LEMBRANÇA DO ARQUIMEDES



                                                   ARQUIMEDES

 

- Arquimedes! Venha acabar sua lição!

- Já vou!

- Já, não! Agora mesmo! Senão vai ter chinelada!

- Sim, Mãe!

A mãe do Arquimedes era mais dura que a minha.

Eu nunca apanhei de chinelo.

E não  porque eu fosse melhor que o Arquimedes.  

Mas eu gostava muito dele - não do chinelo, é claro; do Arquimedes.

Ele tinha treze anos e eu dez.

Começa por aí: ele já se considerava homem; e eu ainda era um moleque.

O irmão mais velho dele emprestava revistinhas do Fantasma, do X13, do Mandrake – que eram proibidas na minha casa.

- “Má influência” - sentenciava meu pai.

Assim eu ia lê-las na casa do Arquimedes.

Ele sempre tinha algum dinheiro no bolso – e eu nunca conseguia um trocadinho.

Ele estudava menos que eu – e se saía melhor nas provas. 

Negociava de tudo, com qualquer pessoa: barbantes, parafusos de bicicleta, figurinhas carimbadas, yo-yôs; comprava barato, vendia caro, trocava qualquer coisa e sempre saía ganhando.

Era esperto demais, enrolava todo o mundo.

E os enrolados agradeciam.

Agora que percebo: eu não só o admirava; invejava-o.

Como gostaria de ser igual a ele!

 

Um dia, a família dele mudou-se.

Foram morar em Brasília, perto da W3.

Por muito tempo não soube nada dele.

Foi por acaso que vi seu nome num jornal velho: “O Comendador Arquimedes.....”

Pensei logo: “Vai ver que foi pego em alguma mutreta...”

Coitado dele!....Golpes seriam típicos dele. Mas fracassos, não.

Que nada! Tinha sido homenageado por uma associação qualquer.

Estava rico, morava em uma mansão no Paranoá, freqüentava festas dos VIP. 

Num passo, estava na política; subsecretário de não-sei-o-quê.

Eram tempos de denúncias, de escândalos.

Ministros caíam; senadores fugiam para as Caimãs; os “Vices” experimentavam a roda gigante: ou seja: subiam, davam uma olhadinha e quando desciam, já eram.

E ele sempre lá, firme, seguro, resolvendo, dando palpites e retoques nos projetos, mexendo de fininho em tudo, colocando e tirando gente.

Demorou três dias para ele me atender; quando finalmente entrei, tinha um sorriso vagamente amarelo, suspeitando que eu quisesse algum favor.

Não acreditou quando lhe disse que não queria nada.

“É a primeira pessoa, em quinze anos, que não me pede nada!” – disse espantado.

“ Só quero...”- falei hesitando, enquanto ele fechava a cara – “só quero um abraço, um abraço profundo, daqueles dos tempos antigos, em que a gente jogava bolinhas de gude...”

Abriu um sorriso triste, meneou a cabeça: - “Não tenho mais bolinhas de gude; vendi todas ao presidente, para fazer tropeçar  os ministros....”

- “Em compensação - disse – tenho o privilégio de relacionar-me com a raça humana, com seus vícios, e pecados, profundos e escuros como poços; e também com suas virtudes, sua inocência” – continuou - “As pessoas me param na rua, perguntando como podem ajudar, participar de nossas campanhas; sem prêmios, sem sorteios, sem salários; só para poder participar da construção de algo que valha a pena. Acredite: a bondade está construindo devagar e em silêncio, um mundo melhor".

 Era comovedor vê-lo assim, mas no fundo, eu sabia, continuava o mesmo comerciante esperto, capaz de vender cordas mágicas, para laçar a lua e trazê-la de volta ao céu, em noites de lua nova. 

E de repente percebi uma coisa importante: que todos, até eu e você, compraríamos facilmente essas cordas, porque todos, até eu e você, precisamos correr atrás de uma causa, mesmo que seja só um sonho, uma fantasia.

Todos desejamos trazer de volta para o meio do céu, a lua que nos faz falta.

Esta é a nossa parte melhor.  

Talvez fosse isso, que ele vendia: apenas sonhos, fantasias, ilusões.

Alimentos indispensáveis e cada vez mais raros.

Na meia hora seguinte abrimos nossos baús de coisas passadas; redescobrimos lembranças, confissões, impressões, e as mostramos um ao outro, comentando, sorrindo e comovendo-nos, como se fossem velhas fotografias, amareladas pelo tempo. 

Revivemos momentos maravilhosos e outros nem tanto. 

Eu fiquei com algumas lágrimas dele, mirradinhas, espremidas, mas sinceras.

Ele também guardou as minhas: saudosas e salgadas, como devem ser.

 

Naquele momento não tive mais inveja dele; apenas admiração, maior que antes.   

Senti que, apesar do sucesso, ele não era uma pessoa feliz; sentia-se solitário e desgastado; afinal, era uma espécie de flautista de Hamelin, no que tinha de melhor: um arrastador de esperançosos.

 

Chegando em casa, fui conferir as minhas bolinhas de gude; estavam todas lá – e ainda estão – guardadas na mesma, antiga caixa de charutos cubanos, impregnada de um aroma inesquecível, como o da infância.

Nenhum presidente jamais  me convenceria a me desfazer delas. Nem Fidel!

 

De lá para cá, passaram outros dez presidentes, quatrocentos ministros e quinze mil dias. 

Abri o jornal ontem, e li que o Arquimedes nos deixou, se foi, deixando sua poltrona para alguém, que com certeza não conseguirá ser melhor que ele..

 

Sinto que ele me deixou doces saudades, alegres lembranças; mas levou consigo uma grande parte de minha vida. A parte mais antiga, mais sincera, mais alegre.   

 

De tudo aquilo, agora, só me sobraram as bolinhas de gude.

 


Autor: Romano Dazzi


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