AURORA DA RUA: UM SONHO IMPRESSO!



A rua, berço acolhedor dos excluídos social, econômica e culturalmente (quase sempre negros!), continua personificando a metáfora de todos os vícios. Espaço discriminado, considerado hostil e palco de constantes arbitrariedades dos podres poderes públicos, desde a Colônia é o espaço dos considerados mais espertos. (Filho, 1998-1999, p. 240) Atualmente, ela ainda territorializa o abismo entre a elite e a pobreza.

Apesar desta disseminação visual e simbólica preconceituosa e de não fazer parte do patrimônio cultural nacional, a rua é uma paisagem de poder, aqui entendida na perspectiva de Pinho (1998-1999, p. 264), como um cenário de práticas, discursos e representações. Os governantes sempre almejaram a ordenação deste espaço, todavia jamais conseguiram o controle absoluto de toda a rede complexa das relações nele estabelecidas.

Os seus protagonistas, desprotegidos pelo status social, convivem diariamente com preconceitos, agressões e conflitos e são considerados seres desprezíveis, que vivem de mendicância, fadados ao insucesso. Sendo assim, o que pensar de um jornal que nasce na rua, produzido e comercializado por pessoas em situação de rua? Um legítimo discurso de identidade! Finalmente, uma leitura de práticas populares redigidas pelos seus próprios agentes!

O jornal "Aurora da Rua" (março/ abril 2007, ano 1, nº 1) é a primeira publicação de rua do Nordeste como alternativa para a ressocialização dos excluídos desta capital. Ele é comercializado pela módica quantia de R$ 1,00, sendo R$ 0,75 lucro do vendedor e R$ 0,25 utilizado para os gastos de impressão. No poema que inspirou o nome do jornal, irmão Henrique Peregrino (2007, p. 4-5) – igreja da Trindade – afirma que "Uma luz, no escuro, cintila.../ Uma fé, nesta noite, ilumina.../ O amor, como sol, ressuscita... Aurora da Rua..."

Para esta produção literária, as pessoas em situação de rua participaram de oficinas de texto e de arte com jornalistas profissionais. No total, são cerca de vinte voluntários entre jornalistas, empresários, estudantes e membros da Comunidade da Trindade – projeto que acolhe ex-moradores de rua. Através de uma linguagem simples e objetiva, eles registram suas notícias, seus talentos e suas estratégias diárias como luta pela sobrevivência.

A metodologia para esta virada econômica incentivou o autoconhecimento, a autoestima e, portanto, oportunizou uma melhora significativa nas relações intra e interpessoais. Destarte, esta iniciativa não é uma mera mercadorização cultural colocada à venda no mercado capitalista, mas uma produção de cultura como sendo "um modo de vida". Patrícia Pinho (2004, p. 233) esclarece que:

É normal que os grupos subordinados vejam sua cultura e suas identidades como coisas, embora isso conviva em tensão com a noção de cultura enquanto modo de vida. Há diferenças nos modos como os diferentes atores tratam a cultura. Promover cultura como sendo um modo de vida é diferente de promover a cultura como sendo um conjunto de "objetos artísticos". As análises precisam então levar em conta as implicações políticas da cultura como unidade e compreender sua convivência contraditória com a cultura enquanto objeto mercadorizado.

O primeiro exemplar deste diferente periódico genuinamente soteropolitano apresenta dez editorias, a saber:

  • Editorial Café Preto;
  • Cartas da Rua;
  • Código de Conduta;
  • Diversos de Rua;
  • Matéria de Capa;
  • Aurora Notícias;
  • Deus na Rua;
  • Brilho da Aurora;
  • Arte Rua;
  • Tirinhas da Rua.

No Editorial Café Preto, há a justificativa pela sua criação: um meio alternativo de sustento para a ressocialização dos excluídos. Além disso, o Aurora permite aos seus vendedores re-encontrarem a dignidade através do trabalho e aos leitores um novo olhar sobre a rua e o seu povo. Nele, faz-se um convite aos leitores para o exercício da cidadania a fim de que se tornem parceiros e ajudem a garantir o sucesso deste projeto através da fidelidade na compra.

Em Cartas da Rua, há transcrições literais de comentários de pessoas em situação de rua ao receberem a edição experimental (nº 0). Os moradores dos Albergues da Baixa dos Sapateiros e do Largo de Roma elogiaram esta iniciativa e se sentiram valorizados por lerem histórias reais de pessoas conhecidas das vias públicas. "É bom ver que a gente não é um lixo, um derrotado. Temos o nosso valor!", diz Alessandro Santos (2007, p. 2).

No Código de Conduta, os vendedores assumem seus compromissos, como a responsabilidade das relações intra e interpessoais enquanto vendem, a sobriedade quanto às drogas lícitas e ilícitas no momento de comercialização, a importância do treinamento especializado e expressam o desejo do resgate da dignidade através deste trabalho. Vale ressaltar que todos devem ser maiores de idade, estar uniformizados com colete e crachá e só podem cobrar o preço de capa.

Nas seções "Diversos de Rua" e "Arte Rua", o tema central é o Carnaval: a experiência mestiça que (re) ratifica o encontro harmonioso das raças. Na reportagem "Momo descalço" – A folia dos excluídos, encontra-se um texto coletivo com depoimentos sobre a festa, os trios, as bandas, os cordeiros, os catadores, os foliões, os policiais e a violência. Já na linguagem abstrata, "Carnaval é tema de oficina", os participantes manifestaram o desejo da inclusão através do desenho do Trio da Rua.

Do entrudo ao carnaval camarotizado, as reflexões sobre a festa mais popular do mundo são contrastantes. Se por um lado, ratifica-se a fábula das três raças (Damatta, 1987, p. 58) e faz-se "uma leitura da farra carnavalesca enquanto momento de convivência entre diferentes" (Albuquerque, 2002, p. 228); por outro, retifica-se esta pseudo-harmonia através da presença significativa dos momos descalços (cordeiros, ambulantes, catadores de latinhas entre outros).

É interessante observar, numa mesma paisagem de poder, como uma simples corda – símbolo da fronteira que constrói a identidade territorial entre os que têm e os que não têm – mantém a rigidez da estratificação social e a divergência de interesses. O depoimento de José Ramos (2007, p. 3) ilustra claramente essa dissensão: "o pensamento dos foliões é mulher e cerveja. O pensamento dos cordeiros e catadores é comprar um leite e um pão para casa".

Filho (1998-1999, p. 270) corrobora:

Desigualdades sócio-econômicas, relativas ou análogas a desigualdades raciais, se reproduzem sob a forma de diferenças de consumo cultural e espacial. Essas diferenças não se referem apenas à forma específica de produção do espaço. (...) Variáveis bem definidas e importantes, como escolaridade, cor e renda fazem uma experiência diferente do espaço e da cultura contemporânea.

Paradoxalmente, a folia – considerada de rua e a festa dita do povo – é mais um evento-território que camufla a desigualdade de renda e poder desta Terra chamada da Felicidade. Os camarotes, por exemplo, são espaços privilegiados onde a elite autoidentificada se deleita com o conforto e a segurança. Enquanto isso, no andar de baixo, na tentativa de ganhar alguns trocados, os excluídos se acotovelam dividindo espaços com os seus semelhantes que seguram as cordas para outros cidadãos privilegiados.

Cabem aqui alguns questionamentos: onde se encontram(riam?) a igualdade, a harmonia e a cordialidade da folia? Na doação, durante o percurso, das sobras de bebida e/ou lanche para um cordeiro? Na doação do abadá, após o desfile, para um folião-pipoca? No oferecimento da latinha vazia ao catador ao invés de jogá-la no chão? Na aquisição de algum produto com um ambulante fora da corda ou com aquele que empurrou um freezer durante todo o percurso dentro da corda para a comodidade do folião? Certamente, este credo igualitário é mais um falso axioma!

Segundo Risério (1998, p. 165), a cidade de Salvador, com seus convites a idealizações paradisíacas, consegue ocultar a realidade de sua miséria e dos seus conflitos sociais. A mídia, por sua vez, divulga o mito da "Terra da Felicidade" e as campanhas políticas propagam a ideia de que o povo tem "Orgulho de ser baiano" para enriquecer os cofres públicos através da indústria de turismo. Os momos descalços, por exemplo, jamais aparecerão nos cartões-postais e nas campanhas publicitárias. Claro! Se os seus discursos são inaudíveis?!?

O depoimento dos moradores do Albergue do Largo de Roma sobre os policiais e a violência ("na verdade eles estão lá para os que estão nos blocos" – 2007, p. 3) e sobre a festa ("o carnaval é feito para pessoas que têm" – 2007, p. 3) também reiteram a hierarquia momesca. Estes diagnósticos, certamente, não constarão nos boletins policiais nem nas mídias escritas e faladas, pois são olhares das classes desprivilegiadas e, portanto, sem importância para o poder público.

Ainda sobre o policiamento, vale ressaltar os seguintes depoimentos: "todo ano tomo porrada!" (Eduardo, da Trindade – 2007, p. 3) e "a polícia aborda a gente e não quer saber quem é a pessoa, já chega agredindo, humilhando" (Marcos, do Largo de Roma – 2007, p. 3). Este desrespeito cristaliza todo o despreparo e autoritarismo desta corporação que é amestrada para a manutenção da ordem, da tranquilidade e da segurança da elite, mesmo que para isso fira a dignidade de outras pessoas.

As reflexões sobre a folia momesca do periódico também apresenta a carnavalização da África através do poema "Negro", de Luiz Carlos Trindade. Nestes versos, o poeta decide, em pleno século XXI, fantasiar-se de si mesmo para "abafar e desfilar". Assim, ele nostalgia o século XX, em que "'fantasiar-se de africano' era o jeito mais divertido de a população de cor participar da festa?" (Albuquerque, 2002, p. 219). Apesar de o "disfarce" ser igual, os contextos são diferentes!

Estas atualizações de memórias da África nos carnavais apresentam divergências no contexto e nas diferentes práticas discursivas. Sobre isso, Filho (2007, p. 9) resume que "não dá pra pensar a circulação de discursos e a sua legitimação sem atentarmos para os esquemas de recepção/ negociação/ rejeição/ sincretização nas diferentes instâncias do real e nas suas múltiplas culturas receptivas/ interativas".

No século XX, no modelo carnavalesco de inspiração francesa, esta fantasia de africano era vista como uma integração civilizada aos festejos. Albuquerque (2002, p. 221), entretanto, extrapola esta lógica de ser apenas um ajuste e refuta-a apresentando o "disfarce" como um discurso de re-elaboração identitária, observando-o como uma forma de "assimilação/ resistência".

O desejo do poeta, ao utilizar esta vestimenta, é assumir a sua negritude e reiterar a consciência negra como declara nos seus versos. Ele pretende também mostrar que "Negro não é brincadeira" e que é possível misturar os ainda "Negros escravizados" com os "Negros libertados"/ "Sem medo de ter mistura". O seu desejo é lembrar Tutu e Mandela, saudar Zumbi "Que lutou para ser cidadão" e provar que "Nossa história tem grandes vitórias" (2007, p. 8).

A Matéria de Capa "Nas ruas, mas sem amargura" ratifica o objetivo de desmitificar os falsos axiomas e a maneira preconceituosa como são retratadas as pessoas em situação de rua pela mídia em geral. Nesta reportagem, a redatora Ingrid Campos descreve o projeto desde a inspiração de Peregrino até a concretização deste sonho impresso, com a realização de oficinas de texto e de arte, que deram aos participantes a oportunidade de exporem as suas opiniões e explorarem os seus talentos.

Além disso, ela (2007, p. 4) afirma que "diminuir preconceitos e ter uma nova fonte de renda foram argumentos suficientes para que todos aceitassem a proposta". Neste texto, também foi apresentada a experiência de outros jornais de rua do Brasil e do mundo, como o Street News (Nova York), O Trecheiro (distribuído gratuitamente nos albergues e nas ruas de São Paulo), o Boca de Rua (Porto Alegre) entre outros.

Na seção "Aurora Notícias", os repórteres apresentam quatro fatos: o prêmio ao autor e ao produtor da peça de teatro "Diário de um carroceiro"; o falecimento de Abbé Pierre, precursor da causa dos sem-tetos; a consternação pelo falecimento de três moradores de rua de Salvador que foram vítimas da violência; por último, a iniciativa da entrega de barracas isotérmicas na Europa para ajudar os desabrigados no combate ao frio.

Na editoria "Deus na Rua", Henrique Peregrino apresenta o conto "O inesperado Inesperado". O texto versa sobre o encontro entre dois moradores de rua, Natal e Companheiro, com Deus (Inesperado). A acolhida e a conversa lhes ofertaram uma noite tranquila e, ao amanhecer, acontece o inesperado: o desaparecimento de Inesperado. Os moradores decidem socializar o ocorrido, relatando aos demais moradores e ao Aurora.

No "Brilho da Aurora", a redatora faz uma homenagem póstuma ao senhor José Tavares Cerqueira, 58 anos, vendedor de garrafas PET, relatando a sua luta pela sobrevivência. Seu Zé deixou uma mensagem de perseverança e dignidade e conquistou a admiração e o respeito de todos. Para Tavares (1998, p. 28), a herança de um passado inglório resulta na luta constante de alguns milhões de brasileiros pela sua verdadeira emancipação.

A história de Seu Zé, considerado por todos como "o incansável", ilustra mais uma vez a posteridade do 13 de maio que "libertou" os escravos, mas não lhes ofereceu condições dignas para o exercício pleno da cidadania. Albuquerque (2002, p. 221) corrobora ao refletir sobre "como o passado africano estava compondo a experiência dos que herdaram estigmas e desafios escravistas na condição de liberdade".

Lilia Schwarcz (2007, p. 51) reflete que:

Mais do que analisar as especificidades do processo brasileiro da abolição da escravidão, interessa insistir nas decorrências. De tão rotinizada, a libertação como que não existiu. De tão tranquila, não deveria nem ao menos ser sentida. De tão naturalizada, parecia um desígnio dos céus. De tão inserida, passou rapidamente para a ordem do passado mais passado. E, afinal, que espaço sobra para a população que foi efetivamente libertada? Apenas uma grande e quase inominável falta.

Em "Tirinhas da Rua", há a história de "Aurora e a Turminha da Rua", com autoria de Marcos Queiroz. A narrativa em quadrinhos ilustra a função assistencialista do periódico: uma estratégia político-social de ressocialização. Vale ressaltar que é um exemplo de contracultura uma vez que também desmitifica a cultura baiana e popular sempre apresentada através de elementos folclorizantes, expondo apenas o lado artístico.

Segundo Patrícia Pinho (2004, p. 246), "os grupos estigmatizados lutam para reverter imagens negativas em representações positivas, o que termina não apenas por criar ou reforçar estereótipos, mas também reduz o poder transformador". Felizmente, este veículo de divulgação se contrapõe a esta assertiva uma vez que interfere socialmente e altera o rumo da história dos outrora "fadados ao insucesso".

Enfim, a idealização e a concretização deste sonho impresso, rico em função social e reflexão crítica, certamente é mais uma das inúmeras vitórias deste povo guerreiro e profícuo que luta com denodo diariamente para uma verdadeira emancipação pós 13 de maio. Todo o seu legítimo discurso de identidade veiculado nas suas editorias apresenta uma cultura autônoma de contestação e estabelece uma estratégia transformadora: a mão que antes pedia esmola, agora ganha dignidade e autoestima.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Walmyra Ribeiro de. Esperanças de Boaventuras: Construções da África e Africanismos na Bahia (1987-1910). Estudos Afro-Asiáticos, ano 24, nº 2, 2002, p. 215-245.

ANDRADE, Maria José Souza de. A mão de obra escrava em Salvador (1811-1860). São Paulo: Corrupio, 1988, p. 27-63.

Aurora da Rua, Salvador/ Bahia, março/ abril 2007, ano 1, nº 1.

DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 58-85.

FILHO, Alberto Heráclito Ferreira. Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura popular e Salvador (1890-1937). Afro-Ásia, 21-22 (1998-1999), p. 239-256.

FILHO, Alberto Heráclito Ferreira. O trem da alegria ou a modernidade chega à Bahia: história cultural, "modernização burguesa", produção historiográfica da geração de 1990, 2007, p. 1-24.

PINHO, Osmundo de Araújo. Espaço, poder e relações raciais: o caso de Centro Histórico de Salvador. Afro-Ásia, 21-22 (1998-1999), p. 257-274.

PINHO, Patrícia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume, 2004, p. 211-250.

RISÉRIO, Antônio. Bahia com "H" uma leitura da cultura baiana. In: REIS, João José (org.) Escravidão e invenção da liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 143-165.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira. In: Cunha, Olívia Maria Gomes da. GOMES, Flávio Santos (org.) Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil.Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007, p. 23-52.


Autor: Mabel Freitas


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