Depois de Meia Noite, Tudo Começa...



Ubirajara Sá

Já passava de meia-noite quando Candinho foi dormir. Estivera namorando, e depois, por alguns instantes, ficara conversando com os amigos na esquina da rua onde morava. Era no próprio bloco de apartamentos em que residia, o local do bate-papo. Ali eles se perdiam em gargalhadas. A conversa rolava até que um deles dissesse que já estava na hora de subir pra dormir. Afinal, no outro dia todos iriam trabalhar.

Os caras trocavam lero-lero em baixo da janela de uma família nordestina. O dono da casa era estouradão. Brigava por qualquer coisa. Ele cuidava de um irmão que era malucão, de uma mulher dengosa e de uma filha meio lelé. Mas eram gente boa. Os garotos é que não respeitavam o direito deles. Onde já se viu, depois de meia-noite ficar batendo papo, mesmo que baixinho, pra ninguém ouvir, sob o ouvido daqueles que desejam repousar? Não era pra menos, quando o cara meio maluco saia de casa com o facão atrás da turma. O negócio fedia. O Zé Gordinho, o mais chato, encarnava no cara; falava que ele não era de nada... Nossa! Só vendo. Mas depois tudo se acalmava e todos iam dormir em paz.

O bairro era um conjunto de apartamentos do INSS, antigo IAPSEB, ou sei lá o quê. Mas era um conjunto. Enorme...! Contavam-se mais ou menos cinqüenta blocos com quatro entradas. Cada uma delas tinha oito apartamentos grandes. Para famílias pobres ou quase pobres. Um lugar onde todos gostavam de viver. Muita paz, muita alegria, muitas garotas... Era o lugar ideal para pessoas que vinham do nordeste. Ali eles se encontravam e relembravam os dias de seca e fome.

Candinho não passou por isso, mas também era nordestino cabra da peste. Garoto estudioso, trabalhador, honesto. O filho que toda mãe gostaria de ter. Candinho começou a trabalhar muito cedo. Com treze anos Candinho já estava atrás de um balcão de uma loja de legumes de um português, na Rua Bela, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Foi lá que Dinho se sentiu importante pela primeira vez. Mas durou pouco. Logo-logo Dinho iria se desinteressar por aquele trabalho. O negócio dele era outro... Queria ser gente grande. Um melhor trabalho para poder ajudar sua mãe. Ela, coitada, vivia de bicos. Trabalhava ora numa coisa, ora noutra. Já tinha a idade avançada, por isso não podia pegar no pesado. Dinho era o caçula da turma de quatro que ela criara com seus próprios recursos, com seu próprio suor. Saíram de Salvador para passear no Rio, e por lá ficariam por muitos anos. Fora visitar um filho que já buscava uma vida mais promissora na cidade "maravilhosa".

Dona Alba, mãe de Candinho, assim que desembarcou no Rio tratou de buscar um lugar para morar com o seu caçulinha. Conseguiram uma casa no antigo Estado do Rio, mas não gostou. Através de outra pessoa, ela descobriu Padre Miguel. Local ideal para cuidar de Candinho. Lugar ideal para iniciarem uma nova etapa da vida. Foi lá, naquele lugar maravilhoso – segundo Candinho -, que tudo começou na vida do adolescente Candido Barreto do Nascimento Alvarenga Coutinho. O nosso Dinho.

Foi um bom baiano que dera a grande oportunidade que Dinho sempre desejara. O trabalho dos sonhos. Uma loja de tecidos cujo dono era um libanês. Dinho tinha a proteção do bom baiano e sentia-se feliz. Daí em diante ele daria à sua mãe tudo aquilo que desejava.

O seu primeiro presente foi um rádio. Comprou numa loja no bairro onde morava; próxima à sua nova residência. O aparelho era pequeno, mas ele ficava satisfeito ao ver sua mãe ouvindo a novela da Rádio Nacional, às oito horas. Toda mulher, naquele tempo, acompanhava as novelas da Rádio Nacional. Ele agora era o homem da casa. Pensava com os seus botões! Agora só falta comprar nossa casa. Falava de si-pra-si. Lá dentro... Baixinho... Ninguém podia ouvir, ninguém devia ouvir o seu pensamento ganancioso por melhores dias.

Tudo se passara bem rápido. Depois de alguns anos, D. Alba já tinha até TV. Em preto-e-branco, mas tinha. E ela era toda felicidade.

Dona Alba gostava de dar um passeio na boa terra, de onde saíra para o Rio, de vez em quando. Tinha saudades do seu povo. Só Candinho não pensava em voltar mais lá. Sofrera muito... Tinha um certo desgosto por não haver conseguido empregar-se na sua terra, na sua cidade natal. Mas, cá pra nós... Dinho sentia muitas saudades do irmão quando se afastava dele. Por isso preferia sempre ficar a voltar para onde nunca teve oportunidades. Onde cansou de ver sua mãe sofrer. Não! Não desejava retornar nunca mais. Era ali, agora, a sua terra. Era ali que todos o chamavam de Dinho.

E foi na noite em que ele, após namorar bastante, ficou de lero com os amigos, que tudo aconteceu. Bem se sabia que Dinho era medroso à beça, mas nunca de imaginar que ele iria passar a noite toda na rua. Dinho falou para os amigos que já era hora, que iria dormir. Deu boa noite à turma e saiu. Começou a subir as escadas. Ele morava no último andar. Estava meio tenso. Cada degrau para ele era uma tortura. Passo-a-passo ouvia sua respiração ofegante, tímida, atormentada, apressada. Como a querer chegar na sua frente. Lá ia Dinho com os seus tremores. Ser macho, naquela hora, nem pensar! Era frouxo, mesmo! Lá se vai Candinho e os seus pensamentos. Pareciam horas intermináveis. Ao chegar no terceiro andar... Dinhoooooo! Ele parou... Suspirou baixinho... E, novamente. Dinhooooooo! Olhou pra um lado, pro outro... Nada. Ninguém. Inicialmente, para se fazer de macho, disse baixinho: Zé Gordinho – o seu amigo e vizinho sacana. Tomou coragem e falou alto: querem me sacanear, é? Mas ninguém respondeu. Continuou a subida, na ponta dos pés, e... Dinhooooooooooooooooo! O mais forte e longo chamado que Dinho já ouvira em sua vida. Olhou no relógio. Já passava da meia noite. Deu meia volta, olhou nos degraus com vontade de se jogar lá de cima, e, de repente... Jogou-se pelos degraus como se fosse uma pista livre, uma pista de corridas de maratona. Só se deu conta que havia chegado na rua quando os colegas perguntaram: o que foi Dinho? O que está havendo? Dinho, ofegante, respondeu: Alguém me chamou quando eu estava subindo as escadas. Aí o pessoal do deixa disso resolveu ir levá-lo até a sua porta. Dinho entrou, olhou tudo, abriu a porta do quarto e agradeceu aos amigos. Os camaradas ficaram na porta até que Dinho acendesse todo as lâmpadas da casa. Foi deitar quietinho, pra ninguém interromper o seu sono. Mas quem disse que Dinho conseguiria dormir em paz naquela noite tão estranha? Quando pensou que tudo havia acabado, Candinho sentiu alguém puxar sua mão. Aí ele endoidou. Vestiu a roupa, olhou pela janela para o apartamento da namorada e pensou: vou dormir na casa dela. Um corno que fica aqui sozinho. Logo agora que mamãe cismou de ir pra Salvador... To fora, amigo! Vou pra rua. Pensou Dinho em voz alta. Saiu correndo, fechou a porta e, mais uma vez jogou-se pelas escadas afora e foi dormir na rua. Só lá pelas cinco, dia clareando, é que Candinho voltou pra casa. Eta noite miserável! É depois de meia noite que tudo começa. Nunca mais Dinho quis saber de ir dormir depois de meia noite.


Autor: Ubirajara Gomes de Sá


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