Cheiro de Rio Antigo



Cheiro de Rio Antigo

Ora se deu que, no meio da manhã de hoje, vivencivava eu aquela curiosa circunstância de "Comandante Jaques" - "Já que você está em casa etc etc" - quando, exatamente por isso, ofereceu-se a oportunidade para transitar no emocionante (sob vários aspectos) Centro do Rio de Janeiro, bairro a que devoto tanto apreço, desde os saudosos e dourados anos cinqüenta, tempo em que ali circulava amiúde, naturalmente em companhia de meus pais.
De imediato enviei mensagem aos amigos, avisando-os de que para ali me dirigia, e, quem sabe, tal circunstância talvez pudesse viabilizar um repentino encontro poenáutico.
À falta do afamado bonde 66 Tijuca, embarquei num chacoalhante ônibus 239 - Usina -Castelo, eis que me encontrava um tanto distante de estações do metrô. Mas como naqueles tempos de doce memória, desembarquei no mesmo Tabuleiro da Baiana -lapsus calami - no Largo da Carioca.
Ali, à cata de alguns apetrechos de cozinha que me haviam sido solicitados, dirigi-me a uma velha cutelaria, na Rua da Casa de Branco, ao lado do prédio onde outrora se instalava o Bazar Francês, aquele dos brinquedos fantásticos, em sua maioria importados, que povoavam meus sonhos infantis, como os trens elétricos, o "Meccano", o "Poliopticon", o conjunto de química e, last but not least, os muitos revólveres, espingardas, coldres e cinturões assemelhados aos portados por Tom Mix, Roy Rogers e Hopalong Cassidy, nos filmes a que assistia nas sessões passatempo do Capitólio e do Cineac Trianon.
Adquirido o material, mudei de calçada, para entrar no Bar Flora e apreciar as delicatessen, que, nesta época de preparativos para o Natal, também evocam tempos d'antanho - castanhas, avelãs, amêndoas, nozes, vinhos, champagnes, bacalhau, patês, azeites, azeitonas, cerejas...tudo ao som de Jingle Bells e outros Christmas Songs que as lojas das cercanias fazem tocar em altos decibéis, misturados ao bimbalhar das sinetas dos Papais Noéis que não sei se enlevam, assustam ou fazem rir os internáuticos petizes de hoje.
Desestimularam-me, entretanto, os preços das iguarias. Arrisquei uma olhada no Bar Luiz, mas estava ainda vazio, e retornei ao Largo, onde me deparei com velho amigo, que ali caitiuava seus CD's - o velho Dicró, companheiro do pé sujo que freqüento, sextas à noite, aqui pela Tijuca - o septuagenário Bar Colúmbia. Lembrei-me de Marinho, que ali mesmo adquiriu, não faz muito, disco da saudosa Miloca, porque a viatura (?) de apoio era a mesma citada pelo nobre hidrógrafo em sua crônica sobre o encontro com a Favorita da Marinha - o carro de Agnaldo Timóteo, que, não mais motorista da Sapoti Ângela Maria, parece estar se dedicando a ajudar artistas que, rejeitados pelas grandes gravadoras, vão à luta, no corpo-a-corpo, oferecendo suas obras - possivelmente produzidas em fundos de quintal - a preços de banana, anunciadas em alto volume por equipamentos como aqueles de pregadores bíblicos de tardes de domingo em pracinhas de subúrbio. Não resisti, abracei-o, comprei o CD - dez Real -, ganhei um autógrafo, a capa não parece xerox obtida no subsolo do Avenida Central, o som é correto, ouvi-o há pouco, valeu.
Nisso, vibra o Motorola em minha cintura. É Frater, recebeu minha mensagem, decidiu acudir ao convite. Acertamos um point no Pub do segundo andar daquele magnífico prédio à Avenida Rio Branco 180, nosso velho conhecido. Cheguei primeiro, pedi uma infusão gelada de saccaromisi cerevisiae, e fiquei à espreita dos fantasmas de Saldanha e Custódio, que costumam circular por ali, particularmente em sextas-feiras, mas era cedo para tanto: meio-dia, deveriam eles estar rezando o Angelus e orando à Santíssima Trindade, ouvindo as quatro badaladas duplas, tirando o chapéu três vezes e bradando "Diabo, sai da gávea !".
Mas chega Frater - desta vez, não se perdeu nas ruas do Centro, como no outro encontro "assustado" no Paladino. Tentamos, por nossos eletrônicos bocas-de-ferro, convocar outros Oficiais para essa concentração à ré, mas Jonny circulava pelo Meyer (Deus meu, que andaria ele fazendo por essas lonjuras ? ), Marinho degustava camarões em Itajaí, o Chefe Adrião já havia almoçado, o outro Chefe Antonio Carlos perambulava pela Baixada de Jacarepagua, domínios de Dalt e e SerPad...
Propus então a Frater que, ao invés de um burocrático almoço no quarto andar do Clube, procurássemos algo que rescendesse mais a Rio antigo. E assim fizemos. Subindo a Almirante Barroso, deparamo-nos, junto ao prédio da Caixa Econômica, com a barraca de Cida Baiana, que serve o melhor acarajé do Rio, cuíca do Brasil, onde apresentei o amigo à minha querida quituteira Lili, negra retinta, quase azul, gorda e belíssima, dona do mais afável sorriso que conheço. Cruzamos o Largo, adentramos a Uruguaiana. Revimos a Cavé - que não ocupa mais o centenário sobrado, mas as instalações de uma antiquíssima loja de chapéus Ramenzoni. Miramos o velho prédio da Sloper - hoje desenxabida loja de departamentos, sem qualquer resquício do charme daquele saudoso magazine. Benzemo-nos diante da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Pretos Forros - que se prepara para o Dia da Consciência Negra (depois de amanhã, 20/11, morte de Zumbi nas Alagoas, pelas mãos de Domingos Jorge Velho, nada a ver com o Rio, não sei porque é feriado; ou talvez saiba). Observamos a fauna humana a circular pelo camelódromo. E enveredamos pela Senhor dos Passos, em plena SAARA, até a Avenida Passos - homenagem ao Prefeito Pereira Passos, o homem do bota-abaixo. Atravessamos a Avenida em frente à Casa Turuna, que já vendia fantasias de carnaval para o Abre-alas de Chiquinha Gonzaga, e continua a fazê-lo, agora para os asseclas de Capitão Guimarães. E na mesma Senhor dos Passos, defronte à Turuna, ingressamos num oásis - o Penafiel, lusitana casa de repasto ali assentada desde 1913, com balcões, mobiliário, louças, talheres e até ventiladores ainda daqueles tempos.
Ah, meus amigos...Que dizer do couvert com pães quentes, manteiga de 1� (seria Aviação ou Sinhá ?), picles artesanal, ovos de codorna...Sim, e as empadinhas de camarão que não pedimos, foram-nos compulsadas pelo garçon, mestre em fazer os clientes gastar, qual hostess das muitas boites que visitamos nos mil e um portos que arribamos ?
Frater decidiu-se pela costela bovina, eu pelo frango com quiabo. Manjares dos deuses !
De que falamos ? De tudo...De amores de ontem e de hoje, de vida vivida e ainda por viver, dos entes queridos que nos cercam e dos que já se foram, das amizades findas e das que não findarão jamais, de Marinha, de poesia, de arte, de esperança, de tempos já vividos que não voltam e dos que ainda estão por ser vividos...
E assim, saciados de corpo e de alma, embalados pela alma encantadora das ruas de que nos falava João do Rio, saímos de novo, em rumo de nossos refúgios de guerreiros. Entramos ainda num velho armazém, eis que competia ainda ao Comandante Jaques adquirir um punhado de azeitonas negras - servidas por uma Dulcinéia de olhar sequioso - e, en route - coincidências que o Destino explica - cruzamos com mais um velho Chefe naval - Orlando Affonso. Saudações de praxe, não mais os boys ao portaló, apenas um abraço, discreto e eloqüente como sói ocorrer entre velhos marinheiros.
E agora...
Bem, hoje é sexta-feira, dentro em pouco estarei no pé-sujo da rua Haddock Lobo.
Obrigado, Frater, por ter compartilhado comigo esta agradável tarde.
BZ. Eis que se põe o sol. Bandeira arriada. Cerimonial encerrado. Boa noite.
Gil


Autor: Gil Ferreira


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