A ÉTICA DAS CIDADES EM TEMPOS NEOLIBERAIS



RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar criticamente através do filme “Gangues Urbanas” do cineasta holandês Theo Van Gogh, a distorção interpretativa da ética das cidades, promovida pela exacerbado desejo da liberdade de expressão, que nem sempre significa pensar crítica e dialeticamente os fenômenos observados, nem considerar a liberdade, a vida, e a cultura dos indivíduos da investigação. No filme, mostra um grupo de jovens delinqüentes, que acabam presos e condenados por 18 meses a um reformatório, onde irão aprender a resistir à tentação do retorno ao crime, uma estratégia pedagógica que elimina do educando a possibilidade crítica de avaliar o seu papel nas relações sócio-econômicas da realidade urbana onde está inserido.
PALAVRAS-CHAVE: neoliberalismo – liberdade de expressão – grupo – ética – pensamento crítico

O fim do império soviético e a queda do muro de Berlim levaram o historiador nipo-americano Francis Fukuyama a decretar o fim da história e das utopias revolucionárias, dando lugar às ações funcionais, ou multi-funcionais, fragmentadas pela teia, ou rede de inter-relações, distanciando a esperança das minorias por reformas macro que pudessem alterar suas realidades em nível micro e local.

E, o ambiente local, passa a ser a referência para as mudanças, "[...] produzindo um espírito de desalento, até de desespero, nas massas, e, a nível filosófico, quase o desaparecimento de um pensamento crítico[1]". (DUSSEL, 2000, p. 15).

O filme "Gangues Urbanas", produzido em 2004, pelo cineasta holandês Theo Van Gogh, coincidentemente bisneto do renomado pintor, faz uma análise da ação de um grupo de amigos que se dedicam a pequenos delitos. Todos são jovens desejosos de experiências. E, através de um irmão deles que integra uma quadrilha de ladrões mais experientes, mantêm contato com o líder que os estimula a assaltar um banco. Apanhados na ação, pois já estavam sendo observados pela polícia local, são condenados a passar 18 meses num reformatório especial o Glens Mills, onde cada um deverá aprender e desenvolver ao seu modo, maneiras de resistir e sobreviver às tentações e pressões do mundo exterior, pois o retorno às ruas implica uma preço muito alto para os reincidentes.

Esta pedagogia se aproxima da idéia do que Foucault (2000, p. 79) denomina de "regra da quantidade mínima", ou seja, "[...] um crime é cometido porque traz vantagens. Se à idéia do crime fosse ligada a idéia de uma desvantagem um pouco maior, ele deixaria de ser desejável".

Como se o comportamento criminoso, do tipo abordado no filme, ocorresse apenas pela idéia da aventura e não da falta de oportunidades sociais. Afinal o cineasta, considerado um marco da liberdade de expressão, na Europa, em especial na Holanda, não faz uma análise mais acurada da situação dos grupos, mas uma perigosa exposição étnica (dos 15 integrantes do elenco, 7 são de origem muçulmana) de imigrantes que vivem naquele país.

A visão que Theo Van Gogh transmite é de surgimento de grupamentos criminosos, a partir do contato com outros grupos, e, não da falta de oportunidades. Também não questiona o racismo holandês, ao contrário mostra uma pedagogia sócio-educativa pautada no auto-didatismo ético e na reflexão moral, como agentes motivadores para abandonar a prática criminosa. E, contraditoriamente expõe que aqueles que "optam" por não retornar ao crime são justamente os que tiveram uma oportunidade de trabalho.

Por outro lado, os clássicos estudos de Fustel (2006), ainda nos século XIX, sobre o surgimento das cidades, e, o arcabouço de leis e regras, que substituem a moral religiosa, para beneficiar um novo ordenamento social, estimulou o surgimento de grupos, oriundos das camadas populares. E ao se remeter à idade antiga, lembra o surgimento de novos grupamentos entre os gregos, "[...] algumas famílias tornaram-se consideradas; alguns nomes pouco a pouco foram adquirindo importância [...] a plebe deixava de ser massa confusa".

É esta ausência crítica, do neoliberalismo que vislumbra os grupos como fenômenos urbanos, associados à liberdade que significa diversidade, e o governo através de algumas instituições formais e outras não-governamentais preservam as possibilidades para que aqueles que não as possuem tenham meios, masnão deve ser assistencialista, cada indivíduo com o seu trabalho (e para isso ele deve ter as mesmas oportunidades), deve manter todas as suas necessidades, e assim desfrutar deuma vida plena e mais rica. (DUSSEL, 2000).

Oliven (2007), ao se referir às formas de sociabilidade no contexto urbano, lembra que "[...] atitudes individualistas e competitivas, afrouxamento dos laços familiares, secularização, etc." (p. 43), são formas reativas ao processo de adaptação e neste ambiente, o marginal "[...] assegura sua sobrevivência mediante o uso da reciprocidade". (p. 46).

Entretanto, a reciprocidade não é exclusividade entre marginais, masum componente ético das sociedades urbanas, notadamente entre os que buscam segurança e felicidade, notadamente na sociedade contemporânea, marcada pela globalização e o ideário neoliberal, que não conseguiu cumprir a promessa do iluminismo e do liberalismo da revolução francesa. (BAUMAN, 2003).

O neoliberalismo é a negação do estado de bem-estar social. O mais próximo da felicidade que o capitalismo pode oferecer às sociedades ocidentais industrializadas no hemisfério norte. No entanto, segundo Arendt (2007, p. 17),

[...] a condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência.

Eis assim a condição do gueto verdadeiro, como bem define Bauman (2003), homogêneo, formado pelas minorias (étnicas e imigrantes), ambiente sólido e seguro, mas aberto a outros de condição semelhante.

Assim, sem uma proposta sociológica mais ampla, o filme de Theo Van Gogh, mostra uma proposta pedagógica de sócio-educação, capaz de orientar, sem a compreensão crítica dos sujeitos envolvidos, para que haja sustentabilidade na proposta de autotransformação. É um ato, que não produz nem a emancipação, tampouco alibertação do indivíduo.

Os questionamentos de Theo Van Gogh, infelizmente se aproximam do ideário neoliberal de uma só cultura, uma só forma de viver, de se divertir e de pensar. Tanto que ele foi assassinado, após "denunciar" os "absurdos" da cultura muçulmana, e em um de seus artigos chamou Maomé de "pedófilo".

O conhecimento transmitido pela arte, como o das ciências, tem a função de "romper com as aparências, para chegar ao profundo do ser" (Barbosa, 1996, p. 139), e, o que Theo Van Gogh ignorou foi o fato de que "[...] muitos imigrantes e refugiados sem documento que chegam ao continente europeu vêem da África rural, da Turquia e sul da Ásia. Eles estão mudando a face da Europa Ocidental" . E, a postura de Van Gogh, que acreditava poder insultar as pessoas por ser um cidadão livre (ROVERS), além de ser morto por esta postura, expandiu a política xenófoba da Europa, em especial do seu país natal, a Holanda, que "[...] entre outras coisas, está prometendo expulsar mais de 26 mil refugiados que obtiveram asilo com base em informações falsas. Essas pessoas receberam asilo por causa de suas alegações de perseguição religiosa, política ou étnica em seu país natal". (NICKERSON, 2006).

A liberdade de expressão, defendida pelo neoliberalismo, além de conter um leque significativo de violação às culturas de outros povos, por pretender a universalização do pensamento e das ações humanas, acaba por desconhecer no outro a existência de uma ética própria.

E, como afiança Dussel (2000), o neoliberalismo, como em nenhum outro momento da história da humanidade, prega a ética da minoria hegemônica, graças aos meios de comunicação, que em nome da liberdade de expressão, condena culturas sem esmiuçar os ideais ali contidos e legitima "verdades" e "realidades" desmontando-as ao seu bel prazer, e, apontando soluções velhas (como o método do Glens Mills), como inovações e possibilidades, para a diversidade.

A ética da cidade, não pode se prender exclusivamente à diversidade, como um fim em si mesmo, mas explicar a dialética contraditória que constitui este sistema performativo, denominado de grupos, de maneira auto-referente, como um instrumento de negação da própria vida na cidade, segregando, destruindo, negando e empobrecendo a tantos.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hana. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2007.

BARBOSA, Elyana. Gaston Bachelard – o arauto da pós-modernidade. Salvador: EDUFBA, 1996.

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade – a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000.

FOUCAULT, Michel. Vigiar a punir – história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2001.

MURCHO, Desiderio. Filosofia e pensamento crítico. Disponível no site: http://www.criticanarede.com/ed12.html.

NICKERSON,Colin. Europa muda as leis de imigração. 28.05.2006. Disponível no site http://www.italiaoggi.com.br/migrazioni/noticias/migra_20060528a.htm.

OLIVEN, Ruben George. A antropologia de grupos urbanos. Petrópolis: Vozes, 2007.

ROVERS, Ronald. O silenciamento de Theo van Gogh. Disponível no site http://translate.google.com.br/translate?hl=pt-BR&langpair=en|pt&u=http://dir.salon.com/story/news/feature/2004/11/24/vangogh/&prev=/translate_s%3Fhl%3Dpt.




Autor: JOSÉ TADEU NERIS MENDES


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