A Análise E A Busca Da Efetividade Das Normas Constitucionais Brasileiras



Título: A ANÁLISE E A BUSCA DA EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS BRASILEIRAS



1. INTRODUÇÃO


Este artigo busca analisar criticamente o nível de efetividade das normas constitucionais, através do entendimento de diferentes pensadores a respeito da Constituição, da apresentação da configuração da Constituição brasileira de 1988, da diferenciação entre eficácia jurídica e eficácia social, bem como do respectivo grau de efetividade e de aplicabilidade das diferentes normas constitucionais brasileiras.

Outrossim, faz uma abordagem em torno dos meios capazes de viabilizar ou ampliar a eficácia das normas previstas pela Constituição, enfocando a importância da participação popular, em especial, da sociedade civil, bem como do alargamento do controle judicial para garantir o desenvolvimento e a concretização dos direitos e deveres, princípios e valores por ela tutelados.



2. CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS ACERCA DA CONSTITUIÇÃO


A Constituição nasce da própria necessidade da organização da sociedade, que almeja uma “folha de papel” diretriz, evitando a concentração do poder do absolutismo. A Constituição consiste na Lei Maior, na norma diretriz, como um aparato normativo e positivo, que vai delinear e gerir os rumos da sociedade.

O sentido jurídico da Constituição foi destacado por Hans Kelsen, na sua obra “A Teoria Pura do Direito”, estabelecendo a pirâmide da hierarquia normativa. A Constituição representa a lei fundamental, a lei maior de um ordenamento, derivada da chamada norma normarum. A Constituição deriva de outra norma, uma norma abstrata, que está acima da Constituição, mas não deixa de ser norma. Na perspectiva de Kelsen, tem-se que aplicar a norma, observando os valores que a conduziram, observando a “norma normarum”(norma hipotética fundamental). Em síntese, a Constituição estaria no topo da pirâmide normativa e, a partir dela, todas as outras normas se derivariam.

Por outro lado, na sua obra “Teoria da Constituição”, Carl Smith rompe com o puritanismo jurídico e submete o Direito ao Poder Político, entendendo que a Constituição representaria a opção política definida pelo titular do poder constituinte, e assim, a Constituição seria a decisão política fundamental. A Constituição contemplaria todo o aparato normativo relativo aos fundamentos da sociedade e à instrumentalização da participação política, privilegiando o conteúdo material em detrimento da forma.

Para Carl Smith, o Estado deveria atender a sua verdadeira finalidade e, por isso, entendia que uma norma constitucional nem sempre corresponderia às diretrizes da Constituição. O artigo 242, § 2º, da Carta Magna de 1988, dispondo a respeito do Colégio Pedro II, por exemplo, seria apenas formalmente constitucional. Já o Pacto de São José da Costa Rica, que dispõe diversos direitos e deveres fundamentais, tem o seu conteúdo material relacionado com o art. 5º da Carta Magna de 1988, possuindo essência de Constituição.

Já no século XIX, o alemão Ferdinand Lassale, na sua obra “A Essência da Constituição”, desenvolveu o sentido sociológico da Constituição. Como representante da classe trabalhadora oprimida da época, ele considerava dispensável o texto escrito, visto que entendia tratar-se de um mero “instrumento de legitimação do discurso da burguesia liberal” durante a Revolução Industrial e, portanto, o que estava escrito não estava refletindo a realidade do povo.

Segundo Lassale, a Constituição deveria ser a soma dos fatores reais de poder, ou seja, a Constituição formal deveria corresponder à Constituição real, senão a Constituição passaria a constituir uma mera “folha de papel” em branco. Segundo ele, o maior fator real de poder seria o povo, mas criticava que o povo não era organizado como o Exército. No contexto atual, poderíamos considerar a mídia, o MST (movimento dos trabalhadores rurais sem-terra), o Capital Internacional como fatores reais de poder.

Posteriormente, o alemão Konrad Hesse, também enfatizando o aspecto sociológico, complementa o pensamento de Lassale, através da sua teoria “A Força Normativa da Constituição”. Sob a ótica de Hesse, o próprio texto constitucional escrito também seria um fator real de poder, capaz de transformar a sociedade. Além de traduzir a realidade, adaptando-se às transformações da sociedade e das relações de poder, a Constituição também deveria delinear o “dever-ser”, apontando as diretrizes a serem seguidas, visando alcançar a justiça social, respeitando, porém um mínimo de segurança jurídica.



3. A CARTA MAGNA BRASILEIRA DE 1988 E O MUNDO GLOBALIZADO


Cumpre informar, nesse contexto, que a vigente Constituição Federal Brasileira de 1988 caracterizava-se, na sua essência, como uma Constituição Do Bem Estar Social, com a presença de dispositivos de ordem social e econômica, de normas relativas aos direitos sociais básicos, trazendo inclusive institutos processuais garantidores destes direitos, como o mandado de segurança coletivo, mandado de injunção e a inconstitucionalidade por omissão.

Essas garantias, contudo, que foram formalmente dispostas na Constituição, nem sempre têm correspondido, na prática, à efetiva realização dos direitos, tendo em vista a falta de preparação do Estado para realizar tantas prestações sociais e econômicas à população, a precariedade dos recursos estatais disponíveis, e, ainda, por não corresponder, muitas vezes, às pretensões da classe dominante brasileira.

Dentro dessa conjuntura, podemos destacar, por exemplo, a baixa efetividade em relação às normas que disciplinam o direito à educação, evidenciada através da falta de investimentos e incentivos educacionais, além do constante desvio de recursos públicos que seriam destinados ao ensino público. O acesso à educação assegura a emancipação intelectual do indivíduo e, sabendo-se disso, os nossos representantes políticos passam a desprezar a educação, utilizando-a como instrumento de manutenção de poder.
Em linhas gerais, podemos visualizar a Constituição Brasileira como um contrato firmado entre o Estado, a Sociedade e o Mercado. Seria a materialização da tentativa de conciliação entre os valores do Estado (ordem, hierarquia e autoridade), os valores da sociedade (liberdade, igualdade e solidariedade) e os valores do mercado (livre iniciativa, propriedade privada e lucro). Desta forma, as disposições que vão do art. 1º ao 4º corresponderiam às cláusulas gerais do contrato; nas do art. 5º ao 17, além do art. 193 ao 232, procura-se atender aos anseios da sociedade, através dos Direitos Fundamentais; do art. 18 ao 169, tem-se a Organização do Estado, parte referente ao próprio Estado e, do art. 170 ao 192, regulamenta-se a Ordem Econômico-Financeira, representando a influência do mercado.

Por sua vez, ao longo de quase vinte anos, cabe ressaltar que a Carta Magna de 1988 já sofreu mais de cinqüenta emendas. A Lei Fundamental Brasileira foi sendo alterada e atualizada à medida que as mudanças foram ocorrendo, adaptando-se, a cada momento, ao contexto social-econômico-político da realidade na qual estava inserida e, principalmente, atendendo aos interesses dos detentores dos poderes político e econômico.

Diante do novo panorama mundial, com o fim do socialismo e do crescimento do capitalismo, o enfraquecimento da força sindical, a nova realidade neoliberal, a quebra de fronteiras decorrente da globalização e a formação de grandes grupos econômicos, a Constituição de 1988 não poderia ser mais a mesma de quase 20 anos atrás, passando a perder, inclusive, muito do seu caráter social.

A sociedade é essencialmente política e é na Constituição que estará definida a forma de organização do poder, determinando quem é que manda e como esse poder de mando será exercido. Dessa forma, quem detém o poder traçará as diretrizes do Direito, em especial, da Constituição, conforme os seus interesses. A Constituição, pois, vai apenas traduzir a estrutura de poder e, nem sempre, refletirá a vontade da maioria.



4. EFICÁCIA JURÍDICA E EFICÁCIA SOCIAL


Com efeito, observa-se que as normas constitucionais podem ter eficácia jurídica, já que possuem uma estrutura lógica completa com a descrição da hipótese, traçando os dispositivos e determinando a respectiva sanção em caso de descumprimento. A eficácia jurídica corresponde à irradiação de eficácia da norma perante o ordenamento, produzindo efeitos quando são respeitadas ou trazendo conseqüências punitivas, ao serem violadas.

A respeito do tema, assim disciplina o jurista José Afonso da Silva:

“A eficácia da norma jurídica tem como conseqüência automática o seu poder de gerar efeito jurídico, com maior ou menor grau, ou de maneira absoluta, ou plena, ou limitada, ou diferida, por meio de um comando, determinando um agir ou não agir, uma conduta positiva ou uma omissão, e neste caso com uma força paralisante da que é conflitante com o comando determinado”.

Impende destacar, porém, que, as normas constitucionais não possuem, muitas vezes, é a efetividade social, ou seja, uma ampla aceitação pela sociedade, reconhecendo-as como legítimas. Nas normas com eficácia social, existe um maior grau de sintonia entre o ideal, os valores tutelados, e a realidade dos fatos, do dia-a-dia do cidadão.

Neste sentido, o doutrinador Luís Roberto Barroso, considerando a efetividade em si como a própria eficácia social, dispõe o seguinte:

“A efetividade significa, portanto, a realização do direito, o desempenho de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social”.

E ainda, nesse contexto, cabe mencionar a importância dos princípios de interpretação constitucional, notadamente a aplicação do princípio da máxima efetividade em relação aos direitos fundamentais. No tocante a esse princípio, tem-se a seguinte transcrição da recente obra Curso de Direito Constitucional, do jurista Dirley da Cunha Júnior:

“O princípio da máxima efetividade, também denominado de princípio da interpretação efetiva, orienta o intérprete a atribuir às normas constitucionais o sentido que maior efetividade lhe dê, visando otimizar ou maximizar a norma para dela extrair todas as suas potencialidades. Embora seja um princípio aplicável à interpretação de todas as normas constitucionais, atualmente tem incidência maior no âmbito dos direitos fundamentais, onde é freqüentemente invocado”.



5. PODER DE EFICÁCIA DOS DISTINTOS TIPOS DE NORMAS CONSTITUICIONAIS


Outrossim, conforme as preciosas lições de Luis Roberto Barroso, as normas constitucionais classificam-se em: normas constitucionais de organização, normas constitucionais definidoras de direito e normas constitucionais programáticas.

As primeiras norteiam o exercício do poder político e, assim, delimitam a organização política do Estado, através das normas que disciplinam a forma de Estado, a forma de governo, o regime político, a organização dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como a repartição de competências. A maioria destas normas goza de efetividade plena e imediata, pois se restringem a estabelecer a estrutura do Estado em seu aspectos formais e burocráticos.

Em relação a estas normas de organização estatal, eis o escólio de Miguel Reale:

“O que caracteriza as normas de organização é a obrigação objetiva de algo que deve ser feito, sem que o dever enunciado fique subordinado à ocorrência de um fato previsto, do qual possam ou não resultar determinadas conseqüências. Ora, não havendo a alternativa do cumprimento ou não da regra, não há que se falar em hipoteticidade”.

Já as normas constitucionais que fixam os direitos fundamentais no âmbito civil, político e socio-econômico, direcionadas à população, nem sempre são plenamente eficazes. Os direitos civis e políticos, como o direito de liberdade, igualdade e o de votar e ser votado, quando implicam em um não-fazer do Estado, cumprindo os direitos individuais de primeira geração, normalmente produzem efeitos diretos e imediatos.

Por outro lado, quanto às normas constitucionais que consagram os direitos sociais de segunda geração, bem como os direitos difusos e homogêneos de terceira geração, observa-se um menor alcance da efetividade, visto que, para serem proporcionados, dependerão da prestação do Estado, da atuação do Poder Público.

E as normas programáticas corresponderiam àquelas que traçam os planos e programas a serem cumpridos pelo Estado, com o fim de trazer a melhoria das condições econômicas, sociais e políticas da população. Entretanto, constituem normas genéricas e abstratas, destituídas de imperatividade, que não vinculam, e, por isso, tornam-se normas de baixa efetividade na prática. Caracterizam-se por serem dotadas de um conteúdo muito generoso, mas que dependem de decisões políticas para serem concretizadas.

O dispositivo que estatui o salário-mínimo (art. 7º, IV, da Constituição Federal), por exemplo, termina constituindo um mero programa constitucional, pois, na realidade, está longe de atender realmente a todas as necessidades básicas do trabalhador e de sua família. Cabe acrescentar que Maria Helena Diniz também elenca entre as normas programáticas os seguintes dispositivos da Constituição Federal de 1988: art. 21, IX, art.23, art. 170, art. 205, art. 211, art. 215, art. 218.

Assim, o texto constitucional, no seu campo programático, resolveu apenas formalmente vários problemas básicos relativos à educação, à saúde, à previdência social, ao trabalho, à instituição familiar, à ciência e tecnologia, ao lazer, e até de qualidade de vida, destinando um dos seus capítulos ao meio ambiente.

Nesse sentido, cabe mencionar o que o doutrinador Paulo Bonavides afirma, com muita propriedade:

“Na Constituição de 1988, as promessas constitucionais ora aparecem cunhadas em fórmulas vagas, abstratas e genéricas, ora remetem à concretização do preceito contido na norma ou na cláusula a uma legislação complementar e ordinária que nunca se elabora”.



6. APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS


Segundo o doutrinador José Afonso da Silva, as normas constitucionais, quanto à sua aplicabilidade, são classificadas em: normas de eficácia plena, contida e limitada.

A norma de eficácia plena consiste numa norma auto-executável, bastante em si mesma, que, por si só, tem eficácia jurídica e social. Prescinde, não necessita de um regramento posterior para que venha apresentar uma eficácia social. Trata-se, pois, de uma norma de aplicabilidade imediata, ou seja, por si só é eficiente. Ela é contida por uma norma constitucional. O que limita a norma de eficácia plena é outra norma com mesmo patamar.

Conforme o mencionado José Afonso da Silva, as normas de eficácia plena seriam: “aquelas que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular”.

A norma de eficácia contida é a norma com aplicabilidade imediata, mas, diferente da norma de eficácia plena, ela poderá (facultativo) sofrer restrições por uma norma infraconstitucional, tendo como exemplo o disposto no art. 5°, XIII, CF, que trata da liberdade de ofício, na forma da lei. Cabe ressaltar, todavia, que as restrições devem ser razoáveis, proporcionais.

Já as normas de eficácia limitada são as que dependem de regramento posterior, seja de lei complementar ou ordinária, para que venham apresentar efeitos sociais, viabilizando o exercício do direito ou do benefício assegurado. Estas normas têm aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, contribuindo, portanto, para a diminuição da força normativa da Constituição. Temos como exemplo notório o da previsão constitucional da proteção contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar (art. 7º, I, Constituição Federal).

Nesse sistema comparativo, cumpre trazer à baila o magistério de Maria Helena Diniz:

“Há, portanto, um gradualismo na eficácia das normas constitucionais, por não serem idênticas quanto à produção de seus efeitos e à sua intangibilidade ou emendabilidade. Há um escalonamento na intangibilidade e nos efeitos dos preceitos constitucionais, pois a Constituição contém normas com eficácia absoluta, plena e relativa. Todas têm juridicidade, mas seria uma utopia considerar que têm a mesma eficácia, pois o seu grau eficacial é variável”.



7. RESERVA DO POSSÍVEL X MÍNIMO EXISTENCIAL


Outro aspecto relevante a ser levantado seria a análise da dualidade existente entre os conceitos de “reserva do possível” e de “mínimo existencial”.

A “reserva do possível” seria a limitação fática-orçamentária, alegada pelo Estado para não se responsabilizar pelo descumprimento da adoção de políticas públicas que garantam a efetividade dos direitos fundamentais, notadamente os direitos sociais.

A respeito do tema, o jurista Andreas Krell, referindo-se ao posicionamento do português Canotilho na sua obra “Fundamentos da Constituição”, assim dispõe:

“O português Canotilho vê a efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais dentro de uma “reserva do possível” e aponta a sua dependência dos recursos econômicos. A elevação do nível da sua realização estaria sempre condicionada pelo volume de recursos suscetível de ser mobilizado para esse efeito.”

Nesse ponto, Kreel expressa que o entendimento acima teria se baseado na jurisprudência constitucional alemã, que consolidou o seguinte: “a construção de direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição da disponibilidade dos respectivos recursos. Ao mesmo tempo, a decisão sobre a disponibilidade dos mesmos estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e dos parlamentos, através da composição dos orçamentos públicos”

Sabendo-se que a denominada “reserva do possível” foi desenvolvida na Alemanha, numa conjuntura jurídica, econômica e social bastante diferente da árdua realidade do Brasil, cumpre invocar a reflexão sobre quem ou qual órgão teria legitimidade, na conjuntura brasileira, para definir o que estaria “dentro do possível” face a composição distorcida dos orçamentos dos três níveis dos entes federativos (União, estados e municípios).

Nessa esteira, cumpre trazer à baila o apropriado posicionamento crítico do magistrado Dirley da Cunha Júnior:

“Num Estado em que o povo carece de um padrão mínimo de prestações sociais para sobreviver, onde pululam cada vez mais cidadãos socialmente excluídos e onde quase meio milhão de crianças são expostas ao trabalho escravo, enquanto seus pais sequer encontram trabalho e permanecem escravos de um sistema que não lhes garante a mínima dignidade, os direitos sociais não podem ficar reféns de condicionamentos do tipo reserva do possível. Não se trata de desconsiderar que o Direito não tem a capacidade de gerar recursos materiais para sua efetivação. Tampouco negar que apenas se pode buscar algo onde este algo existe. Não é este o caso, pois aquele “algo” existe e sempre existirá, só que não se encontra- este sim, é o caso- devidamente distribuído! Cuida-se, aqui, de se permitir ao Poder Judiciário, na atividade de controle das omissões do poder público, determinar uma redistribuição dos recursos públicos existentes, retirando-os de outras áreas (fomento econômico a empresas concessionárias ou permissionárias mal administradas; serviço da dívida; mordomias no tratamento de certas autoridades políticas, como jatinhos, festas pomposas, comitivas desnecessárias em viagens internacionais, pagamento de diárias excessivas; gastos em publicidade, etc) para destiná-los ao atendimento das necessidades vitais do homem, dotando-o das condições mínimas de existência”.

Por conseguinte, cabe apresentar também o conceito do “mínimo existencial”, que corresponde ao padrão mínimo de efetividade das normas disciplinadoras dos direitos fundamentais. O mínimo existencial, portanto, seria o limite da reserva do possível, à medida que esse “mínimo” não poderá ser desmerecido pelo Estado, mesmo que venha a ser alegada a reserva do possível.

Sendo assim, esse “padrão mínimo social” consistiria na intervenção do Estado Social a fim de garantir a existência física da pessoa, incluindo o básico de alimentação, atendimento à saúde, educação, moradia, ressalvando que o conteúdo material e concreto desse “mínimo” será variável de um país para outro.

Estudando o Direito Constitucional Alemão durante o seu curso de Doutorado na Freie Universität Berlin, cumpre transcrever o disposto por Andreas Krell:

“A Corte Constitucional Alemã extraiu o direito a um “mínimo de existência” do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1, I, Lei Fundamental), do direito à vida e à integridade física, mediante interpretação sistemática junto ao princípio do Estado Social (art. 20, I, LF). Assim, a Corte determinou um aumento expressivo do valor da “ajuda social”, valor mínimo que o Estado está obrigado a pagar a cidadãos carentes. Nessa linha, a jurisprudência aceita a existência de um verdadeiro Direito Fundamental a um mínimo vital”.

No contexto brasileiro, cumpre informar que, na doutrina e na jurisprudência brasileiras, todavia, a teoria do “mínimo existencial” ainda não teve a mesma repercussão ocorrida na Alemanha, no sentido de representar um direito subjetivo do indivíduo contra o Poder Público diante do quadro de redução, ou mesmo de ausência, da prestação dos serviços sociais básicos que permitam garantir a dignidade da sua existência.



8. IMPORTÂNCIA DA ATUAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL


Observa-se que, para a transformação das normas jurídicas em ações concretas, muitas vezes são necessárias a existência e a atuação expressiva de órgãos e instrumentos com capacidade para garantir o alcance dos seus efeitos.

As garantias políticas asseguram a efetividade das normas constitucionais através dos meios institucionais semidiretos, como a iniciativa popular do processo legislativo, o referendo e o plebiscito. Esses mecanismos passaram a ser mais utilizados, tendo em vista os constantes desgastes sofridos pelo atual modelo representativo, tornando-se insuficiente como instrumento de legitimação de poder e evidenciando a vulnerabilidade da função legislativa.

Ademais, existem as garantias jurídicas, que correspondem aos instrumentos processuais de proteção dos direitos, por meio da solicitação de um pronunciamento do Poder Judiciário. A atividade típica do Poder judiciário é julgar, aplicando a lei a um caso concreto, resultante de um conflito que lhe é apresentado. A sua atuação enseja, desta maneira, a tutela dos interesses violados ou ameaçados.

O direito à tutela jurisdicional e o devido processo legal são consagrados pelo ordenamento jurídico brasileiro e, por sua vez, ensejam a garantia do cumprimento das normas jurídicas. Além desses direitos, a Constituição tutela diversos direitos subjetivos, estabelecendo ações próprias, dentre as quais, o mandado de segurança, o habeas corpus, o habeas data, o mandado de injunção, a ação popular e a ação civil pública.

Outrossim, temos as garantias sociais, que são realizadas através da atuação participativa da sociedade civil, a qual inclui associações profissionais, as comunidades eclesiais de base, os sindicatos, as associações de moradores de um bairro, de negros, de mulheres, de preservação do meio ambiente, traduzindo os anseios gerais ou de minorias.

Através da atuação da sociedade civil, tem-se o controle da efetividade normativa constitucional de maneira informal, por via não-institucionalizada, despertando, muitas vezes, a opinião pública. Consiste na fiscalização participativa, que vai desde a restrita ação comunitária local e que se estende às grandes articulações sociais e políticas em busca do cumprimento das normas constitucionais.

No que concerne à sociedade civil, cabe destacar o que Luis Roberto Barroso pontuou de forma pertinente:

“A sociedade brasileira, historicamente, gravitou em torno do oficialismo. As bênçãos do poder estatal foram – ressalvadas as exceções que confirma a regra – a razão do êxito ou do fracasso de qualquer projeto político, social ou empresarial que se pretendesse implantar”.

E citando mais uma vez o pensamento de Barroso:

“Não há efetividade possível da Constituição, sobretudo quanto à sua parte dogmática, sem uma cidadania participativa”.

Nessa esteira, vale lembrar que as leis, geralmente, apenas refletem a normatização política-econômica-social de um Estado. As conquistas sociais e a concretização de direitos só são promovidas a partir de um longo e progressivo amadurecimento diário dos cidadãos, permitindo que eles deixem de ser meros telespectadores e transformem-se em verdadeiros atores sociais.



9. INTERFERÊNCIA DO JUDICIÁRIO NO CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS


Andreas Krell enfatiza a existência de diferenças entre o sistema brasileiro e os sistemas dos países da Europa, salientando, de forma coerente, que, quanto menor o nível de organização e atuação da sociedade civil para participar e influenciar na formação da vontade política, maior será a responsabilidade do Poder Judiciário na concretização e efetivação das normas constitucionais programáticas.

No Brasil, por exemplo, a rejeição ao positivismo dogmático e a ampliação do poder de interpretação aos juízes não constituiriam, necessariamente, uma “politização” do Judiciário, mas propiciariam a formação de juízes ativistas, que, atuando nos seus devidos limites, ficariam vinculados às diretrizes materiais preconizadas pela Constituição Federal e voltados para a plena realização dos seus comandos, impedindo que as decisões da Administração Pública se distanciassem da essência dos programas e princípios constitucionais.

Em relação à importância do Poder Judiciário no desenvolvimento da força normativa constitucional, cumpre invocar o seguinte pronunciamento de Luis Roberto Barroso:

“Ao Poder Judiciário, como intérprete qualificado da Constituição e das leis, cabe um papel mais destacado do que aquele até aqui desempenhado na tutela dos direitos constitucionais. A positivação da regra que consagra a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, bem como remédios como o mandado de injunção, servirão como suporte de legitimidade para a ampliação de seus poderes”.
No tocante ao “mínimo existencial”, explanado anteriormente, Barroso assevera o seguinte:

“Esse padrão mínimo no cumprimento das tarefas estatais poderia, sem maiores problemas, ser ordenado por parte do Judiciário, o que deixa de acontecer devido apenas a motivos ideológicos e não jurídico-racionais”.

Complementando o pensamento de Barroso, o jurista Sarlet assim expressa, principalmente em relação à prestação do serviço público de saúde:

“No caso da negação de prestações de serviços sociais básicos por parte do Estado, não conseguem convencer os argumentos comuns da falta de verbas e da ausência da competência do Judiciário para decidir sobre a aplicação dos recursos públicos, especialmente na área da saúde, o bem maior da vida humana. A denegação dos serviços de saúde acaba por se equiparar à aplicação de uma pena de morte”.

Não obstante os membros do Poder Judiciário de outros países já terem assumido uma posição interventora nas soluções de interesses sociais, os membros do Judiciário brasileiro ainda resistem em exercerem essa missão, alegando a preservação da segurança jurídica ou a garantia ao equilíbrio entre os poderes autônomos.

Alguns doutrinadores defendem que o Judiciário poderia assumir um papel de reavaliador ou, ainda, de instância recursal das decisões políticas. Com base no entendimento de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, haveria uma “desneutralização” do Poder Judiciário, em que seu agente público teria uma co-responsabilidade na consecução das finalidades das políticas legislativa e administrativa.

O Poder Judiciário atuaria diante da falha ou da omissão do processo político (Legislativo, Executivo) na implementação de políticas públicas, salientando que não lhe seria conferido o poder de criação destas políticas públicas, mas sim o de determinar, de forma cogente, a execução daquelas já disciplinadas nas normas constitucionais ou ordinárias.

No que se refere à formação dos juízes e à viabilidade do controle difuso de constitucionalidade preconizado pelo ordenamento jurídico brasileiro, cabe invocar a análise do doutrinador Clemerson Clève:

“O juiz deve ter um compromisso com a justiça normativamente inscrita na Constituição Federal. E isso é perfeitamente possível no Brasil, já que aqui, ao contrário de outros países, todos os juízes exercem jurisdição constitucional. É imprescindível que o juiz, com o apoio de disciplinas como a filosofia, a sociologia e a história jurídicas, desenvolva uma visão global do direito, de sua estrutura e de seus problemas, para poder entender a dimensão axiológica que preside, na atualidade, todo o sistema jurídico e especialmente o texto da Constituição”.

Face a percepção da necessidade da norma jurídica ser interpretada e aplicada de forma integrada ao contexto político, econômico, social e cultural que a permeia, cada vez mais doutrinadores têm defendido que o melhor controle das políticas sociais públicas será alcançado através da aquisição de conhecimentos de hermenêutica jurídica, filosofia, sociologia e ciência política, bem como da evolução da ética profissional por parte dos operadores jurídicos.



10. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Não obstante estarmos regidos por uma Constituição de “alma” social, a qual compreende desde os direitos individuais, como a liberdade e a igualdade, estendendo-se aos direitos sociais, difusos e homogêneos, que tutelam o trabalho, a saúde, a educação, entre outros, vivenciamos num contexto neoliberal, em que o Capital Internacional, cada vez mais, passa a determinar o que é ou não prioridade no mundo atual, ditando as regras a serem seguidas e os programas a serem implementados.

A não realização dos objetivos constitucionais, seja por dependerem da hipotética edição de uma lei ulterior, seja por serem previstos de maneira vaga e abstrata, têm frustrado grande parte do povo brasileiro, que passa a desacreditar na ordem jurídica e a não reconhecer a Constituição Federal como a lei fundamental do Estado, considerando-a como uma mera “folha de papel”, assim como defendia Lassale.

As normas jurídicas, inclusive as constitucionais, passam a distanciar-se progressivamente da realidade do povo. As normas constitucionais vão perdendo a sua eficácia social e, lamentavelmente, passamos a encarar, com naturalidade e de forma pacífica, o constante desrespeito aos direitos mencionados, o aumento da violência, a falta de ética, a impunidade, a violação das nossas conquistas individuais e coletivas, sociais e políticas e, assim, a banalização das leis passa a fazer parte do nosso cotidiano.

Sendo assim, impende destacar que a efetividade das normas constitucionais, em especial as programáticas, não depende exclusivamente da atuação governamental, mas de uma consistente reação popular, da permanente mobilização social, principalmente a participação e integração da sociedade civil visando cobrar e fiscalizar a realização efetiva das funções executivas, legislativas e judiciárias do Estado.

Ante o exposto, em paralelo à atuação expressiva da sociedade civil, cumpre ressaltar a necessidade da imprescindível e gradual intervenção ativa dos membros do Poder Judiciário no que concerne ao controle do cumprimento dos princípios, diretrizes e mandamentos constitucionais e, conseqüentemente, da concretização das políticas sociais públicas na realidade brasileira.




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Autor: Vinicius Jones Crysostomo


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