Mulher em Situação de Rua: Merece um Olhar Especial



AO RELENTO

Na cidade onde morava

Lá no interior

A rua servia de endereço

Para identificar nossa casa

Hoje vivendo sozinho

Aqui na capital

A rua é onde moro

O endereço

Lugar nenhum

Sebastião Nicomedes (ex-morador de rua)

RESUMO

A geração da pobreza produzida pela exploração do capital tem aumentado na mesma proporção que a riqueza dos capitalistas. É uma condição para a sobrevivência da burguesia, a pobreza dos trabalhadores. Com isso, podemos afirmar que a mulher faz parte desta massa de trabalhadores e a discussão de gênero torna-se pertinente ao assunto, tendo como contraponto a desvalorização da mulher e adversidades pela fragilidade. Nesse sentido, o trabalho traz reflexões acerca do tema, considerando a amplitude e riqueza do mesmo, com entendimento de que apenas contém aproximações da temática, baseada em autores que utilizam do materialismo dialético histórico para construções de suas obras.

Palavras-chave: População em Situação de Rua. Mulher. Desigualdade Social. Questão Social. Trabalho.

INTRODUÇÃO

Contextualizar o sujeito na expressão mais cruel da questão social, que é sobreviver na rua, traz vários outros assuntos interligados a este tema, pois esse é um problema de ordem estrutural e não um fenômeno isolado.

O modelo econômico brasileiro é excludente. Numa maneira subjetiva excluí da sociedade o sujeito menos abastado, levando-o ao processo de espoliação constante, caracterizado pela má distribuição de renda no país. Com isso, o surgimento das políticas públicas de acesso universal para todos os sujeitos tentou de alguma maneira diminuir a forte desigualdade presente na sociedade e amenizar a má distribuição de renda. Não sendo suficiente, as políticas sociais focalistas foram desenvolvidas para que o excluído do pobre pudesse ser atendido em suas necessidades básicas.

Para tanto, a manutenção do capitalismo incluí massas na condição de excluídos ao restringir o acesso ao mercado de trabalho. Conseqüentemente excluí dos outros setores sociais.

Objetivamente o trabalho traz um contexto histórico das contradições do capital, gerando um segmento populacional que vive no limite máximo da pobreza. Apontamos então, a relação de gênero vivida nas ruas, as dificuldades que as mulheres enfrentam cotidianamente não apenas com o preconceito da exclusão da sociedade, mas também é desvalorizada como mulher.

O método utilizado será o método dialético, que se opõe à corrente positivista, buscando ver as coisas em constante fluxo e transformação. Seu foco é o processo. Dentro dele tem o entendimento de que a sociedade constrói o homem e, ao mesmo tempo é por ele construída. Conceitos como totalidade, contradição, mediação, superação lhe são próprios. Esse método não tem por sua natureza isolar um fenômeno, estuda-o dentro de um contexto, que configura a totalidade. Nessa totalidade o pesquisador observa que tudo, de alguma forma, se relaciona atraído por uma força e que ao mesmo tempo, contraditoriamente, se repelem. É a contradição que permite a superação de determinada situação, ou seja, a mudança.

Tratar deste tema torna-se extremamente delicado, pois trata-se de uma população destituída de seus direitos básicos que muitas vezes perdeu seus referenciais, tornando mais difícil a reivindicação pela melhoria da qualidade de vida.

Nesse sentido explanaremos alguns aspectos para, que com clareza, possam entender o cotidiano, as necessidades e os direitos dessa população. Destacando que o entendimento de direito procede de uma necessidade. Portanto, somente após identificar as necessidades dos sujeitos será possível garantir os direitos para suprimento dessas necessidades.

PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA: Um Histórico da Questão Social

Morador de rua, catador, mendigo, trecheiro, albergado, sofredor de rua e muitos outros nomes de que são denominados, cada qual com sua história de vida, existem diversos motivos para se encontrar nessa situação. Não existe uma só resposta. O fato de viver na rua não torna as pessoas iguais, pois cada um tem seu modo diferenciado de se relacionar com a rua.

Existem alguns estudos acerca do tema "população de rua", como os da Cleisa[1] por exemplo, que muito contribuem para este campo. Pesquisa-se o perfil desta população sem medir a dimensão de quantos sãos. Porém, nesse trabalho estamos interessados em saber quem é esse sujeito histórico que mora nas ruas e nos aproximar de alguns elementos de seu cotidiano.

Hoje se encontram no limite máximo das expressões da questão social, sem moradia e sem emprego. Não são atendidos em seus direitos mínimos, tentando assim, sua sobrevivência, se adaptando a um novo modo de vida (a rua), mudando sua cultura e costumes para então de alguma maneira criar estratégias para encarar essa realidade de pobreza, exclusão, preconceito, violência e muitas outras adversidades.

São sujeitos que visivelmente ocupam os espaços públicos das cidades sendo subjugados em sua aparência e descriminados por sua própria classe: a classe trabalhadora da qual fazem parte. "Não há dúvida também de que a classe trabalhadora brasileira vem sofrendo um processo crescente de empobrecimento na última década, o que amplia significativamente o contingente social que vive em situação de miséria" (LOPES, 1990 apud VIEIRA, et. al. 1992, p. 17).

Contextualizar historicamente a pobreza é de extrema importância para entendermos o surgimento da população em situação de rua. Sendo assim, explanaremos alguns pontos aqui, informando de antemão que não são suficientes para a grandeza do assunto.

O desabrigamento de alguma maneira sempre existiu na história da humanidade, mas ao longo da história, por conta das mudanças da organização da sociedade e dos processos de transformações do mundo do trabalho, a questão do desabrigo toma uma proporção maior.

No século XIX, Marx descreveu,

Os expulsos pela dissolução dos séqüitos feudais e pela intermitente e violenta expropriação da base fundiária, esse proletariado livre como os pássaros, não podia ser absorvido pela manufatura nascente com a mesma velocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram bruscamente arrancados de seu modo costumeiro de vida não conseguiam enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condição. Eles se converteram em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição e na maioria dos casos por força das circunstâncias. Daí ter surgido em toda a Europa ocidental, no final do século XV e durante todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os ancestrais da atual classe trabalhadora foram imediatamente punidos pela transformação que lhes foi imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava como criminosos 'voluntários' e supunha que dependia de sua boa vontade seguir trabalhando nas antigas condições, que já não existiam. , (1988, p. 265)

Em 1572 estabeleceu-se uma nova lei que:

Esmoleiros sem licença e com mais de 14 anos de idade devem ser duramente açoitados e terão a orelha esquerda marcada a ferro, caso ninguém os queira tomar a serviço por 2 anos; em caso de reincidência, se com mais de 18 anos, devem ser executados, caso ninguém os queira tomar a serviço por 2 anos; numa terceira incidência, serão executados sem perdão, como traidores do Estado. (Ibid, 1988, p. 266)

Na era pré-industrial, o meio de sobrevivência de um grande número de pessoas era a mendicância e, muitas vezes, esse ato se juntava ao roubo e a prostituição.

Nessa época existiam duas ideologias centrais: 1) era importante oferecer hospitalidade aos necessitados; 2) Havia uma tendência de se idealizar a pobreza, como forma de santidade.

Atualmente grande parte da população que vive nas ruas exerce alguma atividade remunerada e essas atividades são das mais variadas possíveis, sendo que, existem atividades mais comuns entre esta população.

São trabalhadores que, no final de uma dura jornada de trabalho, não tem um teto para dormir e por esse motivo sobrevivem entre as calçadas. Ter um trabalho formal é quase utópico para esse segmento, recorrendo assim, aos trabalhos informais disponíveis no mercado.

Morando nas ruas os sujeitos desvendam as várias formas de sustento. Muitos acabam também se acostumando com outras formas de sobrevivência que temos como exemplo: pedir, roubar, traficar, prostituir e etc.

Estudos apontam que grande parte desta população possuí um trabalho remunerado que é a renda que utilizam para a sua sobrevivência diária.

O bico (trabalho temporário, pequeno serviço), quase sempre se torna a alternativa de conseguir renda, mesmo que temporariamente. É a forma que encontram de se manter. Na falta dessas alternativas e o desespero de não conseguir sobreviver, muitas vezes, alguns são levados a se submeterem ao mundo das violências e das drogas e daí viver nas ruas se torna um conflito constante.

Antunes em sua obra Adeus ao Trabalho?, traz a categoria trabalho como a centralidade da sociedade contemporânea.

Ainda que presenciando uma redução quantitativa (com repercussões qualitativas) no mundo produtivo, o trabalho abstrato cumpre papel decisivo na criação de valores de troca. As mercadorias geradas do capital resultam da atividade (manual e/ou intelectual) que decorre do trabalho humano em interação com os meios de produção. (2003, p. 83)

Entende-se aqui a importância do trabalho para o ser social, sendo que na atual sociedade o trabalho produz o valor individualizado de cada ser e este de uma forma exploratória é medida e demonstrada através do denominado salário[2].

Na atual conjuntura em que o trabalho que demanda força humana tem diminuído, agrava-se a questão da centralidade da categoria na vida social.

Em uma sociedade em que a lógica do capital predomina, a tecnologia ganha espaço trazendo maior lucratividade aos detentores dos meios e modos de produção e reserva-se maior quantidade de trabalhadores, acarretando assim a desempregabilidade na sociedade.

Com isso, entra em cena o crescimento da desigualdade social, sendo que segue-se a lógica que, com a entrada da tecnologia, os capitalistas acumulam maior quantidade de riqueza e os trabalhadores que por sua vez são substituídos, entram em um sistema de exclusão e por conseqüência ficam cada vez mais pobres.

A pobreza leva os sujeitos a viverem numa forma abaixo das condições mínimas para a sobrevivência com dignidade. Vale ressaltar "[...] que a pobreza é uma face do descarte de mão de obra barata [...] uma população sobrante, gente que tornou não empregável, parcelas crescentes de trabalhadores que não encontram um lugar reconhecido na sociedade, que transitam à margem do trabalho e das formas de troca socialmente reconhecidas (TELLES, 1998, apud, YAZBEK, 2001, p. 35).

O trabalho é uma necessidade social, uma relação de condição da sobrevivência humana, algo que independe da forma que a sociedade é conduzida, é a busca de uma vida cheia de sentido.

No Brasil a segmentação da população em situação de rua é muito heterogêneo. Não podemos encontrar apenas uma explicação para o sujeito viver nas ruas, pois deve-se a fatores estruturais, existindo grandes variações entre a população em situação de rua, pois morar na rua não os tornam sujeitos iguais. Nas ruas existem sujeitos com diferentes históricos em situações variadas e podemos identificar algumas diferenças, segundo estudos da Cleisa[3]:

·Ser da Rua – Permanentemente;

·Estar na Rua – Recentemente;

·Ficar na Rua – Circunstancialmente.

A rua pode ter sentidos diferentes para os sujeitos que nelas vivem. Por motivos diversos existem os que dormem nas ruas circunstancialmente, por falta de recursos financeiros, por falta de trabalho alojam-se nas calçadas, viadutos, ou seja, nos espaços públicos que os possibilitem ter um descanso do longo dia ou noite. Também existem os que moram nas ruas e criam uma relação social naquele meio, que se apropria da rua como seu território, mesmo nesse contexto desigual, cria-se uma forma de valorizar o local onde vive, idealizando ali seus objetivos, pois é o que realmente a realidade lhe oferece.

É neste sentido que a referência territorial pode significar não somente as expressões mais imediatas e concretas das realidades vividas, como também de conter elementos aparentemente invisíveis, mais significativos, que dizem respeito aos valores, sentimentos, perspectivas, que rodeiam as vidas das populações. (KOGA, 2003, p. 53)

O determinante dessas dimensões identificadas muitas vezes é o tempo de rua, que naturalmente leva a uma maior inserção neste mundo, trazendo maior estabilidade a condição de morador.

Ficar na rua reflete um estado de precariedade de quem, além de estar sem recursos para pagar pensão, não consegue vaga em um albergue. Pode ser fruto do desemprego, especialmente na construção civil, quando, junto com o trabalho, se perde a moradia no alojamento da obra.

Estar na rua expressa a situação daqueles que, desalentados, adotam a rua como local de pernoite e já não a consideram tão ameaçadora. Começam a estabelecer relações com pessoas da rua e conhecer novas alternativas de sobrevivência.

Ser da rua. [...] A rua torna-se espaço de moradia de forma praticamente definitiva, ainda que ocasionalmente possa haver alternâncias com outros lugares. (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p. 93-95)

A situação mais delicada é a do morador que já criou seu espaço nas ruas por perder as expectativas de arrumar um trabalho remunerado, pois já está, de uma forma geral, exaurido pelas condições precárias de vida, pela má alimentação, péssimas condições de higiene. Estão sujeitos a todos os tipos de violências, segundo informações de Edison Barbieri[4]. Sejam elas de seus próprios companheiros de rua com quem compartilham o mesmo sofrimento, seja por parte dos policiais que muitas vezes utiliza-se de sua autoridade e abusa de seu poder, ou até mesmo de violência no trânsito. Ressaltando que, a própria condição de vida a que estão submetidos é a primeira forma de violência e com maior descasualidade. Essa violência fere os seus direitos como sujeitos de uma sociedade excludente que segue apenas a lógica do capital, deixando a margem milhões de pessoas na subalternidade[5].

Estas são algumas das diferenciações das três dimensões identificadas nos estudos realizados por profissionais da Prefeitura de São Paulo e demais ONG's. É notório que cada um possui suas especificidades, como também suas igualdades. Essas mudanças de "Ficar", "Estar" ou "Ser" da rua, não acontecem de repente, estão muito ligadas ao tempo que o sujeito se identifica na rua, o que, gradualmente, leva-o ao rompimento com o seu modo de vida anterior.

Apenas 5% da população que mora nas ruas estão com suas famílias[6]. A outra parcela que constituem disparadamente a maior parte da população de rua está "sozinha", sem a família por perto.

Apesar de muitos possuírem familiares por perto, às vezes, dentro da mesma cidade, poucos são os que mantêm contatos constantes.

Isso se deve ao fato de que o não encontro de abrigo, acolhimento, solidariedade na família, cause um rompimento nesse nível.

No caso de crianças, adolescentes e jovens, é muito comum a saída de casa por maus-tratos por parte de familiares próximos.

Muitos se autoculpabilizam pelo rompimento familiar, independente dos motivos e, muitas vezes, escondem a situação em que vivem da família, pois sentem vergonha e não sabem qual é a estratégia de admitir o "fracasso pessoal".

O tempo é fator processual deste rompimento, sendo que, quanto mais adaptados estão na rua criando seu novo modo de vida, suas estratégias de sobrevivência, o "esquecimento" do vínculo familiar torna-se mais real e a uma nova trajetória de vida recomeça num novo âmbito, onde é necessário ter Resiliência[7].

Existe uma pequena parcela da população em situação de rua que já nasceram nela Em sua maior parte são crianças, adolescentes e os jovens que construíram sua história nas ruas.

A outra parcela, considerada significativa, em sua maioria tem um histórico anterior à ida para a rua Uma trajetória de vida que se rompeu iniciando uma nova trajetória.

Para esses existe a dificuldade de adaptação. É um novo olhar que se constituí. Significa romper com as formas socialmente aceitas de vida e enfrentar o estigma social, a vergonha, o medo.

O sujeito que antes tinha o trabalho em seu cotidiano, na sua família e seus compromissos financeiros, nessa situação, ele acaba por eliminar essa constante na sua vida. Ele não descarta o trabalho em si, mas elimina de sua vida o compromisso cotidiano que antes vivera.

O cotidiano está totalmente ligado a categoria trabalho, que é de onde parte a centralidade do ser social,

Tratando-se de cotidiano, trata-se, portanto, de caracterizar a sociedade em que vivemos, que gera a cotidianidade (e a modernidade). Trata-se de defini-la, de definir suas transformações e suas perspectivas, retendo, entre os fatos aparentes insignificantes, alguma coisa de essencial, e ordenando os fatos. (LEFEBVRE, 1991, p. 35)

Lefebvre (1991), em sua obra, explana sobre a cotidianidade trazendo vários aspectos importantes para o entendimento do sujeito enquanto participante dessa sociedade e das várias transformações transcorridas sobre ela em diferentes épocas. Aborda também os vários modos que o cotidiano é entendido e as diferentes críticas sobre o assunto.

O cotidiano muitas vezes é entendido como algo simplório, o qual não conseguimos enxergar a importância e os impactos na nossa vida.

Muitas vezes, o que leva um indivíduo buscar sua sobrevivência na rua são as imposições cotidianas que pesam sobre ele trazendo o desejo de rompimento com esse cotidiano exaustivo.

É outro o tempo da rua, ele não está controlado pelo relógio. É possível passar horas assistindo a cidade acontecer. Não há pressa no andar lento e pausado do homem da rua. (DIAS, 1990, apud, VIEIRA, et. al. 1992, p. 100). Quase nada é permanente, a não ser a procura cotidiana da sobrevivência, o que torna sua vida extremamente fragmentada. (VIEIRA, BEZERRA E ROSA, 1992, p. 22)

Outro fator nevrálgico da situação de viver na rua é a violência, uma das expressões da questão social, que atinge essa população. "A violência da pobreza é parte de nossa experiência diária. Os impactos destrutivos das transformações em andamento no capitalismo contemporâneo vão deixando marcas sobre a população empobrecida" [...] (YAZBEK, 2001, p. 35).

A violência, em suas várias formas de expressão, tem feito parte da realidade urbana atual. Todos nós estamos sujeitos a algum tipo de violência. Em conseqüência do medo que temos acabamos de alguma forma tentando nos proteger, utilizamos algumas estratégias para amenizar o medo que temos de sofrer quaisquer tipos de violência e em nossas casas nos sentimos mais seguros.

As diversas formas de violência surgem de todas as partes, trazendo medo para aqueles que fazem da rua seu lugar de convivência e moradia, agravando a luta pela sobrevivência e a extrema violação de direitos a que são submetidos. Existe o medo dos policiais, pois eles exercem um tipo de violência entre os moradores de rua que é o abuso da força que lhe é delegada. Tem-se medo das pessoas que passam ao seu lado, pois nunca os olham e quando os fazem é com discriminação e preconceito. Tem-se medo daquele que é traficante, assassino, que às vezes moram na mesma calçada e às vezes moram em um hotel luxuoso. Tem-se medo de nunca sair desta situação, de contar seus últimos dias ali, naquela calçada, naquele viaduto ou naquela praça.

As dificuldades de sobrevivência nas ruas os levam a sofrer o primeiro tipo de violência, que é morar em um espaço público sem as mínimas condições de habitabilidade e moradia digna. Falta de privacidade, fome, frio, sem um teto para viver, e nada em que possamos chamar de qualidade de vida, expressando um limite máximo da pobreza e precariedade.

Estão à mercê também de doenças, fome, agressões (que parte de uma ação da própria sociedade ou de uma autoridade), ou até mesmo com o descaso do poder público com a falta de criação e efetivação das Políticas Públicas.

No Jornal O Trecheiro em um artigo Vida no Trecho, um morador de rua fala sobre a violência na rua, destacando o roubo do que ele quase não tem para a partir daí, não ter mais nada.

Fui roubado várias vezes na rua. Já não tinha quase nada e fiquei sem nada realmente. Tinha uma bicicleta, roubaram. Depois ganhei outra, roubaram. Agora roubaram minha pochete. Mas o povo da rua se ajuda. Já ajudei muita gente caída na rua e outro dia foi minha vez: passei mal e me levaram para o hospital. (O Trecheiro, 2002, p.2)

Os moradores de rua sofrem violência de todas as partes e em todas as segmentações desse fenômeno ocorrido na sociedade. Mas torna-se agravante quando na cidade existe a política de limpeza no município, que implica em "limpar os moradores de rua" dos espaços públicos. Sem nenhuma alternativa, apenas funcionários da Guarda Municipal Civil expulsam os moradores dos locais que dormem e tomam seus pertences, obrigando-os a se mudarem de local e ir atrás novamente de roupas e cobertas para passarem a noite. Muitas cidades têm essa política de higienização, acreditando que assim, estão "organizando" o município, mais limpo e mais belo, tentam esconder a pobreza e a sociedade agradece.

UM OLHAR DIFERENCIADO PARA A MULHER EM SITUAÇÃO DE RUA

Após trazer aspectos gerais sobre a População em Situação de Rua, gostaríamos de referenciar as Mulheres em Situação de Rua, iniciando com depoimento.

Ortiz (2000), conta sua trajetória de vida. Explica bem o porquê saiu de casa para morar nas ruas, a sensação que tinha de liberdade e o fato motivador e determinante foi sua família, a ausência do pai e os maus-tratos da mãe juntamente com seu companheiro.

Só sei que hoje família para mim sou eu e Deus. Porque não sei o que é amor de família, só o amor próprio. Se eu não me amasse, ainda estaria naquela vida. Não é egoísmo da minha parte pensar em mim, mas acontece que minha família nunca passou pra mim o afeto, segurança e amor. Em todo aquele tempo que passei na rua, fui perdendo o pouco desses sentimentos que eu tinha. (2000, p. 27)

Em sua obra fica bem explícito a importância que a família tem para ela e quais eram os sentimentos e pensamentos que ela tinha sobre o tema. Os sonhos, desejos, expectativas e importância que colocava em relação à família que gostaria de ter. Essa decepção a levou a sair de casa, com seus oito anos já iniciou esse processo de ida para as ruas e essa trajetória durou até seus 20 anos, quando fez o processo inverso, de saída das ruas, através de projetos sociais incentivadores.

A rua deixa de ser o contraponto negativo da casa entendida como proteção e cooperação, passando a ser percebida como espaço possível de sobrevivência, como lugar de trabalho e moradia. Trata-se, na verdade, de um processo de perdas, por um lado, e de novas aquisições, por outro. (VIEIRA, BEZERRA E ROSA, 1992, p. 98)

Trazer a questão de gênero para essa discussão tem sua peculiaridade, pois estamos contextualizando uma forma diferente de sobreviver, porém, o papel feminino nas ruas, não se diferencia totalmente da realidade de muitas mulheres que atualmente estão inclusas na sociedade.

Segundo TIENE (2004), as mulheres em situação de rua nunca estão sozinhas, procuram conviver em grupos como forma de proteção, muitas procuram companheiros para se sentirem seguras, sendo muitas vezes submetidas sexualmente para garantir a segurança de outros. Viver na rua, para as mulheres é também construir essas relações necessárias ao seu cotidiano.

É fato que quantitativamente as mulheres são minoria nas ruas, porém, qual a realidade dessas mulheres em situação de rua e o que agrava nessa relação de gênero?

A violência surge de todos os lados e está muito presente na vida dessas mulheres. É sabido através de relatos, que muitas sofrem abusos sexuais constantes desde criança, apanham com freqüência, muitas vezes do próprio parceiro que a protege. "As mulheres mantêm a submissão sexual em troca de proteção e pagam muito caro por isso. Seus corpos revelam traços de "utilidade-obediencia"[...]". TIENE, 2004, p. 156.

Algumas mulheres encontram alternativas para amenizar a situação do abuso contra elas. É comum encontrar mulheres vestidas com trajes masculinos, com o andar e voz menos femininos possíveis, tornando uma forma de proteção, um disfarce natural, inclusive para crianças que são as vítimas com menor força para os agressores.

Ortiz (2001) relata a dificuldade de conviver nas ruas e a importância de criar as relações de proteção. "Eu tinha que ficar esperta na rua, mas todo dia eu apanhava ou as meninas tomavam meu dinheiro. Nesse tempo ninguém me protegia. Era muito difícil na rua. Pra aprender tem que apanhar pra caramba." p. 68.

Os grupos constituídos nas ruas em sua normalidade têm uma há duas mulheres a qual tem seu papel dentro desse grupo. Em geral assume os afazeres domésticos, bem como a organização do espaço ocupado pelo grupo.

O preconceito contra esse segmento é fortíssimo e os moradores de rua são sujeitos propensos a se deparar com ele cotidianamente e com as mulheres em situação de rua o preconceito torna-se mais agravante, não somente por morarem nas ruas, mas também por existir um histórico em nossa sociedade de desvalorização da mulher. O confronto entre gênero apresenta-se bastante presente.

Muitas dessas mulheres que se encontram nessa situação, deixaram seus filhos, refletindo em suas vidas através de lembranças e culpa. A família é muito presente na memória dessas mulheres e segundo TIENE (2004), as mães são as figuras mais citadas por esta população.

A obra de TIENE (2004) traz a importância dos cuidados pessoais para essas mulheres, o que aponta uma pequena porcentagem de auto-estima. Combinar roupas, usar maquiagens e perfumes faz parte do cotidiano de muitas mulheres que atualmente moram na rua e conseguem viabilizar através das instituições que disponibilizam o espaço para cuidados pessoais, lavagem de roupa e refeições.

Um aspecto importante que não poderia deixar de ser citado é a religiosidade. É muito presente na vida dessa população, a crença como modo de sobreviver/suportar as adversidades, sendo que muitos já fizeram parte de alguma religião.

Resgatando uma experiência pessoal, tive a oportunidade de vivenciar esse contexto religioso com a população em situação de rua e o que pude presenciar é uma forte alegria em cantar e em expressar seu amor a quem eles acreditam. Precisam dessa força para sobreviver a cada minuto. Nesse sentido, as mulheres são mais emotivas, possuindo maior facilidade de expressar os sentimentos que carregam consigo.

Diariamente as mulheres sofrem com a superioridade masculina, as relações de gênero são presentes em todos os momentos e atividades realizadas. As prioridades são diferenciadas, enquanto para a mulher o importante é o amor, aparentemente para o homem o mais importante é o sexo e as mulheres não aceitam. Todas têm seu valor individual, e cada uma delas criam suas próprias estratégias de como manter a boa relação com o gênero mais presente nas ruas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Morar na rua não significa simplesmente estar submetido às precárias condições de vida, enfrentando todas as expressões da questão social embutidas em nossa sociedade, ou seja, um sujeito desprovido de seus direitos básicos.

Ser morador de rua significa também perder os referênciais da vida social que possuía anteriormente para adquirir um novo modo de vida, desenvolvendo formas específicas de sobreviver. A rua começa a ser o espaço de referência, criando as suas próprias relações e a identificação com esse novo modo de vida, pois encontram pessoas no igual limite de vulnerabilidade.

Nesse sentido, a complexidade desse tema envolve muitos aspectos, ligados a sociedade, as condições e necessidades sociais e sentimentos dos indivíduos.

É uma tarefa Hercúlea pesquisar esse segmento populacional, pois extensos são os motivos de ida para as ruas. Eles não estão inclusos nos dados estatísticos do IBGE, tornando dessa maneira mais dificultoso a criação e efetivação das Políticas Sociais para essa segmentação.

Sendo assim, a idéia de dar mais atenção a essa população que vive nas ruas é muito recente. Ainda não existe uma rede de atendimento muito eficaz, mas muito tem se pensado sobre o assunto e através de várias reivindicações da própria população existem hoje alguns avanços na política de assistência que traz melhor qualidade de vida pra esse segmento da sociedade.

A mulher em situação de rua vive mais adversidades. Com uma fragilidade natural, seja física, emocional, merecem políticas sociais direcionadas a elas. Pois sobrevivem em meio a preconceitos por morar nas ruas e também o machismo por ser mulher. São minoria nas ruas, são submissas por este motivo, são competitivas para garantir sua proteção, sua vida. Seus cuidados são diferenciados. Pensar em uma política social para elas, não é somente construir abrigos/albergues, mas sim locais que produzam a oportunidade de Ser Mulher. Onde possam cuidar das necessidades básicas de um ser social. Cuidados médicos, higiene pessoal, cuidados com sua beleza e possibilitar um convívio familiar, recriando vínculos com a sua família, aproximando seus filhos (para as mulheres que são mães). Esse trabalho pode refletir em novas iniciativas, descobrindo o verdadeiro motivo porque essa mulher saiu de casa e o porquê não quer retornar.

Para tanto, é necessário superar um desafio: Conhecer essa população. Somente após saber quem são, quais seus sonhos, seus desejos, expectativas, de onde vem e para onde vão. Ao compreender quais são as necessidades sociais desses grupos é que podemos avaliar as estratégias de enfrentamento e satisfação dessas necessidades. Sendo que apenas "haverá provisão mínima se houver necessidades básicas a satisfazer" (PEREIRA, 2007, p. 26).

Compreendendo o modo de vida do sujeito, permite-nos olhar também suas potencialidades, como um sujeito capaz de transformações. Para que então, possamos formular políticas descentralizadas, respeitando a realidade de cada segmento em sua totalidade.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e centralidade do mundo do trabalho. 9. ed, São Paulo: Cortez, 2003.

CRISTINA, Valéria. Vida no Trecho. O Trecheiro, São Paulo, n. 96, v. 10, p. 02, abril, 2002.

IAMAMOTO, Marilda Villela & Carvalho, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: Esboço de uma interpretação histórico metodológico. 16. ed, São Paulo: Celats / Cortez,2004.

KOGA, Dirce. Medidas de cidades: entre territórios de vida e territórios vividos. São Paulo: Cortez, 2003.

LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno.São Paulo: Ática S.A, 1991.

MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural, 1988 – v. 2.

ORTIZ, Esmeralda do Carmo. Esmeralda, Porque não dancei.São Paulo: SENAC São Paulo, 2000.

PEREIRA, Potyara. A. P. Necessidades Humanas: subsídios à crítica os mínimos sociais. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

ROSA, Cleisa Moreno Maffei. Vidas de Rua. São Paulo: Hucitec, 2005.

TIENE, Izalene. Mulher Moradora na Rua: entre vivências e políticas sociais. Campinas, SP: Alíinea, 2004.

VIEIRA, Maria Antonieta da Costa; Eneida Maria Ramos Bezerra & Cleisa Moreno Maffei Rosa. População de rua: quem é, como vive, como é vista.São Paulo: Hucitec, 1992.

YASBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. 3ª ed.São Paulo: Cortez, 1999.

_______. Pobreza e exclusão social: expressões da questão social no Brasil. In. Temporalis. Revista da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. Brasília: ABEPSS, Grafline, v. 2, n.3, jan-jun 2001.


[1]Vieira; Bezerra; Rosa, População de Rua, Quem é, Como Vive,Como é Vista 1992; CLEISA, Vidas de Rua, 2005.

[2]Salário é o preço da força de trabalho, em que se traduz o capital variável do capitalista. (IAMAMOTO e CARVALHO, 2004, p. 48)

[3]Vieira; Bezerra; Rosa, População de Rua, Quem é, Como Vive,Como é Vista 1992; CLEISA, Vidas de Rua, 2005

[4]Artigo Publicado no site: http://diariotiao.zip.net, População em Situação de Rua: Sobreviventes Excluídos da Sociedade.

[5] A categoria subalterno, legado gramsciano, por sua expressividade, e por dar conta de um conjunto diversificado e contraditório de situações de dominação, foi escolhida por Yasbek (1999) para nomear as classes em que se inserem os usuários das políticas sociais, no contexto de seu estudo.

[6]Vieira; Bezerra; Rosa, População de Rua, Quem é, Como Vive, Como é Vista, p. 88.

[7]Capacidade humana de superação


Autor: Bruna de Freitas Cardoso


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