à outra. Na Trindade econômica, o Primogênito vive a mesma entrega da vida para gerar vida no mundo. "Eu faço o que o Pai faz. Quem me vê, vê o Pai". No corpo de Jesus Crucificado e Ressuscitado habita a plenitude de Deus uno. Quem quiser ver a glória de Deus, entender o Tabor e Caná olhe o Crucificado: na desgraça da cruz está a glória de Deus pelo direito e avesso. Só na cruz entenderemos a amplitude do amor de Deus pelo ser humano e a criação. A pedagogia da autodoação é da essência do sacerdócio existencial de Jesus e de quem crê nele: doar a vida livre e gratuitamente para gerar vida é a glória de Jesus Cristo e dos que crêem nele. "A glória de Deus é o ser humano vivo", diz Santo Irineu.

SINOPSE de Missão Régia

O povo da antiga e nova aliança é o povo de reis, sacerdotes e profetas. Reis pra servir e gerar vida, não pra oprimir e gerar morte; sacerdote para oferecer a própria vida como louvor ao Deus da vida; profeta pra falar o que viu e ouviu de Deus, mediante a fé.


Autor: Geraldo Barboza de Carvalho


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