Fundo do Poço



Fundo do Poço


Profundo é o poço do passado. Não se deveria dizer que é insondável?... Nossa sonda tocou o fundo do poço dos tempos sem que seja atingida a meta final e inicial que propúnhamos. A história do homem é mais antiga que o mundo material, que é obra de sua vontade, mais antiga do que a vida que depende de sua vontade.
(THOMAS MANN)


Era domingo, o dia do senhor, lembro-me jamais esquecerei, o padre pregava: — O evangelho de hoje nos diz: “Israel amava José mais do que todos os outros filhos, porque ele era o filho de sua velhice; e mandara-lhe fazer uma túnica de várias cores. Seus irmãos, vendo que seu pai o preferia a eles, conceberam ódio contra ele e não podiam mais tratá-lo com bons modos. Ora, José teve um sonho, e o contou aos seus irmãos, que o detestaram ainda mais”.

José tinha sido ele lançado apenas pela inveja, corrosiva, sim pelo próprio sangue havia sido traído, menosprezado, como Caim fizera a Abel, seus irmãos repetiam o estúpido erro, José, caçula, predileto, adivinho, revelador, oráculo, interpretador de sonhos, não entendia, nem tinha como entender, ali estava...

— Você chegou ao fundo do poço! – afirmação densa, dura e pesada, não conseguia digeri-la, difícil, como ser educado por uma pedra, assim foi quando nasci e até o fim da existência seria... A educação era pela pedra, pelo peso, pela rudeza, não havia palavras de amor, muito apanhara. O carinho não encontrava espaço em meu lar, éramos bichos, estávamos confinados, e a todo custo tentávamos manter nosso território nessa jaula inadequada... Sofria por algo que não entendia, não controlava, em sua ingenuidade revelara e dessa maneira, o sentenciaram como podia ele reinar, não desejava o poder, sabia que o poder era como a inveja, amaldiçoava, corrompia e destruía...

O padre continua seu sermão: — José tem um sonho e revela ao pai e aos seus irmãos: “Ouvi, disse-lhes ele, o sonho que tive: estávamos ligando feixes no campo, e eis que o meu feixe se levantou e se pôs de pé, enquanto os vossos o cercavam e se prostravam diante dele.” Seus irmãos disseram-lhe: “Quererias, porventura, reinar sobre nós e tornar-te nosso senhor?” E odiaram-no ainda mais por causa de seus sonhos e de suas palavras. José teve ainda outro sonho, que contou aos seus irmãos. “Tive, disse ele, ainda um sonho: o sol, a lua e onze estrelas prostravam-se diante de mim.” Ele contou isso ao seu pai e aos seus irmãos, mas foi repreendido por seu pai: “Que significa, disse-lhe ele, este sonho que tiveste? Viremos, porventura, eu, tua mãe e teus irmãos, a nos prostrar por terra diante de ti?”

— Você chegou ao fundo do poço! – assertiva, direta, assim era a afirmação, fui humilhado, apedrejado, por algo que não tinha forças para superar... Quando criança depois de errar, tudo que desejava era confessar, chegar a minha mãe, revelar o que tinha feito e sonhava: ela abraçar-me-ia e diria: “Calma, filho, tudo irá ficar bem”, na realidade eu era acossado e minha mãe brandindo um fio elétrico como se um chicote fosse, estalava-o em minhas costas, dor, humilhação, provocação, jamais irei esquecer...

— Lembrem-se Caim também sofreu pela inveja e assassinou Abel, foi assim que a terra bebeu seu primeiro gole de sangue humano: Antes que José se aproximasse, combinaram entre si como o haveriam de matar; e disseram: “Eis o sonhador que chega. Vamos, matemo-lo e atiremo-lo numa cisterna; diremos depois que uma fera o devorou; e então veremos de que lhe aproveitaram os seus sonhos.”

— Você chegou ao fundo do poço! – nunca tinha conseguido revelar minha maldição a alguém e quando revelei achando que seria remido, teria enfim a materialização dos meus devaneios: “Calma, filho, tudo irá ficar bem”. Eis que descubro que não havia perdão ninguém entenderia, encontrava-me encurralado, a educação agora era como uma “faca sem cabo” cujo corte é certo...

— A inveja não conhece limites e amaldiçoa o próprio sangue daquele que a sente os irmãos arquitetaram: Quando José se aproximou de seus irmãos, eles o despojaram de sua túnica, daquela bela túnica de várias cores que trazia, e jogaram-no numa cisterna velha, que não tinha água. E, sentando-se para comer, eis que, levantando os olhos, viram surgir no horizonte uma caravana de ismaelitas vinda de Galaad. Seus camelos estavam carregados de resina, de bálsamo e de ládano, que transportavam para o Egito. Então Judá disse aos seus irmãos: “Que nos aproveita matar nosso irmão e ocultar o seu sangue? Vinde e vendamo-lo aos ismaelitas. Não levantemos nossas mãos contra ele, pois, afinal, é nosso irmão, nossa carne.” Seus irmãos concordaram.
   
— Você chegou ao fundo do poço! – a faca mais fundo do que o fundo do poço, adentrava minha carne, moía meus ossos, não havia espaço para compaixão na minha vida, somente dor, humilhação e medo, os que se aproximavam, torturavam-me, o fim, o fundo do poço...

— A dor nunca será curada para um pai que conhece a morte do filho, pois a ordem natural é a morte do pai e depois do filho, mas a mentira, inveja, corrupção estas não tem limites na natureza humana: Tomaram então a túnica de José, mataram um cabrito e a mergulharam no seu sangue. E mandaram-na levar ao seu pai com esta mensagem: “Eis o que encontramos: vê se não é, porventura, a túnica do teu filho.” Jacó reconheceu-a e exclamou: “É a túnica de meu filho! Uma fera o devorou! José foi estraçalhado!” E, rasgando as vestes, cobriu-se de um saco, e chorou o seu filho por muito tempo. Todos os seus filhos e filhas vieram consolá-lo, mas ele não aceitou nenhuma condolência: “É chorando, disse ele, que descerei para junto de meu filho na habitação dos mortos.” Foi assim que o seu pai o chorou.

— Você chegou ao fundo do poço! – a faísca, a centelha, o meu corpo percorre, não, não, não... O adormecido desperta... — Você deixou de ser homem! – não, por favor, me desculpe, não errarei novamente, não... A dor, punição, penitência... Ai, ai, ai!!!!..... Dói mãe pára não me bate!!!!!!!! – o som no ar ferindo... Machucando... Por quê? Por quê? A sinfonia maldita, eu e o vento, cedendo nossos corpos para tornarem-se os instrumentistas, o regente minha mãe...

— Por isso não deixem levar-se pela inveja, meus filhos, não corrompam o coração... – No poço que José e eu tínhamos sido lançados havia: musgo para torná-lo na escalada, intransponível. Era habitado por: cobras, escorpiões, lacraias, mosquitos dardejantes de veneno e peçonha, primeiro saiu José, mas não sem antes revelar-me como dali escapar e ele vendido foi, e muitas aventuras correu, enquanto eu...

— Você chegou ao fundo do poço! – a revelação vinha com a punição, penitência, sim, outrora ali tinha sido um poço, onde homens buscavam o essencial, sem o qual nenhum ser vivo, mantém-se, contudo deixado tinha de ser útil para tornar-se um problema, desagradável, sim como Abel, como José, como eu... Justiça não havia e por isso, José revelava-me que se ajudasse o poço ajudaria a mim, então cavei, cavei e cavei, procurei o fim e encontrei o início, a água jorrou feita fonte, uma nova nascente, um novo Jordão, batizava meu renascimento, ave fênix feito, assim agia, deixei de ser homem, virei mito, tornei-me lenda,

O Homem da Perna Torta...

Autor: Pierre Augusto Rafael


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