Dança: Configurações, complexidades e alguns paradoxos



A Dança é puramente Arte. Parece simples esta definição. Entretanto as diversas interfaces entre o estado artístico da Dança e o seu produto, a obra, potencializam sua complexidade, que muitas vezes passa despercebida diante de sua transcendência.

Configurações intrínsecas do estado artístico da Dança como a memória, a história, os parâmetros biológicos, as opções estéticas, o diálogo com outras expressões artísticas, a poesia, os processos de criação, os suportes tecnológicos, os valores humanos, o universo pedagógico e a profissionalização compõem essa complexa rede de artefatos que conferem à Dança sua legitimidade como vasta área de investigação e produção de conhecimento.

Não existe outro meio de compreender a Dança senão considerando essa complexidade. De acordo com Edgar Morin, estudioso francês, "a simplificação não exprime a unidade e a diversidade presentes no todo". A simplificação aponta a perda da visão geral das coisas, induz a desapropriação dos verdadeiros valores e priva a sociedade de usufruir da diversidade cultural que ela própria constrói ou destrói.

Os fazeres da "Dança" tanto no nível do ensino/aprendizagem, quanto na concepção e produção da obra artística, são processos carregados de imponderável complexidade. Fenômenos tais, que envolvem uma série de aspectos relacionados à identidade humana, como as culturas, as classes sociais e econômicas, as políticas públicas que visam o desenvolvimento social e as emoções...

A complexidade não deve ser entendida como dificuldade, mas sim, como valoração dos processos inerentes aos "fazeres" da Dança. A complexidade é parceira dos processos e ao mesmo tempo que aponta caminhos, exalta as dificuldades. Os processos de ensino da Dança e de concepção da obra coreográfica perpassam por inúmeras dificuldades que devem ser enfrentadas de maneira não ingênua. Devem ser enfrentadas por profissionais preparados para transmitir seu conhecimento e engajados com os resultados e com o sentido do seu trabalho.

De acordo com Antônio Nóvoa, doutor em Educação na Universidade de Lisboa, é essencial neste novo milênio a valorização do conhecimento profissional. Enquanto no século XX imperou a intensidade do capital, afirma o intelectual colombiano Bernardo Toro, o século XXI será marcado pelo poder do conhecimento. Os autênticos "fazeres" da Dança, comprometidos com essa nova ordem, demandam profissionais qualificados, capazes de articular teoria e prática em consonância com o conteúdo tácito das configurações artísticas da Dança. A compreensão dos significados desses elementos configurativos precisa ser incorporada pelos aprendizes/bailarinos e esse processo requer professores e criadores conectados com o contexto sócio-cultural contemporâneo. Professores e criadores cientes da gravidade das informações obsoletas, (que decorrem "da velocidade com que o avanço tecnológico interfere na vida e no trabalho de todos") e cientes das "demandas do mercado profissional que induzem-nos a uma requalificação permanente para nos manter ativos – em estado permanente de aprendizado!", como afirma o pesquisador Nelson Pretto, do Grupo de Pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologia da Universidade Federal da Bahia.

A complexidade que envolve as atividades relacionadas com a Dança no ensino-aprendizagem e na concepção e produção do evento artístico, estimula a sensibilidade e o desejo do artista, e aí esboça a intencionalidade que personaliza a obra de arte. De acordo com Jarbas Novelino Barato, professor do SENAC SP, "a obra assim não é apenas um produto que resulta de processos de produção. Ela é um alvo que mobiliza o sujeito em busca da satisfação de certa necessidade. (...) Passa por efetivação de intenções, julgamentos, valores." Todo o longo e necessário percurso que promove a formação técnica e artística do profissional da Dança, está carregado de intencionalidades por meio dos saberes intrínsecos à teoria e à prática e a busca do sentido na expressão artística.

Professores e criadores de Dança devem também, estar habilitados para manejar a teoria e a prática simultaneamente, sem receio de adentrar suas misteriosas complexidades. A teoria e a prática devem ser aplicadas e relacionadas concomitantemente durante todo e qualquer processo. Mobilizar a interlocução entre teoria e prática só é possível com a experiência. A experiência permite essa transitividade, sem sugerir subordinação de uma instância sobre outra. Tudo isso diz respeito à tão famigerada experiência profissional. Não aquela experiência enganadora que é mera repetição, mas a experiência construída no percurso do prazer pelo ofício, pela reflexão, pela pesquisa e pelo amadurecimento profissional.

O pedagogo e sociólogo americano, John Dewey criticava a questão da experiência indagando se um professor que tem 10 anos de experiência, tem mesmo 10 anos de experiência ou tem um ano de experiência repetido 10 vezes.

Segundo Antônio Nóvoa, "a experiência de cada um só se transforma em conhecimento através da análise sistemática das práticas, (...) a formação de professores é algo, que se estabelece num continuum". A experiência só se constrói com a humildade de aprender continuamente e a destreza do professor para aplicar o conhecimento.

Esse é o professor que os alunos, os aprendizes, os futuros professores e intérpretes precisam. Esse é o professor que crianças, jovens ou adultos merecem ter, independentemente de suas intenções e objetivos na Dança. Independentemente do lugar onde o ensino acontece, seja no espaço acadêmico, nos cursos livres ou nos projetos sociais, as necessidades e responsabilidades humanas são as mesmas.

Além da formação, da capacidade, da experiência, é imprescindível aos orquestradores da Dança estarem antenados à contemporaneidade e ao fascínio que ela exerce sobre as pessoas, mas é preciso tambémpermanecerem atentos às suas armadilhas e seus paradoxos.

Paradoxos contemporâneos que têm contribuído para dilatar a complexidade das configurações artísticas da Dança, como o acelerado crescimento do número de artistas da dança no Brasil nos últimos 20 anos. Considerando as reduzidas oportunidades no mercado de trabalho e as poucas produções artísticas, é um crescimento muito desequilibrado que reforça a informalidade profissional. Será que todos estes artistas estão bem capacitados para exercer as atividades para as quais se propõem? Como foram preparados profissionalmente? São algumas questões entre tantas outras que precisam ser discutidas pelos orquestradores da Dança comprometidos com o desenvolvimento social e imediatamente comprometidos com a adequação e constituição de políticas públicas que correspondam às realidades brasileiras e engrandeçam os "fazeres" da Dança em todos os níveis.

Continuando a transitar pelos paradoxos... Nos próximos dois anos, Belo Horizonte receberá dois cursos superiores de dança que evidentemente redimensionarão os parâmetros dos "fazeres" da Dança em Minas Gerais. O mercado de trabalho que se prepare para receber tantos novos profissionais. Sim! Porque o mercado não está preparado para isto. Gustavo Bitencourt, colunista da revista eletrônica idança.net, comenta que, de modo geral, o profissional da dança no Brasilnão consegue alcançar sua independência fazendo dança e pergunta ironicamente: -"Será que eu vou ter que ficar fazendo mil trabalhinhos e passar por todos esses períodos de estiagem entre projetos até morrer?" Se não é desesperador é no mínimo, complexo. Ter certeza sobre a necessidade da qualificação e formação acadêmica do profissional da Dança, ter certeza sobre a demanda por esses cursos e paradoxalmente ter certeza sobre as incertezas que permeiam o futuro destes futuros profissionais.

Os diálogos sobre as configurações artísticas da Dança encontraram espaço nos últimos anos, em Belo Horizonte, ao sediar fóruns, seminários e congressos de Dança envolvendo artistas e pesquisadores de todo o Brasil, além de efetivar o FID, Festival Internacional de Dança de caráter epistemológico e "descapitalizador de hierarquias".

Discutir as configurações artísticas da Dança é imprescindível, mas o momento atual exige uma análise urgente sobre o mercado de trabalho na Dança.

Resta saber em que parâmetros serão estabelecidas essas discussões. No parâmetro da indústria cultural, no parâmetro das políticas culturais ou nos parâmetros da Arte pela Arte?

As transformações sócio-culturais-artísticas da Dança e suas interfaces serão ainda mais velozes em Minas e é preciso promover inovações verdadeiras, comprometidas com a não banalização da arte, conectadas com o estado artístico da Dança e compromissadas com a criação de um sentido de vida.

Belkiss Amorim

É Coreógrafa e Professora de Dança
Mestranda em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local, UNA, BH
Graduada em Artes Plásticas, UFMG
Pós-graduada em Docência do Ensino Superior, PUC Minas
Pós-graduada em Folclore e Cultura Popular, Newton Paiva
Capacitação em Pedagogia do Movimento para o Ensino da Dança, UFMG


Autor: Belkiss Amorim


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