A Construção da Identidade Nacional Argelina Através do Filme ''A Batalha de Argel''



Waldemberg Oliveira de Lima[1]

"(...) a conquista leva o povo ao despertar da sua consciência nacional e a conseqüente rebelião contra o conquistador ou a tirania deste".[2]

O objetivo deste artigo é analisar a tentativa de construção de uma identidade nacional argelina a partir da produção do filme "A Batalha de Argel", 1965, de Gilo Pontecorvo. Para isso, trabalharemos alguns trechos apresentados na obra em diálogo com as problemáticas que envolveram sua produção.

Permanências e rupturas. Um olhar retrospectivo sobre a história da Argélia.

A Argélia é um país localizado na região norte do continente africano, dividido entre as montanhas do Atlas (costa norte) e o deserto do Saara (no sul). Os seus primeiros habitantes, os berberes, foram atraídos pelo Islã, parcialmente arabizados e misturados com o conquistador árabe que inseriu a religião a partir do século VII. Com isso, "o povo argelino passou a pertencer e associar o seu destino à civilização árabe-muçulmana. A identificação coletiva se fundou, desde então, na noção de comunidade religiosa". [3]

Entretanto, a partir da primeira metade do século XIX, seu território foi invadido pelas forças francesas, onde lá permaneceram por aproximadamente 130 anos. "Com a instalação do poder colonial na Argélia como único regulador da comunidade ocupada, desapareceu o centro em torno do qual se articulavam e hierarquizavam os elementos constitutivos da realidade histórica do país. O sistema de valores foi pulverizado e a coerência da identidade nacional rompida".[4] Isso se explica pela visão de colonização dos franceses, na qual acreditavam estar levando a "civilização" aos povos "bárbaros". Assim, "surgiram contradições profundas no conjunto dos elementos constitutivos da realidade sociológica - a base da comunidade histórica - como a língua, a religião e as particularidades culturais e geográficas".[5]

"O sistema educacional colonial contribuiu para aumentar as dúvidas dentro da população. A imposição da bandeira tricolor, da Marselhesa - como hino nacional e das aulas que ensinavam que os ancestrais dos argelinos eram gauleses fizeram com que as crianças que foram integradas no sistema escolar francês não se sentissem nem plenamente francesas nem inteiramente argelinas".[6]

Em contraposição estavam as populações rurais, que aprendiam o árabe nas escolas tradicionais, graças ao estudo do Alcorão. "O estudo religioso, junto com a elitização do francês, contribuiu para barrar a adesão plena da maioria dos argelinos aos valores coloniais, mesmo que estes tivessem ocupado espaço no referencial da nova elite formada com princípios franceses republicanos".[7]

Durante mais de um século a população argelina sofreu com o jugo francês. A expropriação de suas terras seguiu-se à conquista e marcou a primeira característica do colonialismo. Em 1850, o domínio dos colonos era de 11 500 hectares, passando para 1 600 000 em 1900 e para 2 703 000 em 1950.[8] Além disso, o preconceito racial, a violência, a negação da cultura nativa, a não ampliação dos direitos sociais e de cidadania às populações locais (e outros fatores) levaram o surgimento de movimentos a favor da independência da Argélia. Esses sentimentos, seguidos por ações concretas, desencadearam diversos conflitos até desembocarem numa guerra – A guerra da Argélia – entre os anos de 1956 e 1962.[9]

"O recurso à ideologia da nação islâmica nos movimentos de independência foi marcante. O combate do colonialismo se fez em nome da defesa da identidade nacional. O desabrochar da personalidade argelina efetuou-se através da re-apropriação de sua própria cultura. A fusão entre islamismo, arabismo e populismo se tornou fonte desse poderoso sentimento. Entretanto, o sistema tradicional de valores já tinha sido pulverizado pela dominação ocidental francesa e a coerência de sua identidade nacional rompeu-se. As chances de proceder com sucesso na reestruturação da personalidade nacional em torno de um novo patrimônio cultural, ou seja, de uma ordem de hierarquia estável e racional, estavam corrompidas e rejeitadas, porque carregadas de sentimentos de subordinação. Por isso, o combate político de emancipação se viu acompanhado de um combate de valores, dividindo a população no seu esforço de definir uma identidade." [10]

Esse problema foi de fundamental importância durante os primeiros anos de independência. Os diversos grupos com tendências ideológicas divergentes (como o comunismo franco-soviético, o populismo nasseriano e o clericalismo muçulmano) presentes na formação da Frente de Libertação Nacional (FLN), movimento que liderou a revolução argelina contra o colonialismo francês, dificultaram a constituição desse processo. O governo que se formou após a descolonização procurou legitimar um tipo de identidade baseada na união entre três elementos: o Povo, o Islã e a cultura árabe. Tentaremos perceber essa construção a partir da análise do filme "A batalha de Argel", de 1965.

"A Batalha de Argel": o discurso de legitimação da identidade argelina.

A primeira questão que devemos levar em consideração é que a intenção de se fazer o filme partiu do próprio governo argelino. Assim, baseado na obra "Souvenirs de la Bataille D'Alger", de Saadi Yacef, um dos comandantes da Frente de Libertação Nacional e integrante do governo, iniciou-se os preparativos.

Acreditamos que o desejo de se fazer essa produção está ligado à tentativa de legitimar a memória de resistência e luta dos argelinos contra os mais de cem anos de humilhação e exploração dos colonizadores franceses. Além disso, ela aparece como um vínculo unificador do país que tinha acabado de se libertar e que agora devia se concentrar nas dificuldades, unir-se e se constituir como nação.

Com a independência (1962), a Argélia encontrava-se com uma série de problemas estruturais e de organização. Mesmo com a estatização dos meios de produção e com todo o apoio mundial recebido após 1962, a súbita partida dos colonos, agravou as incertezas sobre qual postura deveria ser adotada na direção do país. "O governo organizado se transformou em partido único, ao modo soviético, e logo foi dominada pela facção armada das forças que realizaram a emancipação. A tecnocracia militar adotou o protecionismo industrializante e planificador, no estilo estalinista, misturado com um paternalismo social populista, marcado pelo comunitarismo islâmico. Foram marginalizadas as tendências marxistas, ocidentalistas e berberistas do movimento nacional". [11]

Por intermédio de um membro exilado da FLN, Salash Baazi, foi contatado o diretor italiano Gillo Pontecorvo e o roteirista Franco Solinas para produzir o filme. O início dos trabalhos foi marcado por vários desentendimentos entre Argelinos e Italianos na escolha do roteiro. "Num primeiro roteiro de Solinas era contada a história sob a perspectiva de um paramilitar francês desencantado, que Pontecorvo esperava ser interpretado por Paul Newman. Baazi rejeitou a idéia e Yacef escreveu seu próprio roteiro, desta feita, descartado pelos italianos que não queriam mostrar só o lado dos nativos. Eles insistiram em contar a história sob um ponto de vista neutro, embora simpatizassem com o movimento de independência". [12] O resultado final agradou ambos os lados. O filme foi mundialmente premiado, bem como proibido em alguns países (dentre eles a França e o Brasil), e também elevou à condição de "herói" o povo argelino. Mais do que isso, ele apresentou os elementos constitutivos de uma nova identidade que se tentou legitimar – o Povo, guiado pela FLN, devoto do Islã e descendente da cultura árabe.

O primeiro é apresentado a partir do despertar de sua consciência política. Comparando sua posição social em relação ao francês colonizador e à forma preconceituosa como era tratado, o povo argelino resolve lutar por sua liberdade e autodeterminação. Logo no início do filme são mostradas as diferenças gritantes entre a parte européia da cidade de Argel, um pedaço da França no território colonial, e o bairro árabe-mulçumano de Casbah, caracterizado por casebres, ruelas e muita pobreza. Durante toda a película aparecem cenas onde os colonos tratam com desprezo os nativos da região. Entretanto, esse despertar de consciência na população argelina não é algo espontâneo, natural, mas fruto de um ente motivador, que vai guiar todo o povo na sua caminhada de emancipação. Essa é a tarefa da Frente de Libertação Nacional (FLN), segundo nossa interpretação ao analisar a construção e a ordem das cenas no filme. Logo após apresentar os contrastes sociais, a obra traz o comunicado nº 1 da FLN, convocando o povo para a revolução:

"Povo da Argélia, nossa luta é dirigida contra o colonialismo. Nosso objetivo: a independência e a restauração do Estado argelino, de acordo com os princípios islâmicos e o respeito às liberdades básicas, qualquer que seja a raça ou religião.

Para evitar derramar sangue, propomos às autoridades francesas uma plataforma de discussão sobre a autonomia do nosso povo.

Argelinos Unidos, seu dever é salvar o pais e recuperar a liberdade. Esta vitória é sua. Irmãos! Unidos! A FLN convoca-os para a luta". [13]

Toda essa idéia pode ser percebida a partir da observação da trajetória de vida do personagem Ali La Pointe, pobre, analfabeto, trapaceiro de longa ficha policial (posição social), que ao ser capturado, presencia a execução de presos políticos. Em seguida, é contatado pela FLN e engaja-se na luta pela libertação da Argélia (consciência política despertada pela ação da FLN).

Outra idéia peculiar apresentada no filme é que esse sentimento de libertação é geral, compartilhado tanto por homens como por mulheres e crianças. Assim, elas são vistas carregando armas e explosivos, ludibriando soldados franceses e dando guarita aos fugitivos da Frente. Sobre as crianças, além do garoto que é mensageiro, duas cenas têm uma importância particular. A primeira, na qual meninos e meninas agridem um nativo alcoolizado, comportamento proibido pelos seguidores da FLN. E a segunda, onde uma criança vendedora de jornais diz - "conseguimos!" – ao ver nos jornais a repercussão da greve geral convocada pela Frente.

Não negando a real importância da população argelina no processo de libertação, acreditamos que sua imagem apresentada no filme está para além de uma simples homenagem. Ela é uma espécie de convocação, de união do povo argelino para uma nova luta: a organização do país. O contexto político-social de produção da obra é marcado por turbulências, como citamos anteriormente.O filme é feito pouco tempo depois da queda do primeiro presidente do país, Ben Bella, e da ascensão de Boumedienne ao poder. Segundo nossa concepção, uma cena em particular resume bem o que tentamos afirmar. É um momento de diálogo entre dois membros da FLN:

Ben M'hidi: Jaffar disse que você não queria a greve.

Ali La Pointe: Não.

Ben M'hidi: Por que não?

Ali La Pointe: Porque nos disseram para não usar armas.

Ben M'hidi: Atos de violência não vencem guerras. E nem revoluções. O terrorismo serve pra começar. Depois, o povo todo deve agir. É para isso que serve a greve. Pra mobilizar os argelinos e avaliar a nossa força.

Ali La Pointe: E mostrar isso á ONU?

Ben M'hidi: Isso, mostrar à ONU. Não sei se vai servir, mas a ONU poderá medir a nossa força.Sabe, Ali, começar uma revolução é difícil. Mais difícil ainda é continuá-la e, o pior de tudo, e vencê-la. Mas é depois, quando tivermos vencido que começarão as reais dificuldades. Ou seja, há muito a fazer. [14]

Os outros elementos de constituição da nova identidade presentes no filme, o Islã e a cultura árabe, são o fruto da permanência de séculos de assimilação e aculturamento dos povos argelinos pelos conquistadores árabes desde o início do século VII. O retorno a esses ideais parece óbvio, na medida em que a colonização francesa, com sua noção de civilizar os povos bárbaros, pôs em risco a continuidade dessas práticas. Assim, com o intuito de negar tudo que venha do lado oponente, foram resgatados os elementos da religião e cultura anteriores a colonização.

Muitas são as cenas onde os personagens argelinos fazem referência a Alá, comunicam-se na língua árabe e utilizam as vestimentas tradicionais dessa cultura.Destacamos a celebração de casamento entre Mahmud e Fatiha, pronunciado em idioma e trajes árabes e realizado sob "a proteção do deus do Islã", e a cena dos últimos minutos de vida de um prisioneiro político antes de ser guilhotinado, utilizando as frases: "Alá é grande. Viva a Argélia, viva a Argélia!"

Conclusão

Nosso intuito foi mostrar a tentativa de legitimação de uma nova identidade nacional argelina por meio da produção do filme "A Batalha de Argel". Ao se constituir como governo após o processo de independência, a Frente de Libertação Nacional adotou uma nova posição político-ideológica, marginalizando os grupos de tendência marxista, ocidentalista e berberista e valorizando os elementos ligados ao Islã e à cultura árabe. A postura "populista" dos primeiros anos de governo buscou valorizar o ideal de povo herói, consciente das suas dificuldades, mas lutador por natureza. Assim, ao resolver fazer uma produção sobre os anos de conflito na cidade de Argel, os seus idealizadores buscaram legitimar os ideais de uma nova identidade que se buscava nos primeiros anos de independência: a junção entre o Povo, guiado pela FLN, devoto do Islã e descendente da cultura árabe.

Como conhecemos o desenrolar da história, percebemos que de alguma maneira essa proposta não conseguiu se efetivar, pois há anos o povo argelino continua em disputa. A cidade de Argel continua a ser palco das ações de terrorismo e atentados à bomba como no filme. Entretanto, os inimigos não são mais os colonizadores franceses, mas os próprios compatriotas argelinos, divididos entre os que apóiam as Forças Armadas e os que incentivam os Fundamentalistas Islâmicos.

Bibliografia

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

FERRO, Marc. O Livro negro do colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

IZERROUGENE, Bouzid. "Argélia: A tirania da identidade e a ascensão fundamentalista". In: Afro-Ásia, nº 21-22, 1998-1999. Pesquisado em: www.casadasafricas.com/site/img/upload/578624.

HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.

LIPPOLD, Walter Günther Rodrigues. O pensamento anticolonial de Frantz Fanon e a Guerra de Independência da Argélia. Monografia, Porto Alegre, n. 1, 2005.

MANRIQUE, Luis Esteban G. Irak a través del prisma de la guerra de Argelia. Informe Semanal de Política Exterior.




Autor: Waldemberg Oliveira de Lima


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