Meus Filhos Que Estão Na Terra



Meus Filhos que estão na Terra e se encontram em Honduras: vejo-os, crianças miseráveis, disputando com os abutres as sobras do lixo recolhidas em aterros sanitários de suas cidades, tirando dessa imundície quaisquer coisas para alimento próprio ou para a venda a quem manifeste a disposição de mercadejar com o imprestável. Sou testemunha de que seus corpos estão raquíticos e que nesse esqueletismo seu espírito não pode vicejar.

Meus Filhos que estão na Terra e se encontram na Colômbia: percebo vocês pouco vividos nas garras da prostituição, igualando-se a milhões de crianças prostituídas por quem deveria proteger-lhes a dignidade ao redor do mundo. Ao contrário disso, milhões de vocês, a cada trezentos e sessenta e cinco dias contados, são traficados e vendidos como mercadorias de somenos. Conheço esse drama pelo qual passam e sei vocês ultrajados nas vísceras e no espírito.

Meus Filhos que estão na Terra e se encontram na Índia: vejo-os, pequeninos, quebrando pedras em troca de notas miseráveis que mal dão para o leite consumido esporadicamente. Vocês integram o número de crianças que soma quase duzentos e vinte milhões em todo o mundo, as quais têm que trabalhar de algum modo para não caírem mortas de inanição. Trabalham muito! Chegam a uma jornada de dezessete horas por dia e o fazem sob condições lastimáveis, desempenhando as mais perigosas atividades. Não ignoro a cruz existencial sob a qual estão pregados e sei os pregos da miséria a lhes rasgarem a mente e o coração.

Meus Filhos que estão na Terra e se encontram no Afeganistão: vocês vivem há não mais que meia dúzia de anos e já os vejo refugiados da guerra, metidos em trabalhos forçados nas fábricas de tijolos, os quais viram seguidamente para se tornarem secos sob o sol que eu quero igual para todas as criaturas, mas é causticante para vocês, levinhos, pisando esses tijolos de modo a não quebrá-los. Eu sei a dor a lhes torrar a alma e a sola dos pés.

Meus Filhos que estão na Terra e se encontram no Paquistão: eu os vejo disputando migalhas de carvão perdidas pelos carros da Cruz Vermelha ao longo das estradas. Trabalho não existe para seus adultos. A alimentação que têm é precaríssima. Suas necessidades básicas gritam roucamente em meus ouvidos e estão sempre a zero. Suas famílias inteiras definham diante de mim. Eu sei a fome a lhes animalizar e lhes queimar o estômago.

Meus Filhos que estão na Terra e se encontram nos Estados Unidos da América do Norte: assisto a vocês, filhos de pobres drogados, catando latinhas nas ruas, entregues a trabalhos destinados aos adultos. Vocês mancham o esplendor da maior riqueza nacional do planeta e eu sei o que lhes entorpece a alma, o coração e os passos frágeis por sobre os dias. Sua dimensão anímica se reduz a comandos instintivos de defesa ou fuga, e mais esse vexame eu tenho que testemunhar.

Meus Filhos que estão na Terra e se encontram no Brasil: país do vale tudo e onde tudo é possível; país da mentira, da política dos faz-de-conta, da lábia falaciosa, do levar vantagem em tudo, da maldade institucionalizada, da cegueira confessa, do não sei que simula e dissimula, do silêncio covarde, do acinte, da corrupção, do jeitinho para tudo e da falta de vergonha na cara... aí vocês crianças vivem premidas pela exploração sexual, movidas pela necessidade de obterem alguma renda, sem saírem da miséria, vocês têm nos próprios pais os seus negociadores. Vocês se vendem por míseros centavos e se entopem de cola e outros ópios para não testemunharem a própria degradação, mesmo antes de terem experimentado a vida. Nas ruas vocês são contados aos milhões, sem família, e tendo de praticar seguidos furtos para continuarem de pé. Vejo-os, crianças, aos bandos e ao relento nos espaços públicos, nos prédios abandonados, debaixo dos viadutos, nos terrenos baldios e nas encostas dos morros marginais de suas cidades. O que fazer com as fomes de vocês? Eu sei que seus corpos são o único recurso de que dispõem e sei esse sacrilégio a lhes marcar a pele e a lhes destroçar o mundo subjetivo e a identidade ainda em promessa.

Meus Filhos que estão na Terra, espalhados por todo o globo, santificadas sejam a vida e a existência de vocês.
Venha a mim o martírio cotidiano a que são submetidos, diuturnamente.
Seja feita a vontade daqueles que integram o um por cento de todos os meus filhos humanos no mundo que detêm nas mãos a metade de toda a riqueza produzida pela humanidade, na forma de bens que deveriam ser empregados para evitar a via-crúcis atestada acima, mas cuja negação e falta criam-lhes o pior dos infernos possíveis. E dele não podem escapar.
O meu pão de cada dia me dêem hoje, na forma de entrega, pedidos, orações, gritos, gemidos, desamparo, abandono, miséria, pobreza, fome, maus-tratos, tortura, sevícia, exploração, lamentos, lamúrias, doenças, ignorâncias verbais e de atos, sentimentos e pensamentos, violência, soluços e lágrimas, pois é dessas coisas que me faço, com base nisso existo, perduro no tempo e sou.
Perdoem a ofensa que lhes perpetro com meu silêncio, meus braços cruzados, minha ausência, minha omissão e minha indiferença, a tudo assistindo e em nada intervindo, assim como perdôo os dominantes que lhes tratam como gado vendaval, animais, coisas e nulidades cruas.
Não me façam cair na tentação de vocês que é a de me esquecer, porque se isso se der eu evaporarei, e isso será o meu mal, esse que já conhecem na própria carne e no próprio sangue, o igual, o mesmo e sempre derramado continuamente por mim desde aquele que um dia foi pregado vivo no madeiro.
Amém.

Autor: Wilson Correia


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