LEPRA E LEPROSO



A lepra, patologia conhecida pela humanidade, desde os primeiros tempos históricos, assolou diversos povos, vestindo-se com roupagem diferente, encontrando terreno fértil sobre as causas que levariam a ser ou estar leproso, na vontade divina. Em terras brasileiras, a lepra chegou, juntamente, com os colonizadores ibéricos e com os escravos africanos. No século XX, foram empreendidas ações governamentais para combater a lepra, com a construção de hospitais colônias e com a finalidade de receber compulsoriamente os portadores do Mycobacterium leprae, os castigados por Deus. No estado de Santa Catarina, a colônia Santa Teresa foi a instituição centralizadora no tratamento dos leprosos, fomentando a possibilidade de cura, de retorno do Hanseniano para as comunidades e às famílias. Na colônia Santa Teresa, novas relações sociais se firmavam entre os aprisionados pelo estado e expurgados pela sociedade. A lepra ocasiona repulsa e segregação, pela deformidade que acarreta.

INTRODUÇÃO

A busca pelo passado de uma patologia sempre fomentou no homem a hipótese de uma nova visão, amplamente conceitual e diagnosticadora, devendo nortear e ciclos no campo da saúde[1], capazes de proporcionar ações controladoras, repreensivas, punitivas e curativas. A necessidade de vigilância do corpo do indivíduo retrata a condição como se forma conceitos de doente ou não doente.

O exílio dos leprosos se fundamenta na manutenção de uma comunidade pura (FOUCAULT, 1977)

Dentre as muitas correntes historiográficas elaboradas e fundamentadas teoricamente, que visionam uma história completa e progressiva, baseando-se nas grandes ações e/ou feitos magnificantes de homens, busquei uma pesquisa que fosse capaz de nortear minha visão. Adentrei na teoria Positivista[2]. Essas teorias não foram capazes de justificar as ações empreendidas pela sociedade contra o leproso.

Após muitos delineamentos, adentrei nas teorias da Nova História[3], que sinalizava como sendo a teoria capaz de ser utilizada para nortear minha linha de pesquisa. Novamente, a Clio, musa dos historiadores, se fazia distante de mim.

Após páginas de leituras, tive a necessidade de não seguir uma escola historiográfica específica, pois correria o risco de afundar-me em uma única visão, contrariando a máxima da diversidade construtiva.

Não visamos conhecer o futuro. O que pretendemos enquanto historiadores é reconhecer no passado, as respostas às nossas indagações presentes.

Sinto que o tempo presente é reflexo morno do tempo passado, mas para entender a fonte desta energia que aquece o tempo atual, é necessário conhecer a fonte irradiadora, os corpos utilizados por esta força para ultrapassarem as barreiras do próprio tempo.

Ao sentar para escrever, depois de exaustivas horas de leituras, quando fui observado pelos olhos críticos dos grandes pensadores, vi-me revestido com o poder da verdade. Olhei o mundo como o Sol olha para seus nove filhos. Acreditei que ao ter adquirido os conceitos de Platão, Sócrates, Heródoto, Braudel, Erasmo, Hobbes, Maquiavel, Boccacio, Lutero, Pe. Vieira, Foucault e tantos outros importantes pensadores, eu seria capaz de julgar com os olhos da imparcialidade, da justiça e deixar emergir na história a verdade única e absoluta.

Depois de muitos rascunhos, vi que o cesto tão bem posicionado sob minha escrivaninha, já estava transbordando com as folhas rabiscadas e amassadas, com as minhas verdades. Estava adentrando num emaranhado, numa rede que se fechava sobre meus pensamentos.

Sabia, claramente, o que escrever, mas como fazê-lo? Qual a corrente historiográfica a seguir?

Tradicionalmente, os autores se colocam como discípulos de visões históricas, mostrando o lado oficial: dos que venceram, dos conquistadores, dos que sobreviveram.

Fiquei a imaginar se meu objeto de estudo não representava um vencedor, um sobrevivente, um conquistador, pois foi acolhido com o que havia de melhor no campo da saúde, nos tratamentos mais adequados, nas medicações receitadas e ministradas por profissionais preparados para este fim.

Atado pelos meus conhecimentos e pelos meus pré-conceitos, fui buscar o que acredito ser a possibilidade para que este trabalho crie corpo e alma: LEPRA E LEPROSO: Preconceito Histórico, não é e, como não poderia ser, um tratado sobre a patologia de Hansen, tão antiga como o próprio homem. É antes, uma amostra histórica do que a humanidade foi capaz de fazer, deixando aflorar nos seus preconceitos as pessoas que deveriam ser afastadas, repudiadas, expulsas, legadas ao afastamento, por serem portadoras de uma doença que leva à deformidade física e, por conseqüência, a necessidade de serem encarceradas em locais distantes e com contatos restritos com o mundo "sadio".

Diante disto, definiu-se como problemática a ser investigada, as causas que levaram a sociedade "sadia" a afastar os leprosos, obrigando-os a viver em locais isolados, dentro de instituições mantidas pelo Estado.

Nas pesquisas, foram utilizadas como fontes: bibliografia,periódicos, portarias do Ministério da Saúde, documentos mimeografados, resumosde palestras, material didático sobre as técnicas de prevenções da hanseníase, entrevista com pacientes internados no Hospital Santa Teresa de Dermatologia Sanitária, livro de registro de internação, prontuários de 0001 - 1220, filmes, fotografias e visita ao museu nas dependências do Hospital.

A análise das fontes permitiu a elaboração de quatro capítulos intitulados:

1. A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO HISTÓRICO DA LEPRA

2. A LEPRA EM TERRA TUPINIQUIM

3. A LEPRA EM SANTA CATARINA E A COLÔNIA SANTA TERESA

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dois primeiros capítulos trazem um debate entre fatos históricos e o preconceito contra o leproso, retratando a origem da lepra e suas transformações ocorridas frente aos diagnósticos e formas de tratamentos, os métodos utilizados pela sociedade para se proteger e as ações coordenadas para exilar os contaminados pelo bacilo de hansen ou "pecadores" conforme eram tratados em variados tempos históricos.

A ocorrência de manifestações lepróticas ultrapassou as sociedades pré-clássicas e clássicas, encontrando terreno fértil na sociedade medieval, onde sob o manto da religiosidade se deu as transformações mais expressivas no trato ao leproso.

Com as grandes navegações empreendidas pelos europeus nos séculos XV e XVI e, por conseguinte a colonização de novas terras além mar, a lepra naufragou em solo brasileiro e espalhando-se com os bandeirantes para o sertão, deixando o rastro não somente da doença, mas junto, o contaminante do preconceito.

O terceiro capítulo procura traçar os caminhos da lepra e leproso no Estado de Santa Catarina, trazendo em foco a Colônia Santa Teresa, instituição profilática, erigida como centro catarinense paratratamento e controle da lepra. Pela falta de conhecimento cientifico, somada às incertezas pelos meios como se dava a contaminação, a colônia Santa Teresa se transformou em gueto de leprosos, local de rígidas regras e de controle estatal.

Por se tratar de tema ainda pouco analisado pelo viés da historiografia, fez-se necessário um recorte temático, lepra x preconceito, mantendo-se um diálogo temporal entre os períodos e localizações geográficas distanciadas no tempo, porém delimitados pela problemática definida.

Como toda produção acadêmica necessita ser fundamentada com debates teóricos, a temática aqui analisada, lepra x preconceito, mantendo uma linha de diálogo, mesmo que tênue, com os pensamentos de Michel Foucault, expresso nas obras: O Nascimento da Clínica, Microfísica do Poder e Vigiar e Punir; pensamentos que demonstram a necessidade de punição por parte da sociedade "bela", dos que se encontram à margem dos valores sociais, aceitos pela maioria absoluta "sadia" e aplicada pelo Estado, enquanto órgão detentor do poder.

A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO HISTÓRICO DA LEPRA

A lepra é muito mais que uma patologia milenar que assola a humanidade a centena de milhares de anos. É antes, uma construção histórica social, alicerçada no expurgo religioso, econômico e estético do infectado pelo mycobacterium leprae.

Na historiografia contemporânea, são muitos os registros que direcionam os primeiros relatos sobre ações profiláticas da lepra para as civilizações chinesa e indiana (NOÇÕES DE HANSENOLOGIA, PARTE I, 1981). A descrição de sintomas, atualmente, usados para o diagnóstico dos leprosos, já eram utilizadas na China nos séculos XXVII e XXVI a.C..

O escrito "Nei Ching Wen", que relata alguns sintomas da lepra como paralisia grave (li-feng) e queda de sobrancelhas, nódulos, dormência, mudança de cor da epiderme, ulceração e desabamento do nariz, constituindo um estado mórbido (ta-feng).

Conforme Opromolla (1983) durante a dinastia Chou, 600 a.C., época em que Confúcio ensinava nos principados, um de seus discípulos havia manifestado a doença. A descrição é, contudo muito imprecisa. No século II d.C., Huat'o, em sua obra intitulada "Remédios Secretos Completos", retrata com mais autenticidade a descrição da lepra, descrevendo uma enfermidade que provoca perda de sensibilidade, manchas que se ulceram, queda de sobrancelhas, cegueira, deformidades dos lábios, achatamento do nariz e inflamações nas articulações. Ainda na pátria confucionista, tem-se relatos de sintomas de dormência da pele e sensações de vermes, andando pelo corpo (NOÇÕES DE HANSENOLOGIA, PARTE I, 1981).

Na Índia, as normas de saúde prescritas no "Sushruta Samhita", copilado sob a neologia "vat-ratka e Vatsonita" em 600 a.C., descrevia a existência de uma patologia que ocasionava anestesia, formigamento e deformidade (NOÇÕES DE HANSENOLOGIA, PARTE I, 1981).

A lepra está referendada em muitos lugares e épocas distanciadas nos períodos antigos, mas sendo uma infecção gêmea a outras infecções, devido a grande igualdade de sintomas, a possibilidade de diagnósticos errôneos que deve ter ocorrido constantemente. Esta confusão, também se deve a traduções equivocadas.

Nos tempos babilônicos, tem-se varias referências nos diversos documentos que chegou à contemporaneidade que a existência da lepra era constantemente diagnosticada, porem a palavra traduzida como lepra tinha como significado "coberto com pó" ou "escamoso". No dicionário Assírio, o termo "epq" traduzido da palavra akadiana, é o mesmo significado que a palavra saharsubbu (NOÇÕES DE HANSENOLOGIA, PARTE I, 1981). Atualmente, a hanseníase, ainda, continua sendo erroneamente diagnosticada, tal como ocorria nos tempos pré-clássico, clássico e medieval.

No papiro de Ebers, registro da 18ª dinastia egípcia (1300-1800 a.C.), o termo traduzido como sendo lepra no referido documento era somente uma "queixa de caráter externo para o qual era prescrito como tratamento um ungüento" (NOÇÕES DE HANSENOLOGIA, PARTE I, 1981).

O livro sagrado dos cristãos: a Bíblia é uma riquíssima fonte sobre a lepra, como também sobre os leprosos e as formas usadas para impossibilitar que o acometido pelo "pecado" fosse transmissor da moléstia. Lemos no Levítico; 13, 45- 4, que:

Quem for declarado leproso, deverá andar com as roupas rasgadas e despenteado, com a barba coberta e gritando: "Impuro! Impuro!" Viverá separado e morará fora do acampamento.

No livro dos Números; 5, 1-3 está escrito:

Javé falou a Moisés: Ordene aos filhos de Israel que expulsem do acampamento os leprosos, os que têm gonorréia e os que se contaminaram com cadáveres. Homens ou mulheres serão todos expulsos do acampamento, no meio do qual eu moro.

O fato de a lepra ser conhecida como uma moléstia bíblica, foi o que lhe conferiu todo o peso das maldições e superstições milenares que persistem até hoje, (ROTEBERG, 1983). Nos escritos médicos contemporâneos, a lepra está classificada como sendo uma doença crônica, granulomatosa[4], transmissível, cujo agente é denominado de Mycobacterium leprae, (BRASIL,Ministério daSaúde, 1956).

No período em que se deu o Êxodo (saída do povo hebreus do Egito), a neologia hebraica "tsaraath" ou "saraath" tinha o significado de purificação que poderia ser do indivíduo, da roupa ou das casas.

A pessoa que apresentasse o "tsaraath" deveria ser expurgada do convívio social, até que a condição da falta de "limpeza" desaparecesse, (NOÇÕES DE HANSENOLOGIA, PARTE I, 1981).

Os gregos, ao traduzirem alguns textos hebraicos, deram o significado ao termo "tsaraath" como sendo lepra (do grego leprós = escama). A patologia hansênica, os gregos designavam como sendo elefantíase.

Em torno do ano 150 d.C., a leprajá era bem conhecida dos europeus. Araetus e Galeno foram os primeiros a fazerem referências sobre as denominações da lepra, no seu trabalho Terapêuticas de Afecções Crônicas, designa a hanseníase como Elephas ou Elefantíase e diz que:

Há muitas coisas em comum quanto à forma, cor, tamanho e modo de vida entre a afecção Elephas e a besta selvagem o elefante e, nem a afecção lembra qualquer outra afecção nem o animal qualquer outro animal. (NOÇÕES DE HANSENOLOGIA, PARTE I, 1981).

A diferença, ou a igualdade entre o elefante e a lepra, foi utilizada para figurar a grande distância que era necessária manter frente a esta patologia, que assolaria a humanidade e seria colocada como fator de segregação, de exílio, não tão somente da sociedade, da comunidade da qual o contaminado pertença, mas também da família e o que é mais grave, da sua própria dignidade.

O termo lepra absolveu outras designações patológicas como a elefantíase, a escabiose, tornando-se até não muito tempo atrás, a lepra, um receptáculo, uma enfermidade receptora comum à qual se relatava toda afecção cutânea "plus malfaisante" e não conhecida. O diagnóstico de lepra era legado a uma gama variada de diagnósticos errôneos que se supunha ser idêntica ou ter alguma relação com ela. A miséria também, por vezes, na história da humanidade fora dado à mesma conotação de enfermidade leprótica.

Conflitos sobre o diagnóstico da lepra persistiram os tempos históricos, acentuando-se em determinados períodos; autores do século XIX enleavamdiagnósticos ou consideravam uma afecção como graus de parentescos com outras afecções. Os médicos precursores da medicina contemporânea colocavam na mesma categoria apsoríase, a lepra e a escabiose, chegando mesmo a considerar a elefantíase um grau mais alto de lepra.

Além da grande dificuldade de discernir entre uma patologia e outra, o diagnóstico da lepra era feito de forma artesanal. Durante a Idade Média, o diagnóstico da lepra era feito por quatro pessoas. No fim do século XV, exigia-se que entre as quatro pessoas houvesse um médico, um cirurgião e dois barbeiros. Estes eram responsáveis pela realização de testes de urina e sangue do paciente. O exame de sangue era a forma mais utilizada para se detectar se a pessoa era contaminada pela lepra. Dentre as muitas formas de diagnóstico pelo sangue, as mais comuns exigiam que o sangue reagisse com outros líquidos, o sangue era depositado num pequeno vasilhame que continha sal, se este não se descompusesse, o paciente era considerado não leproso. Outra fórmula utilizada derramava água fresca com sangue em um vaso; se a mistura dos líquidos fosse impossível, era que se tratava de sangue contaminado pela lepra. O vinagre, também era usado para interagir com o sangue; ao se colocar gotas de sangue sobre uma tigela com vinagre, deveria haver a formação de bolhas; caso isso não ocorresse, tratava-se de um diagnóstico positivo de lepra, (NOÇÕES DE HANSENOLOGIA, PARTE I, 1981).

As fórmulas imprecisas de diagnóstico e os conceitos impróprios a respeito da doença durante a Idade das Trevas, não permitem a precisão, sob o número real de leprosos na Europa naquela época. Alguns estudos apontam como sendo 20.00 o número de "leper houses" (casa de leprosos) ou lazaretos existentes no velho continente. Estes dados não podem demonstrar uma visão real de leprosos (hansenianos) porque estes locais abrigavam também outras patologias e também dispunham de pequenos espaços, por conseqüência um baixo número de ocupantes.

Nos anos da Alta Idade Média, toda a Europa se volta para um assistencialismo piedoso pelos leprosos, encorajados pela igreja católica que passou por profundas transformações, recriando a visão sobre o corpo e a alma dos medievos.

Em busca da definição do corpo, este, no período medieval, somente poderia ser analisado se em conjunto com a alma, pois na lógica medieval há um amalgama entre corpo e alma (RODRIGUES, 1999). O corpo não era um mero revelador da alma: era o lugar simbólico em que se constituía a própria condição humana (RODRIGUES, 1999).

A dor física seria uma maneira de ratificar a não separação entre corpo e alma, visto que a sociedade medieval se mostrava pouco preocupada com o sofrimento do corpo. Não se pode, contudo afirmar, categoricamente, que a dor física não era sentida, pois quando sentida era desprezada e quando confessada era uma atitude de pecado, porém este paradigma tem alguma alteração nos dois primeiros séculos do segundo milênio, quando um novo quadro se delineia, devido a uma maior preocupação com a pessoa de Jesus. A piedade pelos doentes aumenta. Com isto, há um crescente desenvolvimento em relação ao número de abrigos para leprosos, como também de obras de misericórdia e caridade.

O grande surto de piedade pelos leprosos encorajada pela igreja passou a pregar que os acometidos pelo Micobacterium leprae, eram os infelizes, os pobres de Cristo. Neste novo zelo piedoso, muitas pessoas passaram a interpretar que Cristo tinha morrido como um leproso e, por isso, damas da nobreza mostravam um fervor religioso, lavando os pés dos leprosos e abraçando seus corpos doentes. Em muitos casos, os novos devotos fervorosos pela piedade divina não corriam risco maior que adquirir sarna, (NOÇÕES DE HANSINOLOGIA, PARTE I, 1981).

Da mesma forma como havia os conceitos de corpo, duas correntes do pensamento medieval norteavam o conceito de alma. A primeira delas decorre da tradição platônica e afirma que: "a alma não é criada; ela pré-existe por toda a eternidade ao corpo no qual encontra uma habitação temporária," (SCHMITT, 2002), porém esta noção de alma somente será aceita pelo cristianismo medieval, mediante algumas modificações, pois se acatada na integra, viria em contradizer a noção cristã de criação por Deus de cada alma individualmente, (SCHMITT, 2002).

A outra corrente que norteava a concepção de alma, fundamenta-se no pensamento aristotélico que compreende a alma como forma de corpo. Esta concepção aristotélica de alma será justificada na teologia agostiniana, quando este afirma que: "a alma é uma substancia racional criada para reger o corpo," (SCHMITT, 2002).

Assim, a carne na Idade Média tinha um estigma de instância pecadora, onde se incide a culpa pela queda e a possibilidade de salvação, seja pela "castidade ou pela pena redentora do trabalho manual (labor)", segundo os estudos de (SCHMITT, 2002). Já para Loi, (2002), a carne tem o significado: "o homem em sua corporeidade e na sua realidade existencial terrena, efêmera e perecível" e tem uma "conotação semântica fortemente depreciativa com relação a tudo aquilo que, na realidade corpórea do homem, está em oposição ao logo (ratio)".

Ao se afirmar que dentro da cultura medieval conforme estudos realizados por Rodrigues (1999), pode-se concluir que durante algumas épocas dos "tempos de trevas", os sofrimentos impingidos ao corpo eram sofrimentos estabelecidos à alma e vice-versa. Desta forma, o sofrimento carnal seria uma forma de penitência e o leproso por sofrer fisicamente os arrebentos do seu "pecado", estaria já "nesta vida", se purificando para uma vida vindoura.

Comumente, nos tempos medievais, a lepra fora à punição por pecado sexual ou por falha moral, sendo os leprosos excluídos do convívio social. Entretanto, não há uma precisão no diagnóstico da doença, podendo qualquer afecção cutânea ou doença venérea ser confundida com a lepra.

Os muitos abrigos de leprosos durantes a Idade Média existentes aos milhares por toda a Europa, internavam seus pacientes com base em juízos morais. Durante o imaginário renascentista, a salvação "corpórea" do leproso estava intrinsecamente ligado à salvação da alma, conforme retrata Foucoult (1987); o mal do leproso consistia em sua salvação religiosa e excluí-lo era um comportamento social justo, pois era o reconhecimento de que ele seria salvo; por isso, o doente aceitava o seu calvário, pacientemente.

Nos conceitos de vida e morte, saúde e doença difundida nos tempos medievais, a percepção das formas de contágio tomam frente a preceitos antes elaborados. Quebram-se os rituais tradicionais. Evitam-se os doentes e mesmo os aparentemente não doentes. Perdem-se as referências morais: já não se teme as leis humanas, nem as leis divinas. A magnitude das catástrofes, atingindo a todos sem piedade (bons e maus), instaura o desespero, a entrega a prazeres intensos e imediatos, já que a perspectiva de futuro é abolida.

A percepção da epidemia associada ao contágio leva as pessoas ao desregramento das condutas, dissolução das estruturas de autoridade, rompimento das regras básicas de convivência, isolamento e solidão (BOCCACIO, 1970).

A epidemia como sendo punição dos deuses, parece ser uma outra importante associação já presente nas culturas do Mundo Antigo. O texto da peste em Ovídio (42 a.C. – 18 d.C.) ilustra bem a associação entre epidemia e castigo divino: o flagelo terrível que atacou o povo teria sido provocado pela ira de Juno a terra, que tinha o nome de uma rival (OVÍDIO, 1983). Na Iliade, conto I se tem a peste representada por flechas enviadas por Zeus, valendo-se de Apolo. Essas mesmas imagens das epidemias, sendo enviadas por intermédio de flechas, lançadas como punição contra os pecadores da humanidade, aparecem nas icnografias cristãs durante a Idade Média, (DELUMEAU, 1989).

O molde suscitado pela lepra, que incluía exílio, exclusão e purificação, é, certamente, o exemplo mais contundente do imaginário medieval. Entre os séculos VI e XIV, a lepra se tornou Europa um sério problema social. Representada como sendo a manifestação divina, era considerada como sendo uma doença típica e exclusiva da espiritualidade, sendo que somente se manifestaria nas pessoas proscritas.

Os leprosos foram severamente combatidos com ritos de purificação e exclusão, sendo os "leprosos proscritos, destituídos dos direitos civis e considerados socialmente mortos," (ROSEN, 1994).

Durante o período medieval, a compreensão do contágio ainda não tinha sido modulada pela ciência, sendo que, então, frente a uma endemia, se fazia necessário à mobilização de todo um conjunto de dispositivos da ordem para submeter o contaminado. Como ocorrerá com todas as epidemias, esta mobilização, também foi alçada para combater o leproso.

Uma vez identificada a doença num indivíduo, a igreja e os saberes dominantes pronunciavam uma sentença de isolamento, seguido de um ritual onde eram consagradas as vestes do leproso, um par de luvas e um chocalho, além de uma série de advertência: "Eu te proíbo de entrar em igrejas, abadias, feiras, engenhos ou mercados só ou em companhia de outros. Eu te proíbo de andar sem o teu hábito. Eu te proíbo de lavar as mãos ou qualquer coisa tua nos córregos ou nascentes ou beber lá; e se necessitar de água peque-a do teu barril em teu corpo. Eu te proíbo de tocar em qualquer coisa que negocie ou compre, até que seja teu. Eu te proíbo de ir a qualquer taverna; se quiser vinho, se comprá-lo ou alguém te vender, coloque-o em teu barril. Se tiver na estrada e encontrar outra pessoa que fale contigo, eu te proíbo de responder até que se colocado contra o vento. Eu te proíbo de tocar em crianças ou de dar-lhes qualquer coisa. Eu te proíbo de comer ou beber de qualquer recipiente exceto os teus. Eu te proíbo de comer ou beber em companhia, exceto de leprosos. (TROVILLARD, citado em WINSLOW, 1967).

Nestes rituais religiosos, atribuía-se formalmente o estatuto de morto ao leproso. Rezavam-se réquiens, semelhantes aos que eram lidos para os mortos. Em seguida, ao som fúnebre dos sinos, o leproso era conduzido pela mão do padre ao cemitério, onde era enterrado simbolicamente, (LOISNE, citado em WINSLOW, 1967).

Identificação do leproso de dava, também pela denúncia anônima à autoridade secular ou religiosa, sendo que um tribunal investigatório era convocado para investigar a veracidade da denúncia.

Perante o júri, composto por um médico, um preboste e um padre, que representavam a ciência, o estado e a igreja. O denunciado era exposto a testes como ser exposto a raios lunares, de forma que estes atingissem a face, o leproso ficaria marcado por variadas cores, enquanto que o homem saudável pareceria pálido. Outro teste era realizado de forma que ao se espalhar cinza de chumbo queimado na urina de um leproso, estas não poderiam afundar, (RICHARDS, 1993).

Com esses tipos de testes, o número de pessoas consideradas leprosas aumentava e assim, estabelecida a natureza da lepra pelo tribunal, os leprosos eram excluídos da comunidade e de toda vida social, (RICHARDS, 1993).

Em alguns lugares, cerimônias "macabras" eram realizadas para marcar a separação do leproso da sociedade. O doente era levado à igreja em procissão, ao som de marchas fúnebres, quando recebia do padre um par de luvas, uma matraca e uma caixa de esmola, símbolos que serviram para o reconhecimento social da sua morbidade, (PICHON, 1984).

Uma das explicações mais comuns para a existência da lepra no período medievo, é que a doença seria adquirida através da relação sexual, no período menstrual da mulher. A moléstia era interpretada como expressão dos pecados da alma, sendo que o leproso era visto como um ser impuro desde o nascimento, um ser lascivo, ansioso por praticar o sexo e um ser sedento de sangue, (PICHON, 1984).

Uma forma de atenuar as feridas provocadas pela doença e mesmo alcançar a cura, seria a utilização de sangue puro; imaculado de donzelas virgens, como também de crianças castas física e, espiritualmente. Num conto germânico, um médico de Salerno, informa a um cavaleiro leproso chamado Henrique, que a cura de sua moléstia somente seria obtida com o sangue do coração de uma menina núbil, disposta a se sacrificar voluntariamente, (BRAGANÇA, J.R, 2003).

O ideário medievo era que os leprosos sacrificassem crianças para banharem-se em seu sangue, com o objetivo de promover a expiação dos seus pecados e, por conseguinte, alcançar a cura física.

Nos escritos sobre Alexandre Magno, consta que o jovem rei da Macedônia teria sido envenenado por uma mulher e se tornado leproso e que teria sido curado com o sangue de duas crianças imoladas. O envolvimento de grandes personagens da história com a lepra ou com leproso, está registrado em várias obras. O Rei Herodes, como também o Imperador Constantino, foram apresentados como portadores da lepra e, por conseguinte, promotores de assassinatos em rituais para alcançarem a cura, (MACEDO,2003).

O melhor testemunho para se compreender a associação que se fazia entre sangue e lepra, encontra-se num romance cavalheiresco pouco conhecido, de autoria anônima, escrito em meados do século XII, intitulados JOUFRÉ; onde o herói se envolve numa trama sinistra: informado de que um leproso havia raptado a filha de um cavaleiro, ele parte no encalço do raptor, encontrando-o mata-o, depois que descobre que outros leprosos mantinham sob cárcere numa casa trinta crianças, sendo que sete pupilos já tinham sido imolados, para que o senhor da casa, que era leproso se banhasse no sangue e fosse curada. O herói entra no local, combate e vence o senhor e seus sequazes e liberta os prisioneiros. Ao quebrar a estatua de um jovem rapaz pintado numa das janelas, o encantamento se quebra e a casa é destruída por uma tempestade, (MACEDO,2003).

Encontramos aqui uma projeção dos medos coletivos que ganhariam amplitude e gerariam atitudes de violência coletiva contra leprosos nos séculos seguintes.

Dentre o quantitativo e o qualitativo escrito sobre o tema lepra e sobre o leproso nos tempos históricos: médio e clássico, uma grande parcela está associada diretamente à criação romanesca, não encontrando confirmação em outras narrativas ou documentos oficiais do período. Neste ínterim, o romance cavalheiresco, obra de entretenimento e evasão científica, serviu como delineador de juízos e valores morais; valores corpóreos e valores estéticos, proporcionando a fecundação de estereótipos, que circundava a pessoa do leproso na Idade Média, dentro do viés místico e religioso que perpassou os tempos históricos, manifestando-se na sociedade do século XX e XXI, com os mesmos conceitos dos tempos medievos, somente com roupagem diferenciada.

A LEPRA EM TERRA TUPINIQUIM

Dentro dos escritos científicos, não encontramos relatos que pudessem ser associados à patologia de hansen a nenhuma enfermidade conhecida pelos autóctones do novo mundo. A falta de indicativos da presença da hanseníase em terras tupiniquins, leva ao direcionamento que a lepra deva ter aportado na nova terra, juntamente com os primeiros colonizadores. Nos escritos de Souza (1946), tem-se o indicativo que foram os portugueses, provenientes das ilhas dos Açores e Madeira, os responsáveis diretos pela introdução e disseminação da doença nas regiões litorâneas da colônia portuguesas. A afirmação de Souza (1946) sobre o papel dos africanos introduzidos no Brasil como força de trabalho escravo, na disseminação da lepra no país é pertinente se confrontado com os escritos preconizados em Noções e Hansenologia (1981), que atesta que o papel desempenhado pelos escravos na introdução da lepra nas Américas e, em especial, no Brasil é discutível, apesar de se admitir a dificuldade de negociação de escravos acometidos pela doença ou qualquer outra patologia.

É válido supor, que muitos escravos agrilhoados, provindos de regiões da África, sabidamente grandes focos de lepra, poderiam ter adentrado no país, se somente contaminados pelo bacilo, pois o período de incubação da doença é muito grande ou também sobre os leprosos comunicantes[5] de forma hansênica indeterminadas e de difícildiagnóstico para os negociantes da época.

O reconhecimento da lepra por parte das autoridades constituídas do Brasil, como sendo um problema social, deu-se no ano de 1820, sob a ordenança do Visconde de Oeynhausen, quando foi elaborado o primeiro censo para sondagem do número de leprosos de São Paulo (MURANO, F. 1939).

Pelo desinteresse e desleixo com os documentos oficiais, política esta tão bem aplicada no Brasil, muitos dos dados coletados pelo Visconde de Oeynhausen, foram extraviados ou se perderam no tempo.

O segundo censo elaborado pelo Visconde protocolou no ano de 1851, um total de 849 leprosos no estado de São Paulo (MURANO, F. 1939). O número total de leprosos recenseados incluía caboclos e negros. Não se tem dados suficientes para se apontar um recenseamento entre os brancos paulistanos da época, devido à posição social que estes ocupavam na hierarquia social, fator que colaborava no encobrimento do número real de leprosos.

Os registros mais antigos sobre a lepra no Brasil datam de 1600, ano em que no Rio de Janeiro, foi criado o primeiro Lazareto para atender os leprosos da província, embora houvesse a manifestação em outras regiões como nas províncias da Bahia e Pará, de focos da doença, as autoridades locais solicitavam previdências, para coibir o alastramento da doença, não foram atendidos pelo governo geral. As primeiras iniciativas, realmente, pautadas numa política governamental, somente ocorreram por ordem expressa do governo colonial de D. João V, que proviam à continuidade da construção de novos leprosários na colônia (GALVAN, A. L. 2003).

A lepra foi reconhecida como um mal a ser combatido somente na primeira década de século XX. No período compreendido entre os anos de 1912 a 1920, as grandes autoridades sanitárias brasileiras como: Emílio Ribas,Osvaldo Cruz e Alfredo da Motta, tendo em vista o descaso das autoridades governamentais ao combate à lepra, iniciaram uma verdadeira guerrilha para destruir o inimigo que se propagavaem todo o solo brasileiro, principalmente nas cidades que se formavam e se desenvolviam como grandes centros urbanos, preconizando ações de controle sobre a lepra embasadas no cientificismo, marcam a introdução de métodos galgadosna teoria bacteriológica:

Tanto Ribas como Cruz, formados na Escola Pasteuriana tinham como meta superar uma perspectiva não científica a partir da introdução da teoria bacteriológica, considerada mais adequada para organizar a intervenção no campo da saúde [...], eles investiram numa óptica tecnológica, que via a saúde e a doença como processo coletivo, resultado da agressão externa que o corpo biológico (fisiologicamente, harmônico) sofria de um meio social/natural insalubre. Os seus objetivos eram a descoberta e o isolamento de indivíduos doentes contagiantes, o saneamento do meio, a destruição dos vetores biológicos e a proteção dos sadios. Para instrumentalizar as ações de saúde, adotaram a bacteriologia e a engenharia sanitária. Seguramente, utilizavam a medicina entendida como muito limitada e pouco eficaz. (QUEIROZ & PUNTEL apud GALVAN, A.L. 2003).

Esta nova visão, alicerçada no confinamento humano, fomentou na construção na década de 1930 das grandes colônias para leprosos. Na obra de Ernane Agrícola (1960) tem-se uma amostra do funcionamento dessas colônias:

Os centros de isolamentos (colônias) eram verdadeiras cidades de leprosos, com vida econômica, social, cultural, religiosa e política totalmente desligada a sociedade externa a ela. Para que a população internada se distraísse, o governo promovia freqüentemente espetáculos teatrais que permitiam dar um ambiente confortável.

A saúde publica no Brasil e a preocupação com a profilaxia da lepra se desenvolveu, caminhando lado a lado com as questões econômicas, pois a necessidade de proteger mão-de-obra influenciou vários programas de controle e tratamento de muitas enfermidades, que afetavam uma grande parcela da sociedade(CONTRERAS, J. 1990).

A história posterga bastante a entrada em cena do corpo produtivo, o corpo do trabalhador enquanto objeto das práticas de saúde.Foucault, M. (1981), em sua obra Microfísica de Poder, aborda a participação das práticas de saúde como meio de proteção a mão-de-obra, fundamental ao desenvolvimento do capitalismo:

O capitalismo se desenvolveu em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre o indivíduo não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista.

Nos anos de 1930 e 1940, novos valores sociais são promulgados pelos governos nacionais, buscando um maior controle sobre a sociedade. Neste ínterim, a necessidade do governo em caracterizar a população como sendo eugênica ou como sendo capaz de se tornareugênica, contribuiu para que a sociedade viesse a normatizar-sedentro de uma nova ordem social, onde o conhecimento médico-científico nortearia, além das ações específicas de saúde, controle sobre valores culturais e sociais. Conforme Dontoura (1997), a eugenia e somente esta poderia preconizar uma nova estrutura social, sendo que para isto, era necessário o melhoramento genético da raça. Para tanto, práticas higiênicas mesmo que em âmbito de aprisionamento do corpo[6], deveriam ser usados para permitir um controle progressivo dos distorcidos e proporcionar juntamente com um feed-back entre controle e pureza racial.

O controle expresso sobre a lepra e, por conseguinte sobre o leproso, teve início no Brasil quando foi criado o primeiro serviço contra a lepra, com o Decreto Federal nº 13.538. Neste decreto, além de ações efetivas de controle, com a ordenança da construção e de hospitais colônias, também preconizava um recenseamento da população leprosa. A metodologia de tratamento a ser aplicado deveria ter como base o isolamento em locais específicos, construídos exclusivamente para esta finalidade, onde os doentes pudessem ser recolhidos e ali, se estabelecer novas relações sociais, culturais e econômicas (BRASIL, 1989).

No ano de 1920, o Decreto Federal nº 14.354 instituía como obrigatório o isolamento domiciliar ou nosocomial do doente, fator que levou a construção de ranchos primitivos nos fundos das residências, onde os leprosos eram alimentados a distância pelos familiares ou amigos (VEBER, 2002).

Com base na política norueguesa que implantou as primeiras colônias de leprosos mantidas pelo estado no ano de 1885, pela então Lei do Isolamento, o governo brasileiro preconizou a construção destas instituições por todo o país. Foucault (1977), em sua obra Vigiar e Punir: nascimento da prisão, analisa a necessidade que a sociedade possui de expurgar o leproso e diz que: "o exílio do leproso se fundamenta numa sociedade pura, pois havia a necessidade de tratá-los como pestilentos".

O período de grande combate a lepra no Brasil se deu durante o governo de Getúlio Dorneles Vargas, que historicamente ficou conhecido como "Estado Novo" (1937-1945), quando foram construídas as diversas colônias de leprosos na maioria dos estados. Durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), a política de saúde pública se manteve direcionada nos moldes do governo Vargas (CONTRERAS, J. 1990).

Neste período, a lepra foi incluída no programa das doenças contagiosas, juntamente com as doenças sexualmente transmissíveis e assim, recebeu a importância e os primeiros tratamentos pelos órgãos governamentais (LOBATO, 1989).

O maior ponto de ruptura com o preconceito que o termo lepra ocasiona, teve início no ano de 1967, quando Abrão Roteberg, um dos maiores nomes da hansenologia brasileira, propôs a mudança do termo lepra para a neologia hanseníase e seus derivados. A mudança da denominação, supostamente levaria ao comparecimento do infectado aos estabelecimentos de saúde (colônias), sem comprometer sua identidade e, principalmente, colaboraria para o fim do medo contra o termo lepra e toda sua carga de preconceito.

No ano de 1973, através de Decreto Lei de 14 de agosto, o termo hansenologia foi oficializado no Brasil. Conforme ROTEBERG (1977), o decreto tinha como pano de fundo romper com a imensa barreira de superstições, estigmas, ignorância e preconceito contra o hanseniano.

O Brasil foi o único país que efetivou a mudança da terminologia de lepra para hanseníase, com o intuito de amenizar o grande estigma sofrido pelo infectado. A mudança do nome foi uma das formas utilizadas para que o leproso não recebesse mais o carimbo de "perigosos" e pudesse ser tratado com os direitos inerentes ao ser humano em todos os órgãos de saúde.

Outra forma de amenizar o estigma contra o hanseniano, foi à utilização de tratamentos laborterápicos[7], que previnem a deformidade física e, por conseqüência, o preconceito que é mais contagiante que a própria hanseníase.

As múltiplas formas preconizadas para o tratamento do leproso perpassavam o agrupamento dos contaminados em locais distantes da sociedade sadia. Receitas em sua maioria fundamentadas no misticismo popular eram aferidas aos leprosos. Dentre as múltiplas formas de tratamento, Souza (1998) relata em seus estudos que mesmo no século XIX, o uso de ações alternativas para combater a lepra eram utilizadas como a sangria, óleos de amêndoas, raízes, banhos térmicos (quente/frio), a ingestão de fórmulas mágicas como caldo de víboras e sal de víboras, em conjunto com outras ações que visavam à melhora nas condições de higiene, com banhos diários, juntamente com uma alimentação saudável e abundante com gemas de ovos, muitos verduras e vegetais, juntamente com uma dieta concentrada em carnes vermelhas, frescas, deveriam ser utilizadas como tratamento.

Em 1941, os pacientes de hanseníase passaram a ser medicados com Diamino Difenil Sulfona (DDS). O controle através da terapia medicamentosa, a internação deixou de ser compulsória. No ano de 1950, com a Lei Federal nº. 1045, o paciente de hanseníase, antes internados na colônia por força de lei, passou a visionar a possibilidade de alta e de cura.

A política eugênica dos anos de 1940, o confinamento em colônias, o expurgo social imposto aos leprosos pela sociedade "bela" e "sadia", não foram capazes de delimitar ou mesmo interromper a ação devastadora da doença.

Somente nos anos de 1980, a história da lepra no Brasil teve marco significativo no que se refere aos tratamentos empregados. A partir desta data, houve grandes investimentos em saúde pública, que buscou a desativação das colônias para leprosos, promovendo a integração dos doentes às suas famílias, sendo que se procedia ao tratamento do hanseniano, antes em colônias internados, compulsoriamente, à forma de tratamento ambulatorial, à internação quando necessária, em hospitais gerais.

A maior dificuldade de reintegração do hanseniano à sociedade se tem na incapacidade de readaptação à vida familiar e social, após o período de internação. Esse fator pessoal tem determinado a permanência de muitos leprosos nas colônias, sendo esses, na sua grande maioria, os mutilados física e socialmente, que no decorrer de anos e mesmo décadas, foram tutelados pelos leprosários e, assim, extorquidosdos vínculos familiares.


A LEPRA EM SANTA CATARINAE A COLÔNIA SANTA TERESA

O Estado de Santa Catarina não se distanciou das demais regiões doBrasil no que tange às políticas de tratamento, preconizado aos leprosos, pois seguia os ditames prescritos pelo decreto Federal nº. 13.538 de 1916, que organizou o Serviço Contra Lepra. O decreto exigia que os contaminados fossem internados em colônias de isolamento, locais que pudessem proporcionar a criação de novas relações sociais, onde o leproso, dentro de condições rígidas pudesse exercer alguma atividade laborativa ou terapêutica (BRASIL, 1989).

Segundo Araújo (1946), no Estado de Santa Catarina, o tratamento aplicado aos leprosos, pelos órgãos governamentais e pela sociedade civil, acompanhou a política nacional. As autoridades brasileira e catarinense tinham enorme preocupação com a proteção da sociedade exposta a contrair hanseníase, motivo pelo qual foram fundados as colônias de leprosos e os preventórios. No ano de 1917, a Diretoria de Higiene do Estado de Santa Catarina tinha informações da existência de 62 leprosos, sendo que a cidade de Desterro (Florianópolis), São Francisco do Sul e Itajaí, eram os centros urbanos com maior incidência de diagnósticos positivos da lepra.

O crescimento dos casos confirmados de lepra no Estado acompanhou ao aumento demográfico ocorrido na primeira metade do século XX. Na década de 1920, a Diretoria de Higiene do Estado de Santa Catarina, sob a administração do médico Carlos Correa, notificou 400 casos de lepra. O aumento considerável de novos casos levou o governo estadual a contactar o Dr. Heráclides César de Sousa Araújo, sob quais as ações que deveriam ser adotadas para fazer frente à endemia que se propagava em solo catarinense. Em resposta, o Dr. Araújo faz indicações que o tratamento deveria seguir a política de isolamento, conforme moldes do tratamento norueguês, que já no ano de 1885, com a Lei do Isolamento, fundara colônias para receber os leprosos (Veber, 2002). A política de isolar os leprosos objetivava o controle estadual dos contaminantes da doença, para qual não havia ainda tratamento eficaz, afastando-osda comunidade, internando-os compulsoriamente em guetos ajardinados.

Além da fundação de colônias para os "morphéticos", Dr. Araújo indicou ao governo catarinense Adolfo Konder, que fossem feitos exames clínicos e bacteriológicos nos meninos (todas as crianças) e professores, anualmente, nas escolas públicas e a vacinação dos diagnosticados, positivamente, com a vacina Rowltberapia (BCG intradérmica) e a proibição de união estável (casamento) entre os leprosos (Araújo, 1946).

A construção da Colônia Santa Teresa, local exclusivo no Estado catarinense para abrigar os leprosos, teve início em 1937, na então cidade de São José, próximo ao primeiro núcleo de colonização alemã do Estado, São Pedro de Alcântara, fundada no ano de 1827 por colonos germânicos.

Edificada em local distante e de difícil acesso, permitia o seqüestro oficial dos leprosos e, providencialmente, o esquecimento destes por parte da sociedade sadia.

A região escolhida pelo governo catarinense para a construção do que podemos chamar de "campo de concentração", pois deveria receber o que a sociedade expurgava na guerra de preconceito, era servida por uma única via de acesso: a estrada utilizada pelos tropeiros que comercializavam os produtos do planalto serrano (charque, erva mate, pinhão e gado com o sal) das regiões litorâneas (Florianópolis e São José).

Erigida, estrategicamente, entre depressões montanhosas, cercada em uma de suas divisas por mata densa e por outra, por uma corrente de água, rio Maruí, a colônia se tornara de forma natural uma verdadeira prisão de segurança máxima.

No ano de 1935, o governo catarinense iniciou, literalmente, caça aos leprosos no Estado. Com as diretrizes traçadas, o internamento compulsório iniciou-se em Santa Catarina através do recenseamento efetuado por uma equipe de "caçadores", comandada pelo leprologistaDr. Polydoro Ernany de São Thiago.

A busca aos "pecadores" pela equipe de "caçadores públicos de leprosos" percorreu um total de 253 localidades, viagem que confirmaram 393 casos confirmados e 1.126 casos contactados, sendo que os principais focos se encontravam nas cidades de Laguna, Tubarão, Lages e Itajaí. Seguindo orientação especifica internacional, os leprosos descobertos pela equipe de recenseamento eram classificados em:

Classificação antiga

Classificação moderna

Número de casos

Lepromatosa

Virchowiana

88

Neural

Tuberculoide e Indeterminada Mitsuda +

159

Mixta

Dimorfa e Indeterminada

Mitsuda -

146

Total

393

 

Fonte: São Thiago, P.E.

Conforme relato de São Thiago, a Lei permitia e exigia o verdadeiro seqüestro dos doentes, em geral, pessoas humildes, habituadas a uma vida familiar muito sentimental, aconchegantee amorosa. Descarrá-los, não importando a idade, constituía um drama emocional. Os leprosos eram procurados pela equipe em locais ermos, nos rústicos casebres, onde eram escondidos e segregados pelos próprios familiares e vizinhos. Alguns com lesões aparentes nas áreas descobertas do corpo; face, braços e pernas, com deformidades e mutilações graves, viviam nesses "esconderijos", sendo alimentados a distância pelos familiares amedrontados.

A Colônia Santa Teresa foi inaugurada em 11 de março de 1940, no mesmo mês, especificamente, no dia 25, foram internados os primeiros pacientes em números de 16[8].

Calendário e seqüência do internamento:

Ano

Quantidade de Internação

1940

290

1941

73

1942

72

1943

93

1944

16

1945 - 1960

638

1961 – 1976

496

1977 – 1992

495

1993 – 2005

940

Fonte: Serviço de Arquivo Médico. HST

São Thiago (1992) relata que a colônia Santa Teresafoi construída de modo a proporcionar todo o conforto possível, estruturada comouma mini cidade, a colônia estava dividida em três partes; esta divisão não era oficializada e tornando conhecida devido a forte e constante menção. As partes passaram a ser conhecidas como "Zona Limpa", "Zona suja" e "Ferro Velho".

O perímetro da colônia era totalmente cercado por muros de alvenaria, gradeado de ferro e estava dividida com passagem de segurança, em duas alas estanques. Na ala mais próxima à entrada principal, à direita do portão de acesso, estava disposto o conjunto residencial dos funcionários administrativos, dos servidores técnicos, do médico residente, do administrador e do diretor geral. Nessas residências, também eram alojados os familiares dos servidores. As necessidades básicas para o conforto e sustento, tal como ocorria no interior da colônia, era fornecido pelo Estado. Itens que iam desde a eletricidade, fornecimento de água potável, móveis, objetos de decoração e alimentação. Este setor era conhecido como "zona limpa" ou área sadia.

No lado esquerdo, após a passagem obrigatória pelo portão guarnecido de segurança diuturnamente, ficava a zona doente ou contaminada chamada de "zona suja". Os pacientes eram acomodados em pavilhões lineares, muito amplos, subdivididos em quartos para reduzido número de pacientes, este s eram selecionados de acordo com a forma clínica da doença. Havia quartos reservados para casais e de isolamento para doenças intercorrentes ou infecto-contagiosas de outras patologias. Outras dependências eram reservadas para as vítimas de reações lepróticas, que requeriam atendimento médico especializado e outras, pós-operatório, servindo também para assistência intensiva. Um dos pavilhões era utilizado como enfermaria geral; neste local, era abrigado o portador de formas avançadas da lepra, com lesões destrutivas, mutilados irrecuperáveis. Era o pavilhão do "ferro velho"

Um pavilhão distante servia como residência e clausura para as Irmãs de Caridade que atuavam, diretamente, na enfermagem.

Segundo São Thiago, ao terminar a viagem que transportava os leprosos compulsoriamente para a colônia, os doentes passavam a viver de saudades:

Assim, embora válidos e lúcidos, não raros, com boa aparência, os leprosos eram arrancados de seus lares e, do meio social, para uma viagem quase sempre sem retorno. Eram transportados para uma espécie de zoológico ajardinado, totalmente cercado por muros altos, onde gente sadia só penetrava sob regras restritivas. Os contatos pessoais e as relações sociais de todo tipo se resumiam entre os próprios internados e dentro das paredes do isolamento (São Thiago, 1992)

Uma quantidade expressiva de internos não aceitava o tratamento preconizado e passavam a planejar uma maneira de voltar à sua família, fator que gerou a necessidade da construção de uma cadeia para quem não se conformasse com a situação ofertada pela colônia.

No âmbito restrito da zona contaminada, em muitos casos, a vida familiar recomeçava ou começava. O tempo senhor eterno do sentimento, que tudo apaga ou ameniza, agia também nos sentimentos dos pacientes; os homens, em geral, buscavam outras uniões. As mulheres, em muitos casos, mantinham o compromisso, aguardando o momento da volta à família. Muitas mulheres se prostituíam, quando a desesperança era somada a conselhos de que a retomada do contato era perigoso ou impossível.

Algumas uniões amorosas se firmaram dentro da cercania da colônia. Estas uniões, por vezes, eram legalizadas, juridicamente. A constituição de novas famílias, mesmo diante da perspectiva da separação dos filhos que eram encaminhados, diretamente, após o nascimento para o Preventório[9].

O contato do paciente leproso, internado na colônia com a sociedade sadia, família ou amigos se dava através de cartas e outras mensagens e encomendas que eram remetidas para fora das cercanias da colônia, passavam antes por um processo de desinfecção. O mesmo acontecia com a moeda (moeda de metal ou cédula) quando havia a oportunidade ou necessidade de compra de algum utensílio pessoal que a instituição não fornecia. Para a maior segurança, no que se refere à construção de barreiras que pudessem evitar o contato entre utensílios e objetos usados pelos pacientes, a colônia Santa Teresautilizava moeda própria, confeccionada para uso exclusivo interno.

Tinha o nosso dinheiro, dinheiro verdadeiro, [...]. Então, era desinfetado, [...]; eles pegavam nosso dinheiro, botavam na estufa. O funcionário pegava com um papelinho pra não contaminar, levava à estufa. (BRAVIANO, G.J. 2001.)[10]

A administração da colônia era responsável direta por prover os direitos dos pacientes. Neste ínterim, os internos recebiam pensões, aposentadorias, rendimentos, heranças e doações.

No cumprimento de metas de praxiterapia, os coloniados eram contratados muitas vezes para exercerem alguma atividade laboriosa na instituição. Atuavam como auxiliares de enfermagem, professores primários, mecânicos, lavadeiras, copeiras e faxineiras.

Como retrata São Thiago (1992)explanando sobre o atendimento médico e de enfermagem, diz que o grupo de saúde era composto por médicos, enfermeiros, irmãs de caridade, alguns funcionários administrativos e, sobretudo por pacientes em recuperação treinados para atuarem na recuperação dos companheiros de enfermidades.

Para São Thiago (1992), a equipe médica depositava total confiança na terapêutica, então, empregada e aconselhada pela comunidade científica. Controlando todos os doentes como possíveis candidatos à alta hospitalar. São Thiago acrescenta que a confiança médica e, por vezes, dos internados, era uma esperança falida e os anos decorridos demonstraram que nada todo o aparato científico nada contribuía para alguma regressão da doença, ficando apenas por patê da comunidade de saúde que assistia aos leprosos a consciência do dever cumprido.

O único medicamento então indicado era o óleo de Chaulmoogra, conhecido por muitos anos no oriente como remédio para a lepra, introduzido na Europa em meados do século XIX e no Brasil poucas décadas após, no Hospital dos Lázaros, no Rio de Janeiro. Conforme Queiroz & Puntel, 1997, o tratamento com o óleo de Chaulmoogra consistia em uso interno e externo, provocando reações fortes nos pacientes, tais como: gastralgia, vômitos e diarréia. Apesar de ter sido universalmente aceito como benéfico ao tratamento da lepra, embora não se encontre indício científico da sua eficácia. Outra forma de tratamento era a eletrocauterização das lesões cutâneas. De modo geral, os tratamentos disponíveis nesta época eram verdadeiras torturas para os pacientes, além de totalmente inócuas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente, a segregação do hanseniano demonstra ser tão intensa e controlada pelos órgãos públicos, como fora até há poucos anos, quando se praticava a política do isolamento compulsório, porém ainda, existe e é um dos problemas contra o qual o infectado tende a reagir, constantemente.

A segregação, o preconceito e o medo acontecem de diversas maneiras e por gama variada de razões. Muitas vezes, uma política de segregação é imposta a um grupo por partilharem conceitos de sociedade, como é comum em muitas seitas religiosas. Outras vezes, o preconceito é imposto a alguém por ser esteticamente diferente, sendo jogado no hiato da repulsa.

Por muitas vezes, o preconceito é auto-imposto, o que acontece, normalmente, com o hanseniano que possui alguma deformidade física.

A condição de ter sido hanseniano, também leva a necessidade de ocultar-se. A falta de conhecimento sobre a possibilidade de cura da hanseníase, faz com que a sociedade não aceite em seu meio, seja social ou econômico, um ex-paciente de hanseníase.

Mesmo sem possuir seqüelas físicas, o ex-hanseniano é visto como perigoso. Para a sociedade leiga, não existe o ex-hanseniano. O hanseniano é sempre contagioso, sempre perigoso e, portanto deve ser expurgado do convívio "sadio".

Muitos ex-hansenianos escondem sua situação para poderem exercer suas profissões e, portanto se auto/proverem de seus dependentes.

Os doentes que se encontram em tratamento, como também os que já obtiveram cura, continuam se ocultando, não somente pelo terror que ainda persiste do isolamento, mas também pela inevitável degradação social que lhe é imposta pela sociedade "sadia".

A sociedade, em geral, como também muitos profissionais de saúde, rejeitam os leprosos, os quais, por sua vez, evitam tratar-se ou passam a faltar aos tratamentos na primeira oportunidade, proporcionando com esta atitude de se manterem afastados, a manutenção do preconceito, visto que desenvolverão seqüelasfísicasgraves com opassardotempo, oque causa por parte do observador, repúdio e medo.

Mesmo com as novas técnicas e tecnologia médicas hospitalares desenvolvidas no final do século XX, os "Hospitais Colônias" continuam a funcionar sem grandes alterações. Muitos deles continuam a aplicar a política de isolamento, mantendo o "terror" e fortalecendo a corrente preconceituosa que amarra o hanseniano ao tronco do ser "sujo", do ser "castigado", do estar "esquecido por Deus".

Os projetos educacionais de saúde (voltados ao atendimento do hanseniano e a inserção destes no bojo da sociedade "bela", como as associações MORHAN e GPH), não conseguem vencer, nem mesmo em pequena fração, o preconceito milenar, firmemente enraizado na cultura de todas as civilizações, rodeada de ignorância, superstição, pregado por instituições religiosas e alicerçado pelos meios de comunicação.

A continuidade do preconceito e estigma contra o hanseniano é fecundada na sociedade, também por instituições beneficentes, que não hesitamem agravar o estigma e prejudicar a prevenção com a finalidade de angariar fundos, mostrando sempre imagens com os casos mais agudos.

A hanseníase não deveria gerar por si o preconceito e o estigma, visto que a doença tratada perde o poder de contaminação e a aplicação de técnicas fisioterápicas e quimioterápicas, possibilitando a manutenção do corpo sem mutilações, evitando assim, uma das maiores portas de acesso ao preconceito: o corpo deformado, seja por conseqüência direta de uma patologia como a hanseníase ou ocasionado por fatores externos, são encarados com repulsa e rejeição pelo observador.

Como término deste trabalho, após chegar à conclusão que o preconceito é mais infeccioso que à hanseníase, apresento a oração de Vêronique, hanseniana, que expõe todo o seu sofrimento nesta prece:

Senhor, tu viste, tu me pediste tudo e eu te dei tudo.

Eu adorava ler e hoje estou cega.

Adorava correr pelas florestas e, agora,

minhas pernas estão paralisadas.

Adorava colher flores ao sol da primavera e não tenho mais mãos.

Porque sou mulher, gostava de contemplar a beleza dos meus cabelos, a delicadeza de meus dedos, a graça de meu corpo: agora, estou quase calva, e no lugar dos meus lindos dedos afilados não restam senão como que rígidos pedaços de madeira. Olha, Senhor, como está destruído o meu corpo gracioso. [...]Ó meu Amor, eu te peço pelos leprosos do mundo inteiro!

Peço, sobretudo, por aqueles que a lepra moral abate, destrói, inutiliza e arrasa. [...] Ó meu Amor, eu te ofereço a minha lepra física, para que eles não mais experimentem a repulsa, o amargor e a frieza de sua lepra moral[11].Amém!



[1] O termo saúde aqui é retratado como sendo a condição em que o indivíduo se encontra em determinado instante. Estado de são, de indivíduo, cujo organismo funciona, normalmente. LUFT, Celso Pedro. Multidicionário Luft. São Paulo: Ática, 2000.

[2] Entende-se por positivismo, o sistema filosófico, baseado na experiência e conhecimento empírico dos fenômenos naturais. Por este motivo, o Positivismo considera a metafísica e a teologia como sistemas de conhecimento imperfeitos, o termo positivismo foi empregado pela primeira vez por Auguste Comte no século XIX. No século XX, foi usado para designar novas escolas como o Positivismo Lógico – representado por Ludwig Wittgentein, Bertrand Russel e George Edward Moore.

[3] Nova História: Fundamenta-se na necessidade de uma história mais abrangente, interdisciplinar; o que abre o leque de possibilidades do fazer historiográfico, da mesma maneira que se impõe a esse fazer a necessidade de ir buscar junto a outras ciências humanas, os conceitos e os instrumentos que permitiriam ao historiador ampliar sua visão de homem.BURK, Peter. A Revolução Francesa da Historiografia: A Escola dos Annales, 1929- 1989. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991.

[4] Granulomatosa: que forma grânulos, glóbulo, formação de saliências sob a pele.

[5] O termo "COMUNICANTE" aqui é tratado como sendo o indivíduo que portador de hanseníase na sua forma indeterminada é propagador da patologia, sem, no entanto, apresentar sintomas possíveis de diagnóstico.

[6] Entende-se aqui como interdição do corpo, a ação da internação compulsória em colônias de leprosos, loucos e tuberculosos, que poderiam interferir na eugenia de uma etnia.

[7] Tratamento e precaução contra as deformidades causadas pelo bacilo de hansen, através da terapia ocupacional que ensina como fazer.

[8] Relatos apontam que 03 pacientes já se encontravam alojados nas dependências da Colônia, antes mesmo da inauguração oficial.

[9] A instituição conhecida como Preventório (do termo prevenir= v.t 1. Tomar medidas com antecedência; preparar-se. 2. Avisar, aconselhar, antecipadamente. 3. Prepararcom antecedência. 4. Precatar-se, acautelar-se. LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft, São Paulo. Ática, 2000) foi inaugurado em 26 de janeiro de 1941, era dirigida pela Sociedade Catarinense de Assistência aos Lázaros.O Preventório detinha a guarda das crianças nascidas na colônia Santa Teresa e ou as crianças, filhos de leprosos que seriam internados na colônia, até o momento que a lepra se manifestassee fosse transferido para a colônia ou se a criança não tivesse sido contaminada o Preventório mantinha-o sob sua responsabilidade legal e jurídica até que completasse a maioridade. Nisto, o preconceito ao leproso atingia também aos filhos, mantidos num período de "quarentena", que podia chegar a 20 anos. (VEBER, J.B. 2001).

[10] Germano João Braviano foi internado na colônia Santa Teresa em 31 de dezembro de 1940, juntamente com seus pais e sete irmãos. Sua história retrata as muitas histórias dos que foram internados compulsoriamente. Braviano relata que após terem embarcado na viatura que os trouxe para a colônia, a residência foi incendiada por autoridades policiais.(Entrevista concedida a João Batista Veber) arquivada no Laboratório de História Oral – Centro de Filosofia e Ciências Humanas-CFH. UFSC).

[11] ROUWER, Desclée de. Eu, Leprosa. A Oração e a Vida de Véronique. Tradução de Gulmara Lobato de Morais Pereira. São Paulo: Edições Loyola, 1985. p.9-10.


Autor: João Batista Veber


Artigos Relacionados


Educação Física E Qualidade De Vida

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri

O Papel Do BiomÉdico No DiagnÓstico Da Hemofilia A

Educação Física Escolar

O Ciclo Do Nitrogênio E A Camada De Ozônio

O Discurso / Mídia / Governo

PolÍtica ComunitÁria